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http://www.comciencia.br/reportagens/2005/09/06.shtml

Autor: Marta Kanashiro
Data de publicação: 10/09/2005

Ciência e indústria de olho na funcionalidade dos alimentos

A relação entre alimentos e benefícios para a saúde faz parte da sabedoria popular há milênios, no entanto, há somente pouco mais de uma década, a ciência voltou-se para esse tema. Nesse movimento, que faz parte do novo olhar das ciências biológicas sobre as milenares formas de conhecimento, esquadrinha-se a relação entre determinados compostos dos alimentos e benefícios específicos para a saúde, e populariza-se o termo alimentos funcionais.

Para Jocelem Mastrodi Salgado, presidente da Sociedade Brasileira de Alimentos Funcionais (Sbaf) e professora do Departamento de Nutrição Humana da Esalq-USP, a definição é clara. “Alimentos funcionais são alimentos ou ingredientes que, além das funções nutricionais básicas, produzem efeitos metabólicos, fisiológicos ou efeitos benéficos à saúde, como redução do risco ou prevenção de determinadas doenças”, diz ela, explicando ainda que a utilização de certos alimentos na redução do risco de doenças é considerada há milhares de anos, mas somente nos últimos 15 anos o termo alimento funcional passou a ser adotado e disseminado.

Salgado destaca que os alimentos funcionais não são remédios e, portanto, não podem curar doenças, mas apresentam componentes ativos capazes de prevenir ou reduzir o risco de algumas doenças, dentre as quais as mais investigadas são as cardiovasculares, câncer, hipertensão, diabetes, doenças inflamatórias, intestinais, afecções reumáticas e mal de Alzheimer. Na opinião dela, quando os alimentos funcionais são consumidos em sua forma natural, não necessitam de supervisão médica, mas ressalta que “a eficácia e segurança deles deve ser assegurada por estudos científicos”.

José Alfredo Arêas, do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, concorda em parte com essas idéias. Ele explica que esse é o conceito de alimentos funcionais que surgiu no Japão, na década de 80, e é prevalente na maior parte dos lugares, com exceção do Brasil. “No Japão, eles ficaram conhecidos como Foshu (sigla em inglês para Foods for Specified Health Use), mas no Brasil o conceito ficou um pouco confuso”, diz ele.

Arêas atribui a indefinição do conceito em parte por causa da excessiva abrangência da regulamentação elaborada, em 1999, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “A regulamentação é tão vaga e ampla que qualquer coisa, que sabidamente é boa para a nutrição, pode ser classificada como alimento funcional. Acredito que a regulamentação seja abrangente para permitir que várias coisas sejam assim classificadas”, argumenta ele.

Antônia Aquino, gerente de produtos especiais da Anvisa, não concorda com essa afirmação e argumenta que a legislação brasileira é muito semelhante ao Codex Alimentarius, e está de acordo com as exigências da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo ela, assim como o Codex, a Anvisa trabalha com a idéia de alegações funcionais ou de saúde para esses alimentos. Trata-se de avaliar as alegações sobre a relação entre um alimento, ou substância de sua composição, e uma função metabólica ou fisiológica para o organismo, ou ainda, a relação entre um alimento e a diminuição de risco de determinada doença.

Para que a alegação seja avaliada, a empresa (ou outro requerente) deve encaminhar para a Anvisa a documentação científica que a sustenta. Ela pode ser relativa a uma substância com características funcionais ou de saúde, que esteja presente naturalmente em um alimento ou que tenha sido artificialmente adicionada a ele. Nesse sentido, para a Anvisa o ácido graxo Ômega 3, por exemplo, pode ser o mote de uma alegação funcional ou de saúde. “Não apenas produtos industrializados, como também os alimentos que contêm determinadas substâncias naturalmente, como o peixe ou o tomate, podem ser vendidos com alegações de funcionalidade e então passam a ser considerados alimentos funcionais”, diz a gerente da Anvisa. Quando aprovadas, essas alegações passam a constar nos rótulos das embalagens dos produtos.

Sobre a crítica de que a amplitude da regulamentação e da definição de alimentos funcionais poderia criar expectativas excessivas a algumas correntes de pesquisa que querem apregoar o alimento como tendo finalidade de tratamento, Aquino rebate dizendo que isso não procede, uma vez que “a legislação não utiliza esse tipo de prerrogativa para o alimento, porque um decreto lei de 1969 prevê que essa é uma prerrogativa dos medicamentos”.

A gerente de produtos especiais da Anvisa explica que só são aceitas as alegações de redução de risco de uma doença, pois a agência entende que as doenças são multifatoriais, e o alimento é apenas um dos fatores que contribui para uma boa saúde. “O alimento não trata, nem cura, isso é função de medicamentos, e também não previne, porque isso é função de vacina”, diz Aquino.

Os jogos do mercado

A dificuldade de definição dos alimentos funcionais não ocorre apenas no Brasil. Um relatório de 2001, disponível no site do Ministério de Agricultura do Canadá, sinaliza o mesmo problema a nível mundial.

O relatório canadense analisou outros 45 relatórios que mencionavam ou discutiam o tamanho do mercado de alimentos funcionais e apontou que as estimativas variam dramaticamente. O documento associa essa variação à falta de definição consistente para alimentos funcionais. Além de incluir bebidas energéticas e alimentos enriquecidos, alguns autores incluem alimentos orgânicos ou suplementos alimentares como alimentos funcionais.

Entre as diferentes estimativas, o relatório cita a previsão do Nutrition Business Journal de que até 2010 os alimentos funcionais ocuparão uma fatia de 5,5% do total do mercado de alimentos norte-americano, porcentagem que representa 34 bilhões de dólares. Por outro lado, previsões que consideram investimentos da indústria farmacêutica, afirmam que a fatia de mercado dos alimentos funcionais, quando comparada aos alimentos normais, aumentaria mais de 25% .

Independentemente das estimativas diferenciadas, o relatório aponta a possibilidade de superestimar valores ou encontrá-los numa variação muito ampla, quando se tem em vista uma definição confusa de alimentos funcionais. Nesse jogo de definições, marketing e números, o relatório afirma que fortes investimentos têm sido feitos pela indústria farmacêutica e que a funcionalidade dos alimentos, na visão de empresários da indústria de alimentos, agrega valor aos produtos assim rotulados.

Os primeiros passos da pesquisa no Brasil

De acordo com José Alfredo Arêas, a pesquisa no Brasil sobre alimentos funcionais ainda é muito incipiente, com pesquisadores trabalhando de forma desarticulada. Para mudar esse quadro, uma série de pesquisadores e entidades vêm tentando estabelecer um protocolo de trabalho para a área de alimentos funcionais no país. Em reunião em Brasília, em abril deste ano, entidades como a USP, Unicamp, Unesp, Escola Paulista de Medicina e Embrapa, entre outras, conseguiram determinar um protocolo básico para estudo de alimentos funcionais. “No Brasil, nós temos trabalhado de forma muito isolada e isso é comum numa área incipiente como essa de alimentos funcionais. No entanto, num assunto multidisciplinar como esse, só haverá um impulso sério, se houver uma ação concatenada de estudos”, explica Arêas.

Apesar das reuniões estarem apenas começando e dos projetos de pesquisas não terem financiamento estabelecido, Arêas adianta que no protocolo de trabalho já se estabeleceu o açaí e o caju como os dois primeiros alimentos a serem estudados e cada pesquisador ou entidade ficou responsável por uma parte do estudo. O trabalho inicial de seleção das variedades viáveis para o estudo será feito pela Embrapa.

Quando a biotecnologia entra no jogo

Segundo Antônia Aquino, gerente de produtos especiais da Anvisa, não há no Brasil solicitações de avaliação para compostos funcionais presentes em alimentos geneticamente modificados. A Comissão Nacional Técnica de Biossegurança (CTNBio), que analisa os pedidos e registros de alimentos geneticamente modificados, também não tem aprovações desse tipo. Apesar disso, das controvérsias em torno da definição do termo e dos protocolos de pesquisa no país estarem apenas no início, pesquisadores brasileiros já sinalizam o rumo que se pretende dar a essa área de pesquisa, que já é realidade nas articulações entre as indústrias de alimentos e farmacêutica, agronegócios e marketing.

E não é à toa que esses interesses se articulam, afinal, apesar dos debates em torno das estimativas de mercado não apresentarem números específicos, a expectativa de ganhos é bastante significativa.

Em entrevista ao website do Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB), a nutricionista e professora da Universidade Federal de Viçosa, Neuza Brunoro, afirma que a biotecnologia é uma importante ferramenta, que pode aumentar e melhorar as características nutricionais e funcionais dos alimentos. Como exemplo, ela cita a aplicação da biotecnologia para redução do teor de fitato no feijão, o que aumentaria a biodisponibilidade de ferro e zinco, e o enriquecimento do arroz com vitamina A, que foi produzido pela empresa Monsanto e ficou conhecido como arroz dourado. Em ambos os casos, o principal argumento para a produção desses alimentos geneticamente modificados é solucionar problemas de desnutrição ou subnutrição, em especial em países em desenvolvimento. Apesar disso, a maior parte dos compostos funcionais pesquisados estão relacionados com doenças crônicas e degenerativas, prevalentes nos países desenvolvidos.

José Alfredo Arêas considera que os alimentos funcionais não são uma solução para problemas como a desnutrição ou a subnutrição. O economista David Hathaway vai além, colocando como contraponto aos alimentos funcionais, a multi mistura usada em programas de alimentação, como o da Pastoral da Criança, que pode ser obtida a um valor muito mais baixo. Em sua opinião, os alimentos funcionais são produtos carregados de tecnologia e investimento, para agregar valor e criar novas necessidades ou ilusões.

Luiz Eduardo de Carvalho, professor da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concorda com Hathaway afirmando que antes mesmo de haver uma definição sobre o que são alimentos funcionais, os produtos e as propagandas sobre eles já estavam sendo veiculadas. “A normatização veio depois. Não veio para categorizar, limitar, orientar. A legislação veio para legitimar, viabilizar e formalizar uma situação pré-dada”, questiona ele complementando: “muitos ganham com essa situação, e outros, os consumidores, alimentam seus sonhos e fantasias com isso como, por exemplo, saber o que se pode comer para deixar de ser careca”.

Carvalho critica a mídia por apresentar a questão sem uma visão crítica. “Falam em melancias e licopenos, mas isso sempre existiu. Todo alimento pode ser considerado funcional. Na verdade, o que se faz é uma propaganda subliminar que termina abrindo as portas para a liberação de fórmulas industrializadas, com rótulo, propaganda e preço de remédio, logrando registro para tudo, sem ter que provar nenhuma das propriedades terapêuticas e farmacológicas anunciadas, prometidas e cobradas. Em suma: registra-se fácil e barato, como comida, mas vende-se como remédio”, conclui ele.

(MK)

Para saber mais leia: “Nutracêuticos: Um desafio normativo

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Atualizado em 10/09/2005

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