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Alba Zaluar

A polícia para a sociedade
Luiz Eduardo Soares

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Jacqueline Muniz

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A polícia para a sociedade

Ex-subsecretário de segurança do Rio de Janeiro, o antropólogo Luiz Eduardo Soares viveu uma história traumática, de ameaça e perseguição, em sua experiência administrativa no governo de Anthony Garotinho. De parceiro do governador na implantação de um novo programa de segurança pública, Soares acabou exilado nos Estados Unidos após denunciar a "banda podre" da polícia fluminense. O livro Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro conta essa história.

Hoje, Soares é assessor da secretaria de segurança de Porto Alegre. Na capital gaúcha, continua desenvolvendo suas idéias que incluem a participação da população na definição das políticas de segurança e um direcionamento de políticas sociais para os jovens. Em suas propostas, há a preocupação em gestar políticas pública que gerem efeitos a curto e médio prazo. Segundo ele, não é possível esperar a resolução do problema da injustiça social para que se combata a violência. A esquerda, ao atribuir as causas da violência apenas à injustiça social, tem deixado espaço para que os conservadores assumam o tema "nos seus termos, com as suas palavras, seus valores e conduzissem todo o processo político".

Com Ciência- O que levou o senhor a fazer esta transição da carreira de pesquisador para a carreira administrativa?
Luiz Eduardo Soares
- Várias circunstâncias na vida, situações que não são fruto de deliberação e projeto. Não resultado de uma intencionalidade clara. Uma série de acontecimentos foram provocando mudanças na minha vida e isso acabou se concretizando. Foram oportunidades que ocorreram, que surgiram e abriram opções que não estavam sendo contempladas antes e que eram compatíveis com a minha história de vida. Acabei decidindo que valia a pena o risco desta transição. Desde que lembro de mim como uma pessoa adulta, sempre associei militância, no sentido de defesa de certos projetos políticos e sociais, ou certos valores, ao trabalho acadêmico. Isso sempre esteve presente na minha trajetória e na época estudantil.Não foi uma surpresa radical a transição da vida acadêmica para o trabalho de gestão pública.

Com Ciência- Como tem sido o trabalho em Porto Alegre?
Soares
- Um trabalho desafiador, difícil, mas ao mesmo tempo fascinante. A segurança municipal é um novo campo que está emergindo hoje no Brasil. Ela sempre foi vista da perspectiva do estado, o recorte estadual sempre foi a referência, até por conta das determinações constitucionais. Cumpre ao estado o dever pela segurança pública. As instituições de segurança pública, as polícias, são dependentes do estado, são subordinadas ao executivo estadual. O município sempre abandonava este tema, porque é um tema espinhoso e escudado nesta determinação constitucional. Hoje, no entanto, o problema é tão grave que transbordou as dimensões do estado. A população está tão inquieta, perturbada, angustiada que já existe dentro dos governos municipais também, algum tipo de contribuição nesta área. No período eleitoral eles não querem saber se o problema federal, estadual ou municipal, querem é soluções. Os dirigentes municipais começaram a se render à evidência de que era indispensável elaborar políticas específicas, respeitando as determinações constitucionais. A novidade do trabalho na área municipal é elaborar políticas de segurança pública não policiais, ainda que possam e devam até contar com a cooperação da polícia. E que tenham uma orientação de abordagem, nos aspectos sociais e sejam políticas preventivas. As restrições e limitações impostas ao município podem se converter em virtudes, porque o impedimento do uso da força policial acaba estimulando a criatividade e alimentando o desenvolvimento de políticas do tipo preventivo. Hoje, no Brasil, emerge um campo novo, a segurança municipal, como novos atores, novos interlocutores, uma nova institucionalidade que começa ser a forjada na prática e com novas categorias e novos horizontes intelectuais e cognitivos. Nós estamos ajudando a inventar uma forma de recortar os problemas, defini-los e solucioná-los com o recursos institucionais que antes não eram usados com estes propósito e inventando novos instrumentos institucionais que sejam compatíveis com estes desafios e a especificidade deste momento.

Com Ciência- Você pode dar um exemplo destas políticas?
Soares
- Há um foco central óbvio que é a juventude. No Brasil há um genocídio que está exterminando sobretudo os jovens, pobres, do sexo masculino. O que é paradoxal e mais trágico é que este genocídio é autofágico, é fratricida porque os perpetuadores são também jovens, pobres, do sexo masculino. Este é o coração do nosso problema e o tráfico de drogas e armas constitui a principal fonte de recrutamento destes setores da nossa juventude para a dinâmica da violência. Qualquer política tem que partir do reconhecimento desta evidência e dobrar-se sobre o problema, sobre a necessidade de oferecer, senão a solução, que é impossível nesta globalidade, pelo menos encaminhamentos razoáveis nessa direção. O problema da juventude começa em casa, com a violência doméstica e, depois, se desdobra com a maternidade precoce e a demissão da paternidade. Se aprofunda com a incapacidade das escolas de oferecer um acolhimento integral, que seja subjetivo e afetivo, capaz de valorizar cada jovem e dotá-lo de auto estima, fazê-lo suprir as carências que ele por ventura tenha vivido em casa etc.

Tudo isso é complementado pela crise social e econômica, pela exclusão, pelo preconceito, pelo racismo, pelas estigmatizações, pelo processo tão genérico que nós chamaríamos de exclusão da cidadania. Ao município não cabe uma mudança estrutural, não cabe a responsabilidade pelas estruturas sócio-econômicas, o município pode pouco neste contexto. Mas há muito o que fazer para reduzir a violência mesmo sem que nós tranformemos as estruturas sócio-econômicas de fundo. A natureza dos projetos sociais que visam a redução da violência são políticas públicas capazes de interceptar as dinâmicas geradoras da criminalidade e da violência, produzindo efeitos imediatos, de curto prazo, no máximo de médio prazo. Isso que diferencia estas políticas públicas de outras voltadas para causas macro estruturais as quais exigem longo tempo de maturação. Se nós quisermos atacar o problema da violência, podemos circunscrever as questões relativas à violência doméstica, maternidade precoce, demissão da paternidade, o problema do recrutamento exercido pelo tráfico, a falta de acolhimento da juventude nas instituições públicas e os problemas conexos. E, para fazer isso, há políticas específicas de tratamento de cada uma destas questões, que tem que ser inventivas e sensíveis às especificidades.

Com Ciência- Tendo trabalhado no Rio e em Porto Alegre, como você compara estas duas cidades, é mais fácil trabalhar em uma que em outra?
Soares-
Claro, Porto Alegre é uma cidade muito mais organizada, muito mais bem administrada há muitos anos. Há uma história de investimentos aqui na área social. É uma sociedade que já se beneficia de quatro governos municipais do PT e isso tem conseqüências muito importantes. Ela está mais organizada, a sociedade é muito participativa, os problemas são menores, a cidade é menor, a cultura cívica está muito mais dinamizada pelo grau de politização aqui alcançado, há muitos fatores que concorrem para tornar Porto Alegre uma cidade de manejo mais fácil. É mais fácil administrar, é mais fácil intervir, é mais fácil mobilizar a sociedade, que está mais organizada, tem um amadurecimento político mais desenvolvido, o grau de organicidade é muito mais profundo e as ligações entre a sociedade e o estado, a sociedade e o governo municipal são mais desenvolvidas. O Rio de Janeiro é uma cidade muito difícil, muito complicada, com problemas gravíssimos em níveis de profundidade muito agudos, como já é conhecido.

Com Ciência- Você tem dito em diversas ocasiões que a esquerda tem que recuperar o tema da segurança pública. Você vê uma relação entre esta ausência com o fato de existirem poucos estudos sobre a violência, por parte da comunidade científica?
Soares-
É difícil saber quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. Se compararmos com outras áreas importantes, como a área econômica e política, nós veríamos que temos relativamente pouquíssimos especialistas. As elites brasileiras investiram na criação de um conjunto de experts de qualidade internacional na economia, saúde, educação etc. e podemos discordar inclusive dos técnicos que operam nestas áreas, mas é indiscutível a qualificação média alcançada. No entanto, na área de segurança pública nós temos um grupo muito pequeno e com um grau de formação mais fragmentária, mais autodidata, nós não dispomos aqui de escolas de pós-graduação e de estudos e pesquisa inteiramente dedicados a este tema. O tema da segurança pública parte da elaboração das políticas públicas de segurança. Então, se compararmos com as escolas de economia, ciência política, educação, saúde pública, vemos que, a despeito da importância relativa ser equivalente, há uma disparidade espantosa do número de quadros disponíveis, qualificados em cada uma destas áreas. Mesmo na imprensa você observa que os jornalistas econômicos tem um nível de sofisticação equivalente aos seus interlocutores da área na gestão pública e da universidade. São todos técnicos capacitados. Na política a mesma coisa. Na segurança pública, muitas vezes, são jovens repórteres ainda em formação que se tornam responsáveis pelas secções de polícia dos jornais e a imprensa trata este problema tão importante com uma superficialidade, às vezes uma irresponsabilidade imensa. Não há nenhuma sofisticação nas análises, nas avaliações e claro que isto expressa nossa pobreza na área intelectual e acadêmica e por sua vez re-alimenta esta pobreza e não concorre para uma cultura cívica mais madura nesta área. Para se ter uma idéia, há aproximadamente três mil grupos de pesquisadores das ciências humanas que se dedicam aos temas mais diversos no Brasil e, destes três mil, apenas 7 se dedicam ao estudo da polícia, sendo este um tema tão relevante e com um grau tão desafiador. Mas quando eu digo que a esquerda precisa fazer um esforço para se apropriar desta temática isso não tem a ver especificamente com o investimento na qualificação de quadros, claro que isto é importante e também é importante que qualifiquemos e ajudemos a qualificar o debate público nesta área, isto é fundamental.

Eem geral, quando digo isso, estou preocupado em enfatizar o fato de que, na nossa tradição de esquerda, a segurança pública simplesmente não era problema, porque nós considerávamos que a violência e a criminalidade não seriam senão epifenômenos, reflexos, conseqüências de causas econômicas. Nós nos negávamos a discutir a temática criminal ou a violência porque já tínhamos a convicção de que bastaria tratar das causas sócio-econômicas para que os problemas se resolvessem. Com isso acabávamos abrindo espaço para que os conservadores tomassem esta bandeira e definissem a temática e essa bandeira nos seus termos, com as suas palavras, seus valores e conduzissem todo o processo político. Hoje, nós já reconhecemos os prejuízos de dar importância enorme para as causas econômicas e sociais, pois há muito o que fazer no âmbito mais próximo do fenômeno da criminalidade e que é capaz de gerar uma redução na violência, mesmo nos marcos das injustiças econômicas que vivemos. Há muito o que fazer para tornar as polícias melhores, menos violentas e mais eficientes. Isso é evidentemente insuficiente para resolver os problemas, é claro, a insegurança é muito mais que um problema policial, mas as polícias são necessárias nesta resolução. Quer dizer, elas não são suficientes, mas são necessárias para esta resolução. Elas tem que deixar de ser só parte do problema para se tornarem parte da solução. Se nós pudermos aperfeiçoa-las e torná-las menos violentas e mais eficientes, mais comprometidas com a democracia e a cidadania, nós certamente estaremos dando uma contribuição relevante. Há muito o que fazer. E isso não era visto por nós há vinte anos, quando nós acreditávamos que apenas mudanças estruturais fariam sentido. Hoje eu acho que nós já temos mais sensibilidade para entender a necessidade de definir políticas específicas de segurança. Não são só políticas policiais. São políticas sociais mas com corte não estrutural. Com corte mais imediatista, digamos assim, no bom sentido da palavra, capazes de estarem em sintonia com a urgência dos problemas.

Com Ciência- O Brasil tem uma história longa de repressão por parte da polícia que pode ser somada ainda a uma herança que existe do período escravista. Você acha que estes fatores são presentes ainda?
Soares-
Claro, nós somos ainda herdeiros da ditadura e do Brasil escravocrata, até porque o que tem marcado a história brasileira é a continuidade. Nós temos sofrido muitas mudanças. O Brasil melhorou, se tornou mais livre e menos brutal nas relações sociais. Mas essas mudanças estiveram sempre circunscritas por limites estreitos e o que marcou fundamentalmente a história do Brasil foi sobretudo a continuidade e a conciliação das elites. As transformações foram negociadas por cima e há o caráter autoritário de todo este processo histórico . No caso particular das polícias ela foi esquecida. Sabe aquele filme "Esqueceram de mim", em que a família viaja no Natal para a Europa e esquece o filho em casa nos EUA?. È como se nós, na Constituição, tivéssemos partido para o mundo da democracia e esquecido em casa ou na caserna a polícia da ditadura. Nós esquecemos que teríamos que discutir as mudanças na polícia para adaptá-la aos novos tempos democráticos. E o capítulo da repressão policial, o capítulo pertinente à manutenção da ordem pública ficou esquecido e nós acabamos reproduzindo os padrões tradicionais que as ditaduras apenas radicalizaram.

Com Ciência- Ao mesmo tempo a polícia brasileira tem muitas histórias que dão conta do envolvimento dela com o próprio crime. Você acha que este envolvimento é algo localizado em algumas regiões ou disseminado por todo o país. É possível fazer essa transformação da polícia?
Soares-
É algo disseminado por todo o Brasil a promiscuidade entre a polícia e o crime. Mas em proporções distintas, que variam regionalmente. O problema existe, não há nenhum estado em que este problema não exista, mas a magnitude do problema varia muito. Mesmo assim acho que há possibilidade de mudança. Aliás, eu tenho que achar, nós temos que achar. Se não acharmos temos que fazer com que passemos a achar. Ou seja, mudar a realidade de tal maneira que as idéias otimistas se tornem plausíveis. Nós não podemos nos render, não podemos capitular e simplesmente reificar a celebração do status quo. Como é que um país de 170 milhões de pessoas vai se render a um punhado de policiais? Isso não é aceitável, não é possível. Temos uma sociedade com um potencial enorme de mudança, de intervenção, temos partidos políticos, temos movimentos organizados. Se não achamos que é possível mudar isso é porque não descobrimos a fórmula adequada, ainda não produzimos instrumentos necessários. Mas pode ser feito, basta ver a desproporção das forças, observar fatos históricos e acompanhar casos de outros países. Isso já foi feito em muitos outros países nós certamente podemos fazer isso. Mas temos que saber como e desenvolver políticas adequadas. Mobilizar governos inteiros e a população inteira e isso não vai ser simples, vai exigir coragem cívica, coragem política, nós vamos ter que começar a sacrificar as oportunidades e vontades eleitoreiras em nome de projetos sérios e consistentes. Vamos precisar para isso de partidos com compromissos sérios, compromissos de valor. Enquanto a política se reduzir ao mercado, for mero jogo liberal simplesmente regido pela mercadoria do voto - no sentido oportunista e individualista - nós não vamos sair do círculo vicioso. Vamos continuar acuados e reféns dos poderes mafiosos e dos segmentos corruptos da polícia. Mas, com outros compromissos, com outras lideranças, é perfeitamente possível romper isso. Até porque nós temos uma maioria de policiais honestos, corretos, e até em homenagem eles nós devemos reconhecer que esta possibilidade está perfeitamente dada no horizonte

Com Ciência- Quando as estatísticas de violência aumentam ou quando é mostrado algum caso espetacular na TV, a primeira resposta tem sido aumentar a verba e o poder da polícia. O senhor acha que estas são respostas adequadas?
Soares
- Eu acho que esta é uma pergunta muito genérica e qualquer resposta genérica está arriscada a ser equivocada. Os casos são distintos e devem ser tratados na suas peculiaridades. Mais polícia é em geral positivo num quadro de escassez de polícia, como é o nosso no Brasil. Mas apenas mais polícia não é suficiente, nem pode ser suficiente, porque a problemática da violência e da segurança pública ultrapassa a dimensão repressiva. Mais polícia também só pode ser conveniente quando nós estivermos falando de uma polícia honesta, correta, eficiente e respeitosa dos direitos humanos. Senão, mais polícia significa mais brutalidade e mais corrupção. Sem dúvida nenhuma a presença da polícia é um fator relevante na maioria dos casos, desde que sejam respeitados estes condicionantes. Mais polícia dificilmente será suficiente, quase nunca será suficiente, porque os problemas da segurança envolvem vários problemas e nós precisamos de um novo sujeito coletivo, uma nova abordagem e novas alianças com a sociedade. Uma abordagem que pense a segurança numa perspectiva complexa e integrada e que ela não seja vista como caso de polícia apenas. Um novo sujeito coletivo que seja interdisciplinar, multisetorial, que seja capaz de dar conta da pluridimensionalidade dos problemas da segurança para além das questões policiais; e novas alianças, no sentido de que as polícias, os estados e a sociedade têm que trabalhar cooperativamente a partir do primado da participação comunitária, com transparência e com envolvi

Atualizado em 10/11/01

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