Entrevistas
Aumento
da criminalidade está ligado ao tráfico de drogas
Alba Zaluar
A
polícia para a sociedade
Luiz Eduardo Soares
Polícia
brasileira
tem
história de repressão social
Jacqueline Muniz
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Aumento
da criminalidade está ligado ao tráfico de drogas
A
antropóloga Alba Zaluar é uma das mais experientes pesquisadoras
brasileiras do tema da violência urbana. Ligada atualmente à
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Zaluar tem pesquisado,
nos últimos anos, o cotidiano dos morros cariocas. Ela afirma que,
nas grandes cidades que já foram pesquisadas, por ela e por outros,
o crescimento da violência e as disputas entre as quadrilhas do
crime organizado estão diretamente relacionados.
Zaluar
defende as ações localizadas e uma transformação
da polícia, que rompa com a herança repressiva do regime
militar: "com políticas gerais, nós não vamos
resolver os problemas, temos que pensar em coisas mais localizadas, a
fim de sermos mais eficazes. E temos que ter uma polícia democrática,
com o policial consciente do seu papel, com uma relação
diferente com a população." Nessa entrevista, ela questiona
a tese de que a pobreza, a injustiça e a desigualdade social geram
automaticamente a violência, complexificando a questão. "Nós
temos uma concentração sim maior de certos tipos de crimes
na população mais pobre, mas isso também se deve
a uma conjunção de fatores. Mas nos bairros onde o tráfico
de drogas é mais atuante e mais poderoso, onde a polícia
quase não aparece e onde também se tem menos políticas
sociais, é que você tem as taxas mais elevadas".
Com
Ciência - Apesar de estarem crescendo, ainda não são
muitos os estudos das Ciências Humanas sobre o assunto violência,
principalmente se pensarmos na importância do problema. A que a
senhora atribui isso?
Alba Zaluar
- Eu acho que essa afirmação era muito mais válida
há alguns anos atrás. O número de pessoas que estudam
o assunto aumentou muito, o número de pesquisas realizadas também.
Mas ainda temos muita coisa a fazer. Por exemplo, existem pouquíssimas
pesquisas sobre vitimização, que são feitas anualmente
nos países de primeiro mundo como França, Inglaterra e Estados
Unidos. Essas pesquisas são muito importantes porque elas nos permitem
ter uma idéia a respeito daquilo que a gente chama a "cifra
negra", os crimes cometidos que não são registrados,
as vítimas que não registram nenhuma queixa. Isso vai desde
o assalto até a violência doméstica. Nessas pesquisas
também se pergunta as razões pelas quais as queixas não
foram feitas na polícia, porque não se procurou a justiça,
enfim, tem-se também um panorama de cidadania, do não uso
das instituições que deveriam estar servindo essa população.
Também temos uma idéia, a partir dessas pesquisas, quais
são os problemas que essas instituições apresentam
para a população. No que se refere, por exemplo, às
pesquisas feitas a partir dos dados do Ministério da Saúde,
que hoje são nacionais, eu posso e acho que estou sendo porta-voz
dos meus colegas, elas deram um imenso avanço, porque permitem
a comparação entre cidades, entre capitais, entre regiões
metropolitanas, entre estados e isso tem ajudado muito a compreensão
dos vários elementos que compõem esse caldeirão.
Não há uma causa, nem duas, nem três, são muitas,
que atuam, que desenvolvem uma química entre nós a fim de
que a gente tenha esse fenômeno do aumento brutal da violência
no país.
Com
Ciência - A maioria dos dados vem, então, do ministério
da Saúde?
Zaluar - Os nacionais. Ainda não temos dados nacionais baseados
nos registros policiais, isso porque os registros policiais diferem muito
de local para local, de cidade para cidade, de estado para estado. Não
há uma uniformidade. Há uniformidade para os atestados de
óbito, por exemplo, que é o que permite sabermos a respeito
das mortes violentas. No caso do registro policial nem tudo é registrado
pelas vítimas, nem tudo que é apresentado como queixa é
registrado pela polícia e aí temos que ver esse registro
com uma certa cautela. Mas, de todo modo, acho que avançou-se muito,
hoje nós temos muito mais conhecimento do que tínhamos há
dez ou quinze anos atrás, a discussão está cada vez
mais interessante para quem participa dela. Algumas coisas são
meio repetitivas, como sempre. O tema da pobreza como explicação
da violência continua em pauta e sou sempre obrigada a discutir,
estou um pouco cansada mas, mesmo assim, o aparecimento dos novos argumentos
é sempre uma coisa interessante que estimula o pensar.
Com
Ciência -Em geral, as respostas que são dadas para se combater
a violência oscilam entre aumentar o poder da polícia ou,
então, promover uma maior justiça social. O que é
preciso então para ir além dessas propostas padrão?
Zaluar - Eu não acho que o caminho seja aumentar o poder da
polícia. O poder da polícia já uma coisa extremamente
complicada. É uma pessoa armada, um ser humano que também
é capaz de falhas por estar com uma arma na mão e é
preciso, no meu entender, que esta pessoa, o policial, esteja muito bem
preparado para essa função, que ela não aja como
os bandidos. Isso continua sendo um grande desafio para a democracia no
Brasil, nós não conseguimos ter uma polícia democrática
ainda. Mas estamos em processo. Alguns estados já avançaram
mais que outros mas, acho que hoje temos uma idéia muito mais clara
a respeito de que polícia nós precisamos, para que esse
controle democrático da criminalidade se faça. Quanto à
outra questão, evidentemente que você já está
partindo do pressuposto de que a injustiça, desigualdade e a pobreza
que provocam a criminalidade. Não é. Nós temos inúmeros
exemplos disso. A criminalidade está no Congresso Nacional, está
no Judiciário, no juiz, está no mercado financeiro, está
nas grandes empresas também, que possuem caixa dois, que mandam
dinheiro para o exterior etc. Tudo isso são os chamados crimes
econômicos e, por causa desses crimes acabam sendo cometidos crimes
contra a pessoa, mesmo que seja através de um outro, o empresário,
o juiz, o deputado, o senador, que seja apenas o mandante, mas de qualquer
maneira há uma responsabilidade a respeito do crime cometido. Então,
nós temos uma concentração sim maior de certos tipos
de crimes na população mais pobre, mas isso também
se deve a uma conjunção de fatores. Nós já
fizemos análise, o professor Cláudio Beato fez essa análise
em Minas Gerais mostrando que justamente nos bairros onde o tráfico
de drogas é mais atuante e mais poderoso, onde a polícia
quase não aparece e onde também se tem menos políticas
sociais, é que você tem as taxas mais elevadas. Eu acho que
é por aí que a devemos caminhar porque, com políticas
gerais, nós não vamos resolver os problemas, temos que pensar
sempre em coisas muito mais localizadas a fim de sermos mais eficazes
e temos que ter uma polícia democrática, com o policial
consciente do seu papel, com uma relação diferente com a
população. E a população também tem
que mudar sua atitude em relação ao policial, é um
processo. Além disso, é obvio, todos nós estamos
de acordo que esse país é um país desigual e que
as políticas sociais têm que ser desenvolvidas, mas isso
não vai resolver o problema da criminalidade.
Com
Ciência - A que a senhora atribui essa distância entre a polícia
e a comunidade?
Zaluar - Isso vem de uma longa história, nós vivemos
uma ditadura militar que instituiu uma polícia militarizada, que
foi formada, preparada para lutar contra um inimigo interno. Até
hoje eles pensam dessa maneira, na destituição de um inimigo
interno, eles não pensam na defesa do cidadão. É
isso que todos nós, enfim, estamos envolvidos nesta luta, queremos
que mude. Basicamente é isso.
Com
Ciência - É possível também medir o impacto
que as drogas têm para o aumento da criminalidade tanto se pensarmos
no tráfico como se pensarmos nas pessoas que cometem crimes sob
o efeito das drogas?
Zaluar - Sob o efeito de drogas não. As pesquisas que eu conheço,
não aqui no Brasil, mas no exterior, mostram que se há alguma
droga sob a qual, cujo efeito se está no momento do crime cometido,
não são nenhuma das drogas ilegais. É muito mais
o álcool. Maconha então nem se fala, é ridículo,
não se tem notícia disso. O álcool é o principal
responsável pelos acidentes, pelos homicídios chamados culposos,
quando há uma vítima fatal em acidentes. Muito da violência
doméstica, dos chamados crimes passionais também são
cometidos sob o efeito de álcool e não vou descartar o fato
de que um percentual muito menor, entre 10% e 20%, é cometido sob
o efeito da cocaína, mas é um percentual muito menor. O
problema é que o usuário tem várias fases. Só
após o usuário estar na chamada fase da fissura, e aí
tem que ser droga pesada e não há essa distinção
no Brasil. Drogas que criam dependência química muito forte,
a necessidade de repetir continuadamente a dose, só nessa situação
que o usuário passa a cometer crimes. Ele vai progredindo na gravidade
do crime cometido. Começa furtando sua própria família,
depois o vizinho, depois está assaltando à mão armada.
Com
Ciência - Mas o tráfico tem um peso muito maior.
Zaluar - Certamente. Todas as pesquisas que eu fiz, as pesquisas de
campo e as pesquisas feitas com controle estatístico, mostram que
nos locais em que o crime organizado está em disputa é que
se tem uma criminalidade maior, uma criminalidade mais violenta. Aqui
no Rio de Janeiro, não há menor dúvida a esse respeito.
Cerca de 60% do município do Rio de Janeiro tem alguma conexão
com a droga. No Rio-São Paulo é em torno de 40%, mesmo assim
são taxas altíssimas se forem comparadas com o resto do
mundo, que aliás tem taxas de homicídio muito mais baixas
que Rio e São Paulo. Campinas também está uma taxa
ainda mais alta que São Paulo, 57/100 mil habitantes. Eu acho que
há tem cidades muito bem estudadas, em geral são as regiões
metropolitanas das capitais. Mas as outras, do interior estão recebendo
menos atenção, isso eu acho que é preciso mudar.
A criminalidade no interior está aumentando muito, o que certamente
tem a ver com as redes de tráfico que estão passando por
elas.
Com
Ciência - Você falou em soluções locais para
o problema. Até que ponto as pesquisas que são realizadas
em determinadas localidades podem fornecer dados que podem falar sobre
a violência no Brasil de uma maneira mais geral? Há como
se falar da violência no Brasil de uma maneira mais geral?
Zaluar - Sim, há. Por exemplo, nesses dados sobre as mortes
violentas a comparação é possível mas, evidentemente,
toda comparação exige certos cuidados. É preciso
comparar vendo as diferenças regionais que também existem.
Eu não posso afirmar, por exemplo, que a criminalidade aumentou
no Brasil todo por causa do tráfico de drogas, mas que certamente
no Rio de Janeiro, em Pernambuco, Espírito Santo, no interior de
São Paulo e na própria capital tem a ver com o tráfico
de drogas. Foi justamente quando começam as redes de tráfico
da cocaína a se estenderem pelo país é que, especialmente
nessas regiões, tem-se um aumento espetacular de vários
crimes, principalmente do homicídio. No Rio de Janeiro, na década
de 80, a taxa de homicídio triplicou. Na década de 90, em
São Paulo, ela duplicou. Isso é um indicador muito forte
de que esses dois fenômenos estão associados.
Com
Ciência -Há um trabalho seu em que fala-se dos rompimentos
dos laços sociais e das redes de solidariedade. Em termos de políticas
públicas é possível fazer algo para restabelecer
essas redes de solidariedade?
Zaluar - Sim, eu acho que o estado pode ser o mobilizador. Por exemplo,
na distribuição de uma série de serviços,
fazer com que a população se organize para recebê-lo.
Estimular a solidariedade significa também propor uma certa política
cultural que reúna pessoas de gerações diferentes.
Eu ando muito preocupada com o fato de que hoje os bailes são de
pessoas de apenas uma certa faixa de idade e esse é quase o único
lazer dos adolescentes, por exemplo, os bailes funk aqui do Rio de Janeiro.
Isso certamente contribui para o fato de que esses adolescentes se fecham
nos seus grupos e desenvolvem uma identidade de grupo de bailes muito
forte que propicia certas atitudes de desafio, de revolta, de exibição
de poder etc. E isso não acontece só na classe popular não,
na classe média aqui do Rio de Janeiro também está
cheio desses grupos.
Com
Ciência - Nesse mesmo trabalho você fala de um "etos
guerreiro" para a violência. Você pode explicar um pouco
melhor esse conceito?
Zaluar - Esse é um conceito do Nobert Elias que é um
sociólogo, um judeu alemão, que deixa a Alemanha nazista
e passa a maior parte de sua vida adulta como profissional na Inglaterra.
Lá ele faz este estudo, em que tenta entender o desenvolvimento
diferenciado do processo civilizatório da Alemanha, França
e Inglaterra. Ele cunhou esse termo para explicar porque, em algumas dessas
culturas, especialmente na Alemanha, existia o orgulho de destruir o adversário.
Na Alemanha há uma continuidade do duelo, proibido no século
XIX na França e na Inglaterra. Na Alemanha continua sendo uma instituição
até a Segunda Guerra Mundial envolvendo não só militares
mas pessoas comuns, desafiadas para o duelo por causa de mulheres, da
honra maculada. Elias compara esse etos guerreiro, esse prazer de destruir
o adversário em resposta ao desafio posto à sua masculinidade,
com o orgulho pelo controle das emoções e pelo desenvolvimento
do espírito esportivo, a aceitação de certas regras
para que se jogue um jogo em que todos tenham a possibilidade de permanecer
vivos, mesmo que uns vençam e outros percam [o etos civilizado].
Nesse tipo de jogo, saber perder é importantíssimo. Ele
analisa não só o esporte, mas também o jogo parlamentar,
que não visa obviamente a destruição do partido adversário.
Nas próximas eleições o partido adversário
pode vir a vencer.
Com
Ciência - Mas essa característica de competição...
Zaluar - A competição é outra coisa. A competição
não deixa de existir, nem o conflito, só que eles são
jogados de outra maneira. No etos civilizado lida-se com conflito e lida-se
com competição de outra maneira, em obediência à
regra que são aceitas por todos, consensualmente. Algumas regras
básicas do jogo são aceitas por todos. Então, a rasteira,
o bote, a mentira, essas coisas que não fazem parte do espírito
esportivo, mas sim da tentativa de ganhar de qualquer maneira, estariam
excluídos disso, seriam perversões desse ato civilizado.
Com
Ciência - Esse tipo de disputa não é algo que está
presente dentro da própria sociedade hoje, como sociedade capitalista
ou como uma competição entre indivíduos....
Zaluar - Isto está presente em todas sociedades. A disputa,
a competição e o conflito, elas estão presente em
todas as sociedades. Não existem sociedades em que isso não
aconteça o tempo todo. É como eu te disse antes, as sociedades
encontram diferentes maneiras de lidar com a competição,
com o conflito, com a disputa. Dizer que a nossa sociedade é competitiva
é simplesmente uma questão de graduação, na
verdade ela é mais competitiva do que aquela sociedade em que cada
macaco sabia qual era seu galho. Essa sociedade que estamos criticando
por causa da existência do mercado competitivo, na verdade ela é
mais democrática, porque todo mundo pode ir para a briga para ver
se consegue um galho melhor, não é isso? Tem esse sentido
positivo. Agora, o que está em discussão é que não
se pode deixar tudo por conta do mercado, porque ele não regula,
o que regula são as instituições, é a solidariedade,
o fairplay. Tudo isso são coisas que na verdade limitam a ganância,
que é a lógica central do mercado. A moral, as instituições,
as leis, as regras de convivência, a solidariedade etc, são
coisas que servem para limitar, para conter o mercado.
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