Brasil
ainda pode dobrar sua capacidade hidroelétrica
O sistema
elétrico brasileiro foi construído a partir dos anos 60
e baseou-se nas usinas hidroelétricas. Esse conjunto de usinas
espalhado pelo país criou um sistema de alta confiabilidade e
previsibilidade. "Planejado para longo prazo, era um sistema elétrico
inédito, que aproveitava a tropicalidade brasileira: grande quantidade
de chuvas, no verão do sudeste, e as chuvas no inverno no sul",
revela o engenheiro eletricista Olavo Cabral Ramos Filho, ex-superindente
de transmissão de Furnas Centrais Elétricas e atual diretor
da ONG Ilumina, dedicada à
questão energética.
Segundo Olavo Ramos, o Brasil, para seguir as ordens do FMI de controle
nos gastos públicos, interrompeu os investimentos no sistema
elétrico que iria ser privatizado. A solução para
a crise, segundo ele, ainda deveria ser baseada no sistema hidroelétrico,
complementado com formas alternativas de geração. Para
Ramos, as empresas estatais deveriam se tornar públicas, um modelo
intermediário entre o estatal e o privado, em que o patrimônio
continua pertencendo ao Estado, mas a gestão é feita pela
sociedade civil.
|
Hidroelétrica
de Furnas
|
Com
Ciência - Como o Brasil chegou à atual crise energética?
Olavo Cabral Ramos Filho -
Nos anos 60, o sistema elétrico brasileiro era muito incipiente.
O Rio de Janeiro era um sistema isolado, que operava em freqüência
diferente da maioria das outras cidades do Brasil. A light São
Paulo operava em 60 hertz e o Rio operava em 50 hertz. A American Foreign
Power (Anforp) era dona da atual Cerj, dona da CPFL e dona de companhias
do Norte e Nordeste. Era um sistema em que companhias estrangeiras,
principalmente a Anforp e a Light dominavam o setor elétrico
brasileiro. E passaram a não investir a partir dos anos 50. Os
últimos investimentos de grande porte (para a época) que
o grupo Light fez foi o projeto da usina de Nilo Peçanha, do
complexo Fontes, com uso da água do Paraíba bombeada em
dois estágios para aumentar a vazão, que começou
a operar em 1952 ou 1953, se não me engano. Daí para frente
a Light não fez mais investimentos em geração,
talvez o último foi uma pequena usina chamada Ponte Coberta de
90 MW, feita no canal de fuga desta usina de Nilo Peçanha. E
aí os anos 60 entraram, já com o governo Juscelino Kubitschek
e já tendo Furnas Centrais Elétricas como uma estatal
no setor. Quando a usina de Furnas começou a entrar em operação
em 1963, os seus dirigentes e o governo federal enxergaram longe, visando
o planejamento do setor elétrico. Ao longo dos anos 60, Furnas
- que incialmente havia sido uma empresa constituída para construir
somente a usina de Furnas - começou a construir outras hidrelétricas.
Também ao longo dos anos 70, Furnas construiu grandes usinas
hidrelétricas e grandes sistemas de transmissão.
"O
Brasil foi pioneiro no planejamento de geração de
hidrelélétrica e criou grande tecnologia na engenharia
de sistemas de alta tensão e extra alta tensão"
|
Com
Ciência - O sistema consolidou-se nos anos 80?
Ramos
- Chegamos em meados dos anos 70 e começo dos anos 80 com
uma enorme malha de transmissão de alta e extra-alta tensão,
e uma razoável capacidade instalada para a geração
de energiahidrelétrica,
no Rio Grande, depois no Rio Paranaíba - que é um formador
do Paraná. No fim dos anos 70, as interligações,
inclusive com Brasília, já estavam todas concretizadas.
O sistema elétrico interligado já tinha ligações
com o Sudeste, com Brasília e Espírito Santo. E Furnas
era o coordenador do sistema, do lado federal. Junto com a Cesp, de
São Paulo, a Cemig de Minas, e a Copel do estado do Paraná,
as três grandes estaduais e Furnas que era a regional do sudeste.
Depois a Eletrosul, que era a regional do sul do país. Já
havia um sistema elétrico bastante interligado e bastante planejado
no final dos anos 70. Planejado para longo prazo, era um sistema elétrico
inédito, que aproveitava a tropicalidade brasileira: onde há
grande quantidade de chuvas, no verão do sudeste, e as chuvas
no inverno no sul. Essa grande variabilidade permitiu que se planejasse
um sistema hidrelétrico de grande acumulação de
longo prazo de água nos reservatórios. Este planejamento
chegou inclusive, em termos de modelos matemáticos, a uma sofisticação
bastante inédita. O Brasil foi pioneiro no planejamento de geração
de hidrelélétrica e criou grande tecnologia na engenharia
de sistemas de alta tensão e extra alta tensão. Entraram
os anos 80 com Furnas construindo um tronco de corrente contínua
de 600 mil volts de Itaipu e um tronco de alternada de 750 mil volts
de Itaipu com um panorama tranquilo em termos de um sistema hidrelétrico
bem planejado. De repente, veio a moda neoliberal, a privatização,
e o que aconteceu nestes últimos anos? Privatizaram as empresas
de distribuição, ao longo dos anos 90, sobretudo a partir
de 94. A primeira foi a Escelsa do Espírito Santo depois a Light.
Vieram as empresas paulistas, menos a Cesp, que hoje se chama Cesp-Paraná,
que também não foi privatizada apesar das tentativas.
A Eletropaulo foi privatizada. As empresas do sul foram divididas em
três, e duas foram privatizadas, mas o governo Olívio Dutra
não privatizou a terceira parte. A Celesc, de Santa Catarina,
o governo não está disposto a privatizar correndo. A Copel,
o governo do Paraná quer privatizar, mas está havendo
muita resistência. E com a atual crise a resistência talvez
surta algum efeito e prepondere o bom senso. E Furnas, que é
a grande empresa regional, não foi privatizada.
Então
o que aconteceu nos últimos anos? As empresas estatais que não
haviam sido privatizadas foram proibidas de receberem finaciamento do
BNDES e foram proibidas de investir porque os investimentos seriam contabilizados
no cálculo do déficit público como gastos em relação
à combinação que o país tinha com o Fundo
Monetário Internacional (FMI). E isso, claramente, é um
absurdo.
Com
Ciência - É uma determinação do Fundo?
Ramos - É uma determinação do Fundo, sem dúvida.
O
Brasil contratou a empresa inglesa "Cooper & Lybrand"
[hoje PricewaterhouseCoopers] para re-elaborar o modelo elétrico
brasileiro e, neste modelo novo, foi abolido o planejamento elétrico
como atividade permanente. Criou-se uma coisa chamada "planejamento
indicativo", que era do tipo "o mercado era o soberano indicador
das necessidades de expansão" e o planejamento ganhou este
nome estranho de "planejamento indicativo", que é sinônimo
de não-planejamento. O planejamento como atividade permanente,
que o Brasil iniciou e fez com razoável competência, a
partir dos anos sessenta terminou. Este foi um motivo também
muito importante para chegarmos à crise atual. Somado a isto,
temos o problema de proibição de investimento das estatais.
O plano de termoelétricas a gás, que viabilizaria o uso
do gás da Bolívia, comçou a ficar complicado, por
causa da dependência do preço do gás ao câmbio.
E uma certa lentidão em implantar as prometidas 30 ou 40 termelétricas
a gás natural, mesmo porque, as únicas viabilizadas fora
do papel, são aquelas pelas quais a Petrobrás se interessou
e entrou como participante e investidora.
Em
um sistema hidrelétrico bem planejado, você pode construir
termelétricas. Mas como apoio, um sistema de termelétricas
onde você possa até desligá-las, em anos de chuvas
abundantes.
|
Hidroelétrica
de Marimbondo
|
Com
Ciência - Qual a opinião do senhor sobre como foi feita
a privatização?
Ramos - A pior possível. Neste sentido, a Folha de São
Paulo de hoje, terça feira, 10 de julho de 2001, traz um editorial
que até nos surpreendeu. Porque o veículo, até
então identificado com a política privatista do governo
FHC, traz esse editorial em que argumenta contra a privatização
de Furnas. E ressalta que até nos Estados Unidos, onde o setor
é privado, a geração de hidreletricidade é
pública.
O
Ilumina - isso está em seu estatuto na internet - se bate pela
defesa do interesse do consumidor. O que inclui transformar empresas
estatais antigas, com controle político pesado e ingerência
fisiológica - e isso é inegável que aconteceu.
Propõe passar para um modelo de controle público (com
mecanismos democráticos que minimizem influências político-partidárias),
em vez de ir direto para uma privatização predatória.
Então,
as empresas elétricas passariam do controle do Estado para o
controle da sociedade, e há uma diferença grande aí.
Com
Ciência - Qual o modelo de desenvolvimento que o sr. e o Ilumina
consideram mais adequados para o país?
Ramos - Manter a vocação hidrelétrica, retornar
ao planejamento como atividade permanente (planejamento a longo prazo
das fontes de geração e transmissão e também
estudo do sistema, no nível de engenharia). Na área financeira,
dar autonomia às empresas tornadas públicas de negociarem
seus empréstimos, aplicarem lucros e caixas em novos investimentos,
se endividarem racionalmente, como quaquer empresa bem administrada
faz.
Com
Ciência - Quais são as fontes alternativas de energia mais
interessantes para o país atualmente?
Ramos
-
É preciso ter co-geração. Co-geração
é a energia que é produzida utilizando-se calor excedente
de algum processo industrial. Você tem lá a sua indústria,
que usa calor em algum processo. Você acopla um gerador e tem
energia elétrica a partir do calor excedente do seu processo
industrial. Essa energia é ligada à rede, e você
pode ter sobras de energia elétrica. Não sei se é
possível falar disso como forma alternativa. Nos EUA, a capacidade
instalada é enorme. E no Brasil pode crescer muito.
Ainda:
pequenas centrais hidrelétricas instaladas em todo o país.
Médias, pequenas e pequeníssimas. Desde 500 KW até
um, dois ou três MW. Energia eólica também é
uma opção interessante. Fala-se em bagaço de cana
e lixo tratado. Há uma margem para se usar isso.
Outra
coisa importantíssima: o renascimento - embora talvez os especialistas
da Coppe não concordem com este termo, porque na verdade ele
nunca parou, mas foi mediocrizado - do Cepel (Centro de Pesquisas de
Energia Elétrica). Ele fica na ilha do Fundão (RJ), e
sofreu um processo de esvaziamento. A presença do Cepel, e a
sua regeneração, são essenciais como fator de crescimento
do setor elétrico no Brasil.
Com Ciência - A partir de quando começou este esvaziamento
do Cepel?
Ramos - A partir do começo da década de 90. A partir
do governo Collor, junto com a política de privatização
e neoliberalismo.
Com
Ciência - Como o Ilumina se posiciona em relação
à energia nuclear no Brasil?
Ramos - O Ilumina não possui uma posição unificada
a este respeito. Mas individualmente a maioria dos diretores do Ilumina
é contra o desenvolvimento de grandes plantas nucleares no Brasil.
Se você me pergunta quanto à conclusão de Angra
III, eu pessoalmente, concordo. Porque na altura em que está,
com os equipamentos comprados, seria mal negócio não concluí-la.
Na atual situação, com a crise que está aí,
qualquer nova fonte de energia seria bem vinda. Angra III seria mais
uma fonte de 1300 MW ligada à malha de 500 kV.