http://www.comciencia.br/reportagens/2005/02/13.shtml
Autor: Renata Marson Teixeira de Andrade |
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Um povo esquecido: projetos apagam a biodiversidade e o território tradicional no Rio São Francisco Renata Marson Teixeira de Andrade Em 1997, a Agência Nacional de Águas (ANA) foi criada pela Lei 9433/97 para garantir uma administração neoliberal mais descentralizada e “democrática” de recursos hídricos no Brasil. De acordo com o novo código de águas, a atribuição da ANA foi formar comitês de bacias para implementar políticas de rios e, principalmente, políticas de recursos hídricos com maior transparência e participação dos usuários na formação e implementação dessas políticas. Tais comitês são compostos de participantes vindos do setor privado, sociedade civil, ONGs, grupos indígenas, e três níveis de representação do governo (municipal, estadual e federal). Para aconselhar o Comitê do Rio São Francisco, por exemplo, foi preparado um grande estudo, com mais de quarenta relatórios, o GEF-São Francisco , entre 1998 e 2004. Um desses relatórios recomendou ao Comitê de Bacia do Rio São Francisco a introdução de projetos de aqüicultura para melhorar a economia da região abaixo da barragem de Xingó, a última barragem construída ao longo do rio principal. A razão para investir em aqüicultura, de acordo com o coordenador do estudo de ictiologia no baixo São Francisco, realizado para o componente ambiental do GEF, Fábio Castelo Branco, é que “a região do baixo Rio São Francisco tem sofrido grande declínio de peixes por causa da perda do habitat ecológico, e tanto o peixe migratório que sustenta a pesca artesanal quanto o próprio pescador artesanal estão se tornando espécies em extinção” . Assim, o GEF-São Francisco recomenda o uso de pacotes tecnológicos como a tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus), uma espécie não-nativa, e do peixamento com espécies nativas cientificamente estudadas como curimatã-pacu (Prochilodus marggravii) e a matrinchã (Brycon lundii). A aqüicultura e o peixamento passam a ser considerados a “salvação técnica”, a “melhor opção lucrativa de mercado” para substituir a “pesca artesanal em declínio” no baixo São Francisco. O problema desses relatórios técnicos ao afirmar que a pesca artesanal como atividade cultural e econômica irá desaparecer, é que se assiste passivamente à progressiva extinção dos grandes peixes migratórios endêmicos do rio. O estudo ictiológico feito para o GEF veio de um estudo científico com apoio da Universidade de Alagoas e do Instituto Xingó. Esta última instituição trabalha com o desenvolvimento de projetos de aqüicultura no reservatório de Xingó como medida mitigadora da diminuição dos peixes na região desde que a barragem de Xingó foi construída pela Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco). Fica aqui a pergunta: estariam esses cientistas ajudando os investidores querendo expandir o mercado de tilápia para exportação ou os pescadores artesanais tentando preservar sua cultura e a biodiversidade de peixes nativos do Rio São Francisco? Aceitar que haja um genocídio cultural é assinar uma carta contra a biodiversidade deste rio, contrariando a própria legislação ambiental que protege os peixes migratórios. É reconhecido o papel da aqüicultura na geração de renda e de alimento mundialmente, porém os impactos ambientais e sociais que essa atividade gera precisam ser analisados com mais cuidado. As leis ambientais, por outro lado, têm restringido o pescador de exercer sua atividade econômica, ao proibir a pesca não-esportiva durante a fase de reprodução dos peixes no baixo São Francisco entre dezembro e março. Todavia, mesmo com essa regulamentação da pesca, os estoques de peixe e sua diversidade continuam em declínio . Além disso, não existe uma legislação ambiental que tome providências para regular uma das causa primárias do declínio da população de peixes, ou da ictiofauna no baixo Rio São Francisco: a falta de cheias naturais. Os pescadores da cidade de Penedo, em Alagoas, estão desde 2003 reinvindicando a necessidade de se criar cheias artificiais, ou seja, liberar águas dos reservatórios durante o período no qual as cheias naturais ocorreriam. De acordo com esses pescadores, a água que chega no baixo São Francisco vem “toda coada”, sem sedimento, e “fraca”, sem vazão suficiente, condições que complicam a reprodução natural dos peixes. Proibir o pescador artesanal de pescar durante a fase de reprodução dos peixes não foi uma tarefa fácil, porém o desafio é proibir que as barragens de Sobradinho e Itaparica segurem as águas durante esse mesmo período para assim os peixes, que dependem de cheias para se reproduzir, encontrem as condições ideais do ecossistema que assegurem sua reprodução. Porém ainda não existe uma lei ambiental que estabeleça as vazões mínimas que dariam as condições de habitat necessárias para que os peixes possam se reproduzir. Se os cientistas que fizeram o estudo do GEF tivessem em mente restaurar a biodiversidade no rio, teriam seguido o exemplo de cientistas das universidades de Davies e Berkeley do estado americano da Califórnia . Se os cientistas brasileiros tivessem decidido investir num estudo do efeito das cheias artificiais ou “cheias ecológicas” para restaurar, por exemplo, a população de surubim (Pseudoplatystoma coruscans) e de dourado (Salmimus brasiliensis) no baixo São Francisco, este relatório estaria valorizando a biodiversidade e a presença do pescador artesanal nessa região. Ao mesmo tempo, o GEF-São Francisco identifica num mapa (Figura 1) a presença de sérios conflitos que devem ser levados em consideração para o plano da bacia. Entre esses conflitos está o projeto de transposição e a navegação fluvial. Incrível que mesmo aqui, o GEF-São Francisco tenha omitido importantes conflitos envolvendo a pesca artesanal, como se a pesca artesanal não existisse. Seria essa omissão inocente? Enquanto isso estudos realizados por pesquisadores canadenses e brasileiros sobre os desafios da pesca no Rio São Francisco têm identificado conflitos entre a pesca artesanal e outras atividades econômicas, em várias localidades ao longo do Rio São Francisco. Seria prudente que o Comitê da Bacia do Rio São Francisco levasse em consideração os resultados encontrados por pesquisadores independentes do GEF-São Francisco ao implementar políticas que visem resolver os conflitos sociais no rio mais seriamente.
Figura 1. Potenciais conflitos e desafios para gerenciar a Bacia do São
Francisco. GEF-São Francisco. (2004) O Projeto de Transposição segue a versão original de 2000 , onde aparecem os mesmos mapas representando a porção do Rio São Francisco que cruza a região mais seca do NE, o sistema de aquedutos que serão construídos para tomar água do rio para os sistemas de açudes fora dos limites da bacia de SFR. Um desses mapas mostra onde as estações de bombeamento serão construídas ao longo o rio e os estados que doarão água. Outro mapa mostra os estados doadores e receptores da água do SFR. Este mapa especialmente, representado na Figura 2, é de grande interesse por várias razões, mas particularmente pelo o que não foi mostrado.
Este mapa do projeto (Figura 2) não leva em conta o Rio São Francisco abaixo das estações de bombeamento, não mostra outros usos de água além de irrigação, para agricultura de exportação, e uso urbano. Não leva em conta os usos ambientais e econômicos das comunidades tradicionais ao longo da região, como as tribos dos povos Tukrá, nem das comunidades tradicionais de quilombos e de pescadores artesanais, sendo que todos têm voto no comitê da bacia do Rio São Francisco, e são contrários à transposição. Este mapa é alarmante, dado que nas várias cidades abaixo da tomada da água para a transposição, vivem a maior parte da população de comunidades tradicionais. Parece até mais alarmante, quando se considera que as ilhas, várzeas e águas do Rio São Francisco sejam tão centrais para a identidade e a economia destas comunidades tradicionais. E essas comunidades nunca outorgaram seus territórios tradicionais para o governo brasileiro. Contrastando com as Figura 1 e Figura 2, a Figura 3 mostra o mapa de um documento produzido pelo Ibama exibindo o território ocupado pela comunidades tradicional de ribeirinhos-não-amazônicos ou varjeiros, que concidentemente representam o território ocupado pelo Rio São Francisco, como pode ser visto na linha cinzenta assinalada com um círculo vermelho. O varjeiros, ou varzeiros, de acordo com Diegues e Arruda (2001) , são populações descendentes de africanos e outros grupos indígenas tradicionalmente vivendo ao longo do Rio São Francisco e na sua planície de inundação: ilhas e várzeas. Aqui se inclui o pescador artesanal do Rio São Francisco como parte desse grupo de varzeiros, esses últimos mostrados como populações tradicionais, que usam técnicas seculares e artesanais de produção de peixe e de arroz, com enorme importância para a cultura, a economia e a identidade ribeirinha ao longo do rio.
O mapa na Figura 3 e o discurso do ex-diretor do Probio iluminam o significado e a importância da representação territorial para essas comunidades tradicionais. Territórios tradicionais, ausentes nos mapas do GEF São Francisco e dos Projetos de Transposição, são agora presentes na Figura 3, representando a ocupação histórica de terras por comunidades tradicionais não-indígenas. Para partidários de direitos de comunidades tradicionais, esse mapa do território tradicional levanta perguntas pertubadoras. Como era que, em 2005, depois de quatro anos de longo conflito entre comunidades tradicionais e parte do governo federal e estados brasileiros favorável à obra, era completamente natural que o Rio São Francisco fosse novamente concebido como um bem econômico e de lazer: eletricidade, aqüicultura, irrigação, represas, e canais, e mesmo como parque nacional para preservação ambiental, turismo e recreação, sem referência alguma às práticas econômicas das comunidades tradicionais? Quem autorizou apagar a presença dessas comunidades? E por que a imprensa está tão disposta a entender esse conflito sobre o Projeto de Transposição em 2003 e 2005 nestes termos ? Os estudos do GEF e o “novo” Projeto de Transposição do São Francisco revelam “imaginários ambientais” que vêm apagando as relações de uso e ocupação entre comunidades tradicionais e o rio e seu território anfíbio. Afinal, muitas dessas várzeas e ilhas foram e ainda são ocupadas por povos indígenas e pescadores-lavradores de origem africana há mais de quinhentos anos. Esses estudos vêm omitindo os conflitos entre essas comunidades e os outros usuários sobre o uso das águas e da ocupação de seu território ao longo do São Francisco no passado e no presente. Esses “imaginários ambientais” tentam limitar o tipo de reivindicações epistemológicas, políticas e territoriais que essas comunidades tradicionais podem e poderão fazer sobre o Rio São Francisco no presente e no futuro. A marginalização dos varzeiros e dos pescadores artesanais nas políticas de recursos hídricos não é um resultado somente de como a natureza (do rio, neste caso) tem sido concebida por estudos técnicos. Esse processo de marginalização é também facilitado através de instrumentos legais e políticos, utilizados a favor do poder coercivo do Estado e das grandes indústrias, lobbies e investidores com interesse de expandir seus negócios na região. Assim, devem-se discutir os conceitos de modernidade e progresso, cultura e natureza , imperialismo, localismo e globalização , que têm se infundido profundamente nas velhas e novas instituições do governo que atuam hoje na região. Ao observar uma série de falhas cognitivas e deslocamentos discursivos por parte dessas instituições, como foi feito neste artigo, pode-se evidenciar a omissão institucional que evita olhar e reconhecer a presença física e política das comunidades tradicionais que aí vivem. Essas falhas e esquecimentos não são inocentes; elas justificam os interesses políticos e territoriais da elite brasileira, ligada a uma elite global, no território tradicionalmente ocupado, por exemplo, por descendentes de índios e negros pescadores e varzeiros no Rio São Francisco e em outros rios brasileiros. Renata Marson Teixeira de Andrade é doutoranda no Grupo de Energia e Recursos Naturais na Universidade da California, Berkeley. Notas
Referências VBA .2000. A inserção regional do Projeto de Transposição do Rio São Francisco para o Nordeste setentrional – A integração das águas com o Rio Tocantins. – Ministério da Integração Nacional. Fortaleza, Ceará. Ward, D. 2003. Water Wars: Drought, flood, folly
and the politics of thirst. Riverhead Books. New York. |
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Atualizado em 10/02/2005 |
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