Re-pensando a universidade
H. Moysés Nussenzveig(org.)
Edit. UFRJ/Copea, 2004
Por Germana Barata
A reforma universitária começa a ser colocada em prática, gerando debates dentro e fora das instituições de ensino superior do Brasil e permitindo que este tema tão espinhoso seja finalmente enfrentado de frente. O debate não é de hoje. Há tempos a comunidade universitária aponta os problemas e dificuldades que estão corroendo o casco do navio e ameaçando levar por água abaixo um dos mais importantes patrimônios nacionais.
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Em 1998, o então ministro da educação, Paulo Renato de Souza, afirmou a falência do modelo vigente de universidade pública, em meio a uma crescente greve nas instituições federais. O momento era propício para que a Coordenação de Estudos Avançados (Copea) da UFRJ iniciasse um debate sobre o presente e o futuro da universidade, onde foram reunidos 26 representantes de importantes instituições, que produziram o Manifesto de Angra, integralmente publicado neste livro e que foi a linha mestra para discussões posteriores.
Entre os principais pontos levantados no documento está a urgente necessidade da reforma priorizar a autonomia das instituições de ensino superior, como forma de permitir o planejamento e a continuidade das atividades, sejam elas de pesquisa ou ensino. O principal papel da universidade, definido como o de formar pessoal e transformar a sociedade, só poderá ser cumprido, segundo os autores, mediante uma necessária reestruturação curricular, privilegiando uma formação básica sólida e flexível, uma avaliação do mérito profissional, que incentive a qualificação e justifique o regime de trabalho, além de uma revisão dos recursos destinados aos hospitais universitários e ao passivo previdenciário.
Aproveitando a fermentação do debate sobre os rumos da universidade pública brasileira, a Copea organizou, ainda em dezembro daquele ano, seis mesas-redondas com personalidades ligadas à problemática da universidade pública, no Rio de Janeiro. A transcrição desses encontros deu origem ao Repensando a Universidade que, diferentemente das publicações que reúnem artigos sobre um tema, permite ao leitor presenciar os diálogos ocorridos há seis anos. Esta estratégia facilita a percepção das múltiplas linhas de pensamentos que, refutadas, reformuladas ou reforçadas, delinearam, aos poucos, os principais pontos de degradação e meios para a restauração e revitalização da universidade pública.
O livro é um convite à reflexão frente a uma diversa e enorme gama de dados e argumentos apresentados. Estavam presentes, entre outras pessoas, o então presidente da Fapesp e hoje reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz, o presidente da Academia Brasileira de Ciências, Eduardo Moacyr Krieger, o ex-reitor da Unicamp e hoje presidente da Fapesp, Carlos Vogt, o físico da UFRJ e então presidente da Sociedade Brasileira de Física, Humberto Brandi e Luiz Pinguelli Rosa, professor titular da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ.
Faltou, no entanto, incluir uma descrição resumida dos autores do livro, provavelmente porque freqüentemente assume-se, como ocorre na comunidade acadêmica, que os participantes sejam figuras que dispensam apresentações. Assim, embora o leitor desinformado não perca em conteúdo, escapa-lhe o contexto de cada fala.
Ao longo das 261 páginas, a publicação recupera, em forma de capítulos, análises voltadas para as questões que envolvem o modelo desejado de universidade, o financiamento, a avaliação da pesquisa e do ensino, o regime de trabalho e a carreira docente, os órgãos colegiados e a administração, além da autonomia universitária.
Diante de diferentes modelos econômicos adotados da década de 1960 até 1990, Luciano Coutinho, economista da Unicamp, expõe a importância de se investir em um sistema nacional de inovação, como meio de capacitar o país a desenvolver uma maior densidade tecnológica. Apesar do modelo da universidade voltada para o ensino ter permeado outras discussões, foi nesta mesa-redonda que seu papel na inovação e desenvolvimento foi enfatizado, tomando como principais exemplos os casos bem sucedidos da Embraer, do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), do Centro de Tecnologia Aplicada (CTA) e da Petrobras. Ozires Silva, um dos fundadores da Embraer, falou sobre a decisiva contribuição do conhecimento científico e tecnológico para agregar valor aos produtos brasileiros. O exemplo utilizado é bastante ilustrativo: o preço do quilo da soja exportada pelo Brasil vale cerca de 35 centavos de dólar; esse mesmo peso pode atingir mil dólares, quando se trata de um avião, e 50 mil dólares, quando o produto comercializado é um satélite.
A obra também recupera dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que apontam o ensino superior proporciona também a progressão social, à medida que a obtenção de um diploma universitário pode significar um acréscimo de cerca de 20% na renda. Mas, entre os maiores obstáculos para otimizar o aproveitamento dos investimentos públicos e viabilizar a autonomia, foram apontados, de um lado, os pesados gastos com os inativos, pensionistas e hospitais universitários e, de outro, mal funcionamento de certos regimes de trabalho, como os de 40 horas semanais em que é permitido um segundo vínculo empregatício. Não encontraram lugar de destaque reivindicações para aumentar os investimentos públicos em educação, mas sim a melhoraria do uso dos recursos já disponíveis e a implementação da autonomia, peça chave para driblar a inconstância dos humores dos políticos e permitir o planejamento.
Para a autonomia ser eficaz propôs-se sujeitar as instituições de ensino superior e recursos humanos, prioritariamente os docentes, às avaliações externas e internas que funcionariam, basicamente, por meio de relatórios de produtividade e cumprimento de deveres e obrigações anteriormente estabelecidas, a exemplo do que ocorre com um pesquisador quando recorre a uma agência de fomento à pesquisa. As universidades teriam a aprovação de suas verbas atreladas ao seu desempenho, impossibilitando a concessão por isonomia, em favor da meritocracia.
Falou-se também em ampliar as alternativas do ensino profissionalizante, da maior participação de alunos de pós-graduação como assistentes de ensino e na flexibilização curricular de áreas afins.
A obra conta ainda com o documento A presença da universidade pública, produzido em 2000 por uma comissão de 18 docentes da USP, a pedido do reitor, Jacques Marcovitch, na tentativa de defender e justificar a importância destas instituições para a sociedade. O documento rebate, por exemplo, argumentos que afirmam que o modelo universitário brasileiro é caro demais, reforçando a importância dele continuar sendo financiado prioritariamente pelo governo, a exemplo do que ocorre em países como a França, a Inglaterra e até os EUA, ao contrário do que se argumenta. A necessidade de pagamento de mensalidades pelos alunos, ditos privilegiados, é apresentada como uma forma de agravar ainda mais a injustiça social e a importância da presença da universidade na sociedade é reforçada, não apenas como formadora de mão de obra especializada, atraindo melhorias para o país e para a região, como no caso da cidade de São Carlos, depois da chegada da USP e, posteriormente, da UFSCar, mas também por contribuir para a cultura local, com suas bibliotecas, espaços de lazer, orquestras sinfônicas, peças de teatro, entre outras.
Avanços Depois de nove anos de autonomia das universidades estaduais paulistas, as avaliações dos cursos de pós-graduação da Capes, o Provão, iniciado em 1996 pelo Ministério da Educação, e até métodos não oficiais, como Guia do Estudante da editora Abril, revelam, sem sombra de dúvida que, embora estejam com sua qualidade comprometida, as universidades públicas brasileiras ainda são, de longe, as melhor avaliadas. Elas também podem ser apontadas como as principais produtoras de conhecimento científico e tecnológico e as detentoras do maior número de docentes em tempo integral (83%) e melhor qualificados (com 77% dos doutores e 60% dos mestres). É fato, no entanto, que, muito embora estas instituições possam oferecer estes privilégios, elas abrigam apenas 34% daqueles que cursam o ensino superior.
Em função da atualidade do tema, o organizador e coordenador científico da Copea, Moysés Nussenzveig, revisa os avanços conquistados e a conquistar em direção à reforma universitária, desde 1998. Ele constata que, de lá para cá, pouco foi efetivamente modificado, como foi o caso da extinção do Regime Jurídico Único, a criação dos Fundos Setoriais, como uma tentativa de estabilizar recursos voltados para a inovação, e a adoção do Provão para avaliar os cursos de graduação. Embora a autonomia não tenha avançado, os debatedores deixam claro que a isonomia para universidades tão heterogêneas deve ser evitada, além de ser preciso haver um mecanismo de avaliação e acompanhamento externo que possa garantir o funcionamento deste sistema.
Apesar de, ao longo do livro, ser possível prever quem eram os participantes das discussões - a maioria de acadêmicos, alguns poucos alunos que teriam contribuído pouco para o debate, e a ausência de representantes do governo - não seria exagero constar uma breve descrição dos presentes, além de informar a continuidade dada às importantes conclusões obtidas.
É uma pena que as discussões registradas em Repensando a Universidade não tenham gerado um novo e ainda mais completo manifesto, que fosse levado ao conhecimento dos governantes e do público em geral, anteriormente à sua publicação. No entanto, o material reunido é uma rica e inquestionável contribuição para o atual debate sobre a reforma universitária, para que se possa caminhar a partir das análises já feitas.
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