http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/10.shtml
Data de publica��o: 10/10/2004 |
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Os discursos da ci�ncia na fic��o Haenz Guti�rrez Quintana ![]() Artificial intelligence (2001), filme baseado no conto futurista "Supertoys last all summer" (Superbrinquedos duram o ver�o todo), do escritor brit�nico Brian Aldiss, idealizado por Stanley Kubrick e produzido, roteirizado e dirigido por Steven Spielberg, trata da possibilidade de codificar emo��es em redes neurais implantadas em um rob�-crian�a no contexto de uma civiliza��o onde seres mec�nicos s�o feitos para aliviar o fardo da vida dos humanos. Assim, o professor Hobby (William Hurt) cria a m�quina inteligente e sens�vel capaz de amar e de sonhar que, conseq�entemente, � capaz de p�r em exerc�cio a sua vontade: O meca David, como o boneco de madeira criado por Gepeto, deseja se tornar um menino de verdade. No site do filme (http://aimovie.warnerbros.com) � a �fada azul� que vincula as propostas do filme com a realidade, atrav�s de informa��es relevantes fornecidas mediante percursos hipertextuais focalizados. Desde antes do lan�amento do filme at� hoje o site permanece na web ligando quest�es relacionadas � rob�tica aut�noma e � intelig�ncia artificial. O site se vale de abundante informa��o para atualizar o mundo da obra de fic��o cient�fica arquitetada pelo trio Aldiss, Kubrick e Spielberg. Se o filme trata da possibilidade de criarmos m�quinas a nossa imagem e semelhan�a que, para todos os prop�sitos, se comportem como seres humanos, o site do filme, fundamentalmente, nos coloca a par dos avan�os cient�ficos que potencializam essa id�ia e das quest�es morais decorrentes. A intelig�ncia[1] dos discursos da ci�ncia na fic��o. A capacidade de antecipar o futuro e de elaborar planos de acordo com essa antecipa��o no contexto de um ambiente social complexo � uma das propriedades fundamentais do funcionamento do c�rebro humano, segundo Dam�sio (2003:31). A fic��o cient�fica enquanto modalidade narrativa e discursiva se aproxima desse funcionamento. A narrativa de fic��o cient�fica permite que discursos sobre a ci�ncia e/ou avan�os cient�ficos sejam formulados de uma maneira particular, constituindo um tipo espec�fico de intera��o, podendo ser realizada em um leque de m�dias diferentes. Para Philip K. Dick, o deslocamento conceptual seria a ess�ncia da fic��o cient�fica[2]. De acordo com o autor, os mundos das obras de fic��o cient�fica s�o mundos que n�o existem de fato, mas que seriam decorrentes do mundo concreto dos autores de fic��o cient�fica. Isto �, o mundo dado serviria como ponto de partida n�o para antecipar quando chegaremos a outras gal�xias, ou para prever contatos imediatos de qualquer tipo com seres extraterrestres ou, menos ainda, para apontar quando desenvolveremos a tecnologia que possibilitar� a cria��o de seres artificiais inteligentes e afetivos, mas para especular sobre porqu� o homem deseja fazer essas coisas e sobre como as conseq��ncias dessa possibilidade poderiam afetar a vida em nosso planeta. Deste modo, o deslocamento conceptual faria com que um novo mundo virtual surgisse enquanto simulacro liter�rio do potencial dos avan�os cient�ficos. Os autores de FC descrevem, ent�o, mundos virtuais sem renunciar � verossimilhan�a cient�fica. Os avan�os cient�ficos servem de apoio para �materializar� e enunciar mundos virtuais. Isto mostra a preocupa��o dos autores de fic��o cient�fica em sintonizar-se com a ci�ncia de seu tempo para logo projet�-la no futuro pr�ximo ou distante enquanto possibilidade, isto �, tomando cuidado para que suas especula��es sejam veross�meis e possam servir para que o p�blico reflita sobre seus alcances, visto que a maior parte do contato das pessoas comuns com a ci�ncia se d� atrav�s da media��o do cinema ou da literatura. A este respeito o cientista brasileiro Marcelo Gleiser, professor de f�sica do Dartmouth College, em Hanover (EUA) e colunista da Folha-ci�ncia, escreve: Oitenta anos de ci�ncia em Hollywood contribu�ram para a cria��o de uma percep��o p�blica que oscila entre o vener�vel e o assustador. A ci�ncia cria e destr�i. Novas tecnologias trazem sempre a dupla promessa do bem e do mal. Os filmes, em sua grande maioria, s�o representa��es dessa dualidade. (...) Existe uma rela��o dual entre o imagin�rio e o real, que � inspiradora n�o s� para os que v�o ao cinema, mas para os que fazem ci�ncia e v�o ao cinema. Afinal, se a realidade muitas vezes � mais estranha do que a fic��o, a fic��o tamb�m pode motivar a nossa compreens�o do real: o impulso criativo tamb�m se alimenta de sonhos (...). O desconhecido � t�o necess�rio quanto o conhecido. E o que antes era apenas vis�o pode, um dia, se tornar realidade.[3] No site do Departamento de M�todos Matem�ticos do Instituto de Matem�tica da UFRJ encontramos um exemplo das afirma��es de Gleiser. Trata-se do trabalho sobre intelig�ncia artificial produzido por uma aluna de p�s-gradua��o movida pelas discuss�es em sala de aula do curso "Teoria do conhecimento�. Pautado pela interdisciplinaridade o trabalho em quest�o problematiza, do ponto de vista cient�fico, os assuntos levantados pelo filme de Spielberg acerca da intelig�ncia artificial[4]. �tica e responsabilidade com a intelig�ncia artificial A Intelig�ncia Artificial � um ramo da ci�ncia da computa��o dedicado a desenvolver equivalentes computacionais de processos peculiares � cogni��o humana. No filme Artificial intelligence, Spielberg especula sobre as raz�es que teria a ra�a humana para criar andr�ides inteligentes capazes de sentir e amar e sobre como as conseq��ncias dessa possibilidade poderiam afetar nossas vidas. O filme prop�e, tamb�m, uma reflex�o sobre o que significa criarmos c�pias imortais de n�s mesmos. Desta maneira, a proposi��o que Spielberg formula no filme diz respeito � �tica e � responsabilidade cient�fica e social que, de acordo com seus princ�pios e valores, deveriam orientar a rela��o do homem com o mundo e com as m�quinas: (...) o que importa � o que nos projetamos num mecanismo, numa m�quina. N�o se trata da m�quina nos amar, mas de quanto amor investimos nela e isso determina o quanto devemos avan�ar na cria��o de coisas que nos fazem lembrar de n�s mesmos. Acho que devemos ter muito cuidado em como n�s, como esp�cie, usamos nossa genialidade. (...) Eu acho que todos precisamos ter cuidado. Meu filme teve essa preocupa��o n�mero um. (...) precisamos assumir a responsabilidade pelas coisas que colocamos neste planeta e tamb�m pelas coisas que retiramos dele. De certa forma precisamos ter limites para os nossos avan�os, limites �ticos, morais e limites que nos digam: �ei, n�o podemos mexer com isso�. Um pouco disso foi discutido em Jurassic Park e muito mais foi discutido por Stanley Kubrick em A I.[5] Em A. I. Artificial intelligence, andr�ides tornam-se um elo essencial � estrutura da sociedade ap�s o mundo sofrer as conseq��ncias catastr�ficas do aquecimento global. Com os recursos naturais dizimados pela calamidade, muitas pessoas morreram de fome. Os governos foram for�ados a restringir a natalidade, medida que tinha por fim economizar os parcos recursos alimentares visando garantir a sobreviv�ncia da esp�cie. Isto explicaria, na l�gica do filme, que seres mec�nicos � e n�o criaturas biotecnol�gicas ou clones � fossem desenvolvidos para servir a ra�a humana em todas as tarefas da vida di�ria. Sem demora, na primeira cena do filme, Spielberg formula as raz�es que levaram ao desenvolvimento de seres mec�nicos complexos e as quest�es �ticas delas decorrentes. O vision�rio professor Hobbys, diretor da Cybertronics, prop�e a constru��o de uma crian�a-rob� que, al�m de ter membros articulados, fala articulada e rea��es humanas, seja capaz de amar de verdade seus pais programados. As id�ias do cientista ingl�s Alan Turing sobre uma m�quina universal capaz de realizar qualquer tarefa (desde que bem instru�da para tal)[6] assim como a hip�tese, tomada da neuroci�ncia, de que emo��es e sentimentos s�o chaves no funcionamento da consci�ncia e da racionalidade nos seres humanos[7], servem de substrato a proposta de Hobbys. A crian�a-rob�, provida da capacidade de amar, desenvolveria um mundo interior de sonhos, met�foras, intui��o e racioc�nio pr�prio. Eis a m�quina volitiva sobre a qual se erguer� o edif�cio da nova sociedade prevista pela rob�tica �bio-inspirada� de Hobbys. Seguidamente, uma colega do professor (April Grace) alerta para as conseq��ncias de tal empenho: n�o se trata apenas de criar um rob� que consiga amar. A quest�o seria: ser� que um humano conseguiria ama-lo? (...) Se um rob� ama verdadeiramente uma pessoa, que responsabilidade essa pessoa tem em rela��o a esse Meca? A atitude socr�tica da colega de Hobbys, isto �, o fato dela considerar problemas morais e humanos visando, mediante o di�logo, � defini��o do bem, � o tema central do filme. N�o � por acaso que S�crates � uma das palavras-chave do c�digo que ativa os sentimentos do rob�-crian�a a favor da pessoa que o profira. Desta maneira, a dupla Spielberg/Kubrick explana o sentido interior de todos os objetivos subordinados do filme. �Deux ex machina� para uma terra sem males Em Jurassic Park (1992) no que concerne a quest�o da verossimilhan�a, encontramos uma preocupa��o maior assim como solu��es mais complexas. O filme explora, em seu enredo, descobertas da engenharia gen�tica referentes �s t�cnicas de clonagem: �processo de produ��o assexuada, a partir de uma c�lula m�e, de um grupo de c�lulas (clones) geneticamente id�nticas entre si e � c�lula progenitora�. Ainda, Jurassic Park � estruturado como o relato de um projeto ut�pico.
No filme de Spielberg, o empres�rio megal�mano John Hammond (Richard Attenborough), empenhado em construir a disneyl�ndia do passado, numa ilha do Caribe, por meio de uma equipe de cientistas consegue obter clones de dinossauros a partir do DNA extra�do do sangue achado no est�mago de mosquitos pr�-hist�ricos que, ap�s terem picado diversos esp�cimes jur�ssicos, ficaram presos no �mbar de certo vegetal lenhoso. As tr�s personagens chaves do filme (Hammond, Grant e Malcolm) podem ser relacionadas com as duas formas de trabalhar com o conceito de ordem no caos apontadas por Marcondes (1997:25) e com a mec�nica newtoniana de espa�o e tempo absolutos. Hammond entende os sistemas como estruturas r�gidas e repetitivas. Ele acredita no controle, na previsibilidade e na reversibilidade dos processos; Grant encontra uma ordem interior no caos enquanto o Dr. Ian Malcolm (alter ego de Spielberg) v� os sistemas como complexos, irrevers�veis e com capacidade de dar respostas a novas situa��es. Estas oposi��es s�o sistematicamente frisadas no decorrer do filme e, como se sabe, no desfecho, a tese de Malcolm acaba se impondo.
O projeto ut�pico de Hammond consiste na (re) funda��o do �den. �J� que perdemos o estado virgem da inf�ncia do mundo, s� nos resta reinvent�-lo� (Sfez, p. 111). A engenharia gen�tica e a inform�tica s�o o Deux ex Machina que possibilita a Hammond erguer sua �terra sem males� para os dinossauros e para os visitantes do parque. Na ilha �Nublar� tudo estaria sob seu controle: a procria��o das criaturas, as visitas teleguiadas, o sistema de seguran�a... enfim, o acaso n�o teria vez. Por�m, Hammond n�o contava com o comportamento err�tico e aleat�rio de seus sistemas, n�o contava com os atratores estranhos: tormenta no Caribe, empregados corruptos, dinossauros recombinados (� seq��ncia incompleta de DNA dos dinossauros foi incorporada outra seq��ncia de DNA de um ran�deo capaz de transmuta��o sexual, eis o �erro l�gico� do sistema de Jurassic Park). O efeito borboleta era iminente. Vemos ent�o que, no interior do filme de Spielberg, os distintos desdobramentos do conceito de ordem no caos assumem o papel de intertextos. Hammond representa o �dem�nio de Laplace�, o paleont�logo Alan Grant (Sam Neill), pode figurar como o cientista que encontra uma ordem interior no caos aparente e o matem�tico Ian Malcolm, repetimos, leva � cena o modelo aberto da teoria do caos. Spielberg faz quest�o de pormenorizar as conex�es que seu filme tem com os temas dominantes da cultura e da ci�ncia na atualidade. Contudo, o recurso ao mosquito amb�rico (pedra fundamental do enredo) n�o se sustenta. O bi�logo ingl�s Jeremy Austin, depois de dois anos de pesquisa com insetos conservados em resinas, concluiu que � imposs�vel ressuscitar dinossauros ou qualquer outro bicho partindo de f�sseis, pois o material gen�tico danifica-se ap�s a morte. Sabe-se, o congelamento �, at� agora, a �nica t�cnica capaz de conservar material gen�tico. Haenz Guti�rrez Quintana � pesquisador associado do Mediatec � Unicamp, e docente da Universidade Anhembi-Morumbi e do Centro Universit�rio Anhanguera. Bibliografia ATLAN, Henri (1992), Entre o cristal e a fuma�a. Rio de Janeiro: Zahar. DAM�SIO, Antonio (2003).O erro de Descartes. S�o Paulo: Cia. Das Letras. MARCONDES, C., F., (1997), Super ciber - A civiliza��o m�stico-tecnol�gica do s�culo 21, S�o Paulo: �tica. SADOUL, Georges, (1987), Hist�ria del cine mundial. Mexico: Siglo XXI. SFEZ, Lucien, (1996), A sa�de perfeita. S�o Paulo: Loyola. SUTIN, (1995) The shifting realities of Philip K. Dick. NY: Pantheon. [1] No sentido da maneira de entender ou interpretar. [2] Cf., Sutin, (1995:99) [3] Cf., artigo intitulado �Ci�ncia e Hollywood� dispon�vel em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1008200302.htm [5] Cf., Depoimento no DVD I.A. T�tulo 15, Cap�tulo 1, Encerrando: Steven Spielberg: nossa responsabilidade com Intelig�ncia Artificial. [6] Em 1950 Turing escreveu um artigo intitulado �M�quinas Computacionais e Intelig�ncia� (�Computing Machinery and Intelligence�), Veja o texto em http://www.dmm.im.ufrj.br/~risk/Site_AI/ [7] Cf., Dam�sio (2003:12ss). |
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Atualizado em 10/10/2004 |
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