A religião
constitui-se em objeto de interesse de diversas disciplinas
acadêmicas, como a história, a sociologia, a antropologia
e a geografia. Na primeira metade do século XX, a
temática é investigada por Paul Fickeler (1999 [1947]),
que realiza um excelente estudo sobre questões fundamentais na
geografia da religião em Grundfragen der religions
geographie; por Pierre Deffontaines, na obra Geográphie
et religions, em 1948 e por Maxmilien Sorre, que evidencia os
elementos religiosos nos textos geográficos em Rencontres
de la géographie et de la sociologie (1957).
No final dos anos 60, os
estudos geográficos da religião eram fortemente
inspirados pela geografia cultural da Escola de Berkeley, sendo David
Sopher o geógrafo de maior expressão. Em Geographie
of religions (1967), Sopher analisa os fenômenos religiosos,
abordando a interação espacial destes com uma dada
cultura e seu ambiente terrestre complexo entre diferentes culturas.
Nas três
últimas décadas, a religião vem atraindo
significativa atenção da ciência geografia. Isto se
retrata no interesse em estudar as peregrinações aos
santuários. Destacam-se: H. Tanaka (1981), que analisa a
peregrinação budista na ilha de Shikoku, no Japão;
R. King (1972), que aborda a peregrinação islâmica
e a organização espacial fortemente marcada pelo ritual
na cidade de Meca, G. Rinschede (1985) e Wunenburger (1996) analisam a
convergência dos fiéis e sua vivência no sagrado
dentre outros. No desenvolvimento recente da perspectiva
geográfica da religião, descobre-se a
contribuição de Mircea Eliade (1959, 1962, 1991), na qual
o conceito de sagrado e profano é elaborado. Segundo Eliade,
ambos constituem a essência da religião.
A fé
católica no contexto político-religioso é o ponto
de partida para o entendimento do território brasileiro.
Territorialidade, a Igreja Católica Apostólica Romana e
sua dinâmica dão o foco central e continuidade aos estudos
de geografia da religião que temos realizado nos últimos
quinze anos (Rosendahl 1996, 1997, 1999, 2001, 2003).
Religião,
território e territorialidade
A religião, na
perspectiva da geografia cultural, possui como foco central os
conceitos de sagrado e profano, conceitos tornados fundamentais com
Eliade (1962) e considerados numa abordagem geográfica por Tuan
(1979) e Rosendahl (1996, 1997, 1999 e 2001). Rosendahl focaliza-os a
partir de um tipo particular de hierocracia, o poder do sagrado, que se
manifesta espacialmente por uma organização territorial.
Ao reconhecer a instituição religiosa como agente modelar
do espaço torna-se necessário considerar a forma e a
intensidade do poder desse agente. A criação de novos
territórios, bem como a fragmentação ou a
fusão de outros envolve inúmeras
localizações regionais, nacionais e internacionais,
à semelhança do papel também exercido pelas
grandes corporações. (Corrêa, 1997). O
território e a territorialidade, conceitos chaves na geografia,
serão considerados a partir das contribuições de
Sack (1986) e Bonnemaison (2002 [1981]). Religião e
território, de um lado, e religião e territorialidade, de
outro, serão relacionados no item a seguir.
(a) Religião e
território
Nos tempos atuais o
território, impregnado de significados, símbolos e
imagens, constitui-se em um dado segmento do espaço, via de
regra delimitado, que resulta da apropriação e controle
por parte de um determinado agente social, um grupo humano, uma empresa
ou uma instituição. O território é, em
realidade, um importante instrumento da existência e
reprodução do agente social que o criou e o controla. O
território apresenta, além do caráter
político, um nítido caráter cultural,
especialmente quando os agentes sociais são grupos
étnicos, religiosos ou de outras identidades. O caráter
político do território representa um aspecto de forte
interesse em nossa pesquisa. Nas reflexões de Sack (1986), a
Igreja Católica reconhece a política e controla
diferentes tipos de território, englobando dois amplos tipos: o
primeiro inclui os templos, os cemitérios, os pequenos
oratórios à beira da estrada e os caminhos percorridos
pelos peregrinos que são, entre outros, os meios visíveis
pelos quais o território é reconhecido e vivenciado; o
segundo inclui sua própria estrutura administrativa. A Igreja
Católica Apostólica Romana vem mantendo uma unidade
político-espacial. Estamos nos referindo aos territórios
demarcados, onde o acesso é controlado e dentro dos quais a
autoridade é exercida por um profissional religioso. O
território religioso constitui-se, assim, dotado de estruturas
específicas, incluindo um modo de distribuição
espacial e de gestão de espaço. A hierocracia inscreve-se
nos edifícios da Igreja, lugares sagrados, paróquias e
dioceses. Reconhece-se três níveis hierárquicos de
gestão do sagrado. O primeiro nível hierárquico
administrativo situa-se na sede oficial, no Vaticano. O segundo e
terceiro níveis hierárquicos
político-administrativos da gestão religiosa são,
respectivamente, a diocese e a paróquia. Ambas unidades
territoriais fortemente ressaltadas em nossa pesquisa.
Lecocuierre e Steck
postulam que “a única e verdadeira unidade territorial de base
da Igreja Católica é a diocese” (1999: 53). A diocese
é evocada como território religioso verdadeiramente
presente e atuante no processo de regulação e
religiosidade católica. A referência primordial é a
comunidade de crentes, que constitui no espaço de
aproximação entre o regional e o universal, isto
é, entre as ações de controle pastoral regional e
as ações na escala do mundo. Lembremos que o
território favorece o exercício da fé e da
identidade religiosa do devoto. Sendo assim, a paróquia é
sempre evocada como território principal da vida das comunidades
locais. Ela oferece um notável exemplo de
“organização da vida social e íntima dos
habitantes, pontuando o tempo cotidiano da comunidade” (Lecocuierre e
Steck, 1999: 63). A paróquia deve ser reconhecida como o
território onde se dá o controle do cotidiano, porque ela
está na escala da convivência humana. Lugar de
aproximação entre o local, o regional e o universal
(Rosendahl e Corrêa, 2003).
As relações
de poder que se estabelecem no território remontam às
mais antigas civilizações, nas quais a dimensão
espacial já era reconhecida como instrumento de
manutenção, conquista e exercício do poder de
extrema importância. O conceito de território proposto por
Souza (2001) pode ser compreendido em sua flexibilidade, sua
elasticidade formal e de conteúdo, expressas na
relação que desenvolve com as noções de
espaço e tempo. A organização interna dos
territórios da Igreja é dinâmica, móvel no
espaço. Os territórios religiosos se modificam há
vários séculos, quer por criação de novas
dioceses, quer por fragmentação das paróquias.
“Acontecimentos importantes induzem a uma transformação;
mesmo que seja visto como recuo ou avanço, o território
é modificado aparecendo como o que melhor corresponde à
afirmação do poder” (Rosendahl, 2001: 10). É
justamente a não rigidez no tempo e no espaço a
característica que garante a compreensão das
territorialidades, sejam elas formais, informais, perenes ou fugazes.
(b) Religião e
territorialidade
A territorialidade
proposta por Sack (1986) é definida como uma estratégia
de controle sempre vinculada ao contexto social na qual se insere.
É uma estratégia de poder e manutenção
independente do tamanho da área a ser dominada ou do
caráter meramente quantitativo do agente dominador. A
territorialidade deve ser reconhecida, portanto, como uma
ação, uma estratégia de controle. Torna-se
importante compreender o fenômeno religioso neste contexto, isto
é, interpretar a “poderosa estratégia geográfica
de controle de pessoas e coisas sobre territórios que a
religião se estrutura enquanto instituição,
criando territórios seus” (Rosendahl, 1996: 56). O
território religioso qualifica-se como hierárquico e
burocrático.
Territorialidade
religiosa, por sua vez, significa o conjunto de práticas
desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de
controlar um dado território, onde o efeito do poder do sagrado
reflete uma identidade de fé e um sentimento de propriedade
mútuo. A territorialidade é fortalecida pelas
experiências religiosas coletivas ou individuais que o grupo
mantém no lugar sagrado e nos itinerários que constituem
seu território. De fato, é pelo território que se
encarna a relação simbólica que existe entre
cultura e espaço. O território torna-se, então, um
geossímbolo (Bonnemaison, 2002 [1981]). Na análise deste
geógrafo a territorialidade está fortemente impregnada de
um caráter cultural. É por intermédio de seus
geossímbolos que a religião de um grupo imprime marcas
que identificam e delimitam um dado território religioso.
A territorialidade da
Igreja Católica é complexa. A sua história no
Brasil revela a permanência de antigas divisões
administrativas herdadas de uma tradição oriunda da Idade
Média e ainda adotadas pela Igreja Católica (Sack, 1986).
Tais territórios foram modificados ao longo dos séculos.
A visibilidade da transformação territorial hoje
não é perceptível se não estudarmos mapas e
textos relacionando os retrocedimentos, os deslocamentos das
fronteiras, as criações ou o desaparecimento de
territórios (Élineau, 1991). No Brasil a territorialidade
da Igreja Católica caracteriza-se por territórios amplos,
vazios ou superficialmente administrados por profissionais religiosos.
Descrever e interpretar as territorialidades diversas resultantes de
estratégias utilizadas pela Igreja Católica no Brasil em
seu processo de domínio será objeto de interesse a
seguir.
Zeny Rosendahl
é professora do Departamento de Geografia da UERJ.