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Nanotecnologia
assemelha homens e máquinas
Luiz Alberto Oliveira
Nanotecnologia
brasileira deve aliar investimentos em ciência básica e aplicada
José Roberto Leite
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Nanotecnologia
assemelha homens e máquinas
Os
grandes projetos científicos da atualidade, como o genoma e aquele
que parece estar sendo gestado hoje para a nanotecnologia, são
típicos de um tempo em que as tecnologias e as aplicações
da ciência ganharam um destaque maior do que no passado. Alguns
intelectuais vêm chamando essa união profunda entre ciência,
tecnologia e uma quantidade considerável de capital privado, que
faz investimentos em busca de novos produtos, de tecnociência. Este
e outros assuntos, como a perspectiva que a tecnociência engedra
de hibridizaçào entre homens e máquinas são
abordados por Luiz Alberto Oliveira. Ele é físico, doutor
em Cosmologia, pesquisador do Laboratório de Cosmologia e Física
Experimental de Atlas Energias (Lafex) do Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas (CBPF/MC, onde também atua como professor de História
e Filosofia da Ciência. Ele concedeu entrevista à ComCiência
abordando algumas consequências da internalização
das novas tecnologias no cotidiano das pessoas.
ComCiência
- Porque disciplinas como a física e a biologia têm tanto
destaque hoje? O que isso significa na história da ciência?
Luiz Alberto Oliveira - A ciência é uma forma de dialogar
com a natureza. Desde sua implantação definitiva, há
pouco mais de três séculos, as ciências empíricas
tiveram enorme sucesso em descrever e, por conseguinte, em controlar e
manipular, ao menos parcialmente, uma variedade de aspectos do mundo natural.
Assim, essas ciências passaram a suplementar as tradições
étnicas e as grandes religiões na função fundamental
de elaborar "imagens de mundo", ou seja, constelações
de idéias pelas quais as sociedades humanas, desde sempre, deram
sentido à experiência de existir. Contudo, como adverte Ernesto
Sábato, os enunciados científicos são sempre deslizantes,
não podem aspirar à perenidade de dogmas ou verdades últimas.
Vivemos portanto, em nossa contemporaneidade profundamente marcada pelos
avanços incessantes das ciências e das técnicas, uma
crise contínua, um espasmo interminável: somos constantemente
obrigados a rever as fundações de nosso entendimento sobre
o mundo, sobre a coletividade e sobre nós mesmos. Este é
sem dúvida um momento singular na história do pensamento,
uma vez que as descobertas da cosmologia, da microfísica, da biologia
molecular, da evolução darwiniana e de muitas outras disciplinas
progressivamente, e cada vez mais, diluem as fronteiras modernas entre
natureza e cultura, ente e artefato, sujeito e objeto, interioridade e
exterioridade, pelas quais estávamos acostumados a definir nosso
estar-no-mundo, e assim resta posto em questão o próprio
estatuto de nossa humanidade.
ComCiência
- Quais as conseqüências desse destaque para debates como o
determinismo biológico, as diferenças de gênero ou
a eugenia?
Oliveira - Do ponto de vista das práticas técnicas,
o avanço decisivo que resultou da grande revolução
científica iniciada no começo do século XX foi a
crescente capacidade de intervenção em escalas cada vez
mais diminutas, ou seja, micrométricas, moleculares e mesmo atômicas,
abrindo caminho para as tecnologias do bilionesimal que moldarão
o futuro próximo - a nanotecnologia, as biotécnicas, a robótica.
A potência sem precedentes de atuar nos níveis básicos
da constituição dos seres materiais poderá levar,
com o uso do mesmo instrumental, frisemos, quer à eliminação
de doenças ou à gênese de novos modos de produção
econômica, quer à ressurreição do pesadelo
nazista ou, no limite, à substituição da vida orgânica.
Assim, importantes questões éticas estão colocadas
à nossa frente, hoje. Parece-me, contudo, que muitos aspectos do
debate atual sobre o suposto 'determinismo biológico' estão
contaminados por um equívoco: acredita-se, de modo geral, que o
genoma de cada indivíduo determine suas características
básicas, sendo as influências do ambiente significativas
somente para seu desenvolvimento. O ambiente é o acaso, o gene
é a necessidade. Ora, na própria transcrição
dos genes em proteínas ocorre uma aleatoriedade inevitável,
proveniente das circunstâncias internas da célula, e essa
indeterminação é co-responsável pela fixação
dos caracteres individuais; a complementaridade entre Acaso e Necessidade
abrange os ambientes exógeno e endógeno dos seres vivos.
Trata-se, talvez, da persistência da índole reducionista
típica da cosmovisão mecanicista em um território
- o dos sistemas complexos - em que sua aplicação imediata
é bem pouco adequada.
ComCiência
- Como dialogam as ciências humanas, a biologia e a física
na atualidade?
Oliveira - Na maioria das vezes, como viajantes noturnos no deserto,
que passam bem ao lado um do outro sem se encontrar. Nas ciências
naturais, duas tendências estão em confronto: o especialismo,
segundo o qual cada saber deve possuir limites bem demarcados para a atuação
de seus praticantes, e a transdisciplinaridade, fundada no reconhecimento
de que objetos complexos como o clima requerem, para uma descrição
eficaz, a colaboração de idéias, instrumentos e procedimentos
oriundos de diferentes áreas, da geologia à física
do Sol. Obviamente, ambas as posturas são indispensáveis,
a verticalidade para o específico, a horizontalidade para o integrado,
mas na prática costuma-se decair para um fundamentalismo míope
em favor de um dos lados. Ainda mais agudo é o distanciamento entre
os saberes naturais e os humanos, em vista da generalidade e da singularidade
de seus respectivos objetos de estudo. Veja-se por exemplo o conflito
entre neuropsiquiatras e psicanalistas: os primeiros proclamam que os
neurofármacos decretaram o fim de uma pseudociência, ignorando
a observação de Lewis Thomas de que as palavras agem sobre
vírus, penetram em escalas subcelulares; os segundos denunciam
a leviandade da remoção de sintomas sem que se intervenha
sobre as causas, esquecendo a antevisão de Freud acerca das promessas
da bioquímica. Quem sabe um dia, dada a função comum
de serem meios para que o pensamento mergulhe no desconhecido, os saberes
venham a dialogar abertamente.
ComCiência
- O senhor concorda com a afirmação do biólogo Jacques
Testart, responsável pelo primeiro bebê de proveta na França,
de que não existe mais vontade gratuita de obter o conhecimento
e toda pesquisa tem como finalidade a busca de inovações
direcionada para o progresso e pelo mercado. É possível
fazer ciência de forma independente? A tecnociência é
uma ruptura no "fazer ciência"?
Oliveira - As ciências modernas sempre foram empreendimentos
essencialmente coletivos, quer dizer, envolvem cooperação
e competição de seus praticantes, e assim necessariamente
refletem o espírito da época - bem como participam de sua
elaboração. Em que pesem as exceções como
o desenvolvimento imotivado da Teoria Geral da Relatividade de Einstein,
a figura do sábio encarcerado em sua torre de abstrações,
ponderando em olímpico distanciamento sobre os abissais mistérios
do mundo, não é senão uma abstração
ela mesma, um ícone oco. Por outro lado, de forma marcante desde
a Segunda Grande Guerra, inovações técnicas dos mais
variados tipos tornaram-se o eixo dos avanços econômicos,
e naturalmente essa vinculação rebate-se sobre os próprios
afazeres tecnocientíficos. Mesmo a pesquisa fundamental em áreas
como a astrofísica ou a física de partículas elementares
contribui para as expectativas de desenvolvimento de aplicações
lucrativas, e essas perspectivas de futuros benefícios passaram
a também servir de justificativa para os altos custos de sua realização.
Agora, o que parece profundamente questionável é a tendência
de resultados ambicionados pelo 'mercado' tornarem-se o norte das atividades
de investigação, pois isso aponta para uma inversão
perigosa: as aplicações serem privilegiadas em detrimento
da pesquisa básica. Basta ver os argumentos apressadinhos acerca
da 'reinvenção da roda' que certos setores, aqui mesmo no
Brasil, costumam brandir para advogar o desmantelamento da estrutura de
pesquisa fundamental penosamente construída ao longo das últimas
décadas - quando não há um único caso de instalação
bem-sucedida de um parque técnico amplo e eficiente sem a prévia,
ou pelo menos concomitante, consolidação de um sistema de
investigação básica encarnado em universidades e
centros de pesquisa. O fato mesmo da tecnociência estar adquirindo
preeminência extraordinária na determinação
de nossos modos de produzir e de viver deveria ser suficiente para demonstrar
a insensatez dessa diretriz. Não, não creio que o fazer
tecnociência possa prescindir do fazer ciência.
ComCiência
- Se é verdade que, na atualidade, a ciência está
mais associada ao mercado, quais as consequências disso para o saber
científico e para os saberes que não podem produzir para
o mercado, como a filosofia?
Oliveira - Consideremos o mito moderno por excelência, o "Progresso":
a humanidade, o grande universal humanista parido pelo Iluminismo, teria
como destinação o rumo a uma nova Canaã de abundância
material. Mas a sensação em nossa pós-modernidade,
o gosto em nossa boca, é de mal-estar. Recordemos os primórdios
da Revolução Industrial: bens naturais fartos, bens artificiais
raros. Hoje, vemos o inverso: bens artificiais abundantes, bens naturais
escasseando. Sem dúvida, todo ser vivo necessariamente desconstrói
e reconstrói seu habitat, mas o peso de nossa presença começa
a se tornar excessivo; Edward Wilson nos aponta um rosário de extinções
em massa em ecossistemas e de ecossistemas decorrentes da crescente ocupação
devastadora humana. Os atuais seguidores do mercado o entronizaram como
provedor de todos os benefícios prometidos e adiados, e o mercado
tornou-se diretor e causa final da atividade produtiva. Tudo deve ser
conversível em commodity, tudo deve ser o nodo de um fluxo de percentagens,
tudo deve ser apreçado: sentimentos íntimos, doutrinas religiosas,
órgãos humanos. Para quê a filosofia? Que sejamos
todos unidimensionais, quer dizer, consumidores, quer dizer, consumíveis;
caso contrário, estamos fora. Esta destrutividade, essa exclusão
exponencial, não são apenas um mal-estar, são um
mal-ser. Ora, do ponto de vista da teoria dos sistemas complexos, a vida
é uma matéria organizada que, aprendendo a modificar sua
própria estrutura para responder a alterações do
meio, passou a conectar os tempos bilionesimais das moléculas ao
tempo profundo das transformações ambientais, geológicas,
e astrofísicas. A aceleração técnica vigente
na contemporaneidade superpôs um novo modo temporal a esta conexão
entre os ritmos materiais e biológicos: a rapidez das produções
culturais. O físico Freeman Dyson compara os andamentos típicos
da natureza à marcha estugada da cultura: a África e a América
do Sul levaram 150 milhões de anos para atingir a separação
atual; uma especiação requer em média um milhão
de anos; o clima global varia ao longo de centenas de milhares de anos;
já o desenvolvimento de artefatos culturais como a metalurgia ou
a cidade precisou de dezenas de milhares de anos; entidades como as línguas
e as religiões têm milhares de anos de longevidade; instituições
como as nações duram séculos; os indivíduos
têm expectativa de vida da ordem de várias décadas;
mas no sistema acadêmico hiperacelerado de hoje as idéias
surgem e fenecem em anos, e as inovações técnicas
são lançadas e obsoletam em meses. O aspecto crítico
aqui é que a compactação dos ritmos naturais pelos
ritmos tecnológicos instaura uma imprevisibilidade radical: doravante
o passado não nos servirá como guia, pois a história
- quer da natureza, quer da cultura - não pode mais ser rebatida
sobre o futuro. O futuro não será mais como antigamente.
Transformações civilizacionais deste calibre não
costumam ser experiências pacíficas e serenas. Como reza
a tradicional maldição chinesa, viveremos tempos interessantes.
Talvez como em nenhuma outra época, será necessário
que invoquemos e exerçamos as potências do pensamento - a
arte, a filosofia, a ciência - para que possamos, como queria o
filósofo Friedrich Nietzsche, ser uma ponte entre o primata e o
além-do-homem.
ComCiência
- Em algumas palestras o senhor abordou os seres vivos como biontes, bióides
e borgues. O que são esses conceitos? Eles se relacionam com períodos,
tecnologias e saberes específicos?
Oliveira - A observação decisiva é que progressivamente,
e cada vez mais, diluem-se as distinções clássicas
entre matéria, vida e pensamento. Anteriormente se poderia dizer
que a tecnologia era uma ferramenta para o espírito, residente
na dimensão interna da subjetividade, agir sobre a natureza que
lhe é exterior. Hoje, devido à capacidade recentemente adquirida
de intervir nas escalas infinitesimais de comprimentos e durações
que são próprias ao domínio da microfísica,
ocorre uma internalização da ação técnica,
como se a tecnologia se rebatesse sobre seu agente, como se o espírito
se dobrasse sobre si mesmo e se auto-afetasse. Considere-se o que o filósofo
Daniel Dennett denominou 'a perigosa idéia de Darwin': em períodos
de duração suficientemente longa, minúsculas diferenças
entre indivíduos de mesma espécie, selecionadas pelas pressões
aleatórias do meio, podem conduzir à especiação,
a ramificação em novas espécies. Este lento processo
de acumulação foi o procedimento pelo qual a evolução
escreveu e reescreveu, ao longo das eras, as séries de instruções
que presidem a constituição dos biontes, os seres vivos
desenhados pela seleção natural. Mas nos anos 50, o biofísico
Francis Henry Crick e o bioquímico James Watson determinaram o
suporte bioquímico do "manual de operações"
- o genoma - que todo ser vivo portaria no interior de suas células
e que contém os organogramas e fluxogramas que gerenciam o desenvolvimento
dos organismos de cada espécie. A biologia teria assim, como substrato,
a ciência do material genético dos organismos ou genômica.
Entretanto, como é característico da tecnociência
atual, esses avanços no conhecimento sobre as fundações
da genômica foram de imediato acompanhados pela geração
de aplicações práticas - as biotécnicas. Assim,
rapidamente, a tessitura fundamental da própria vida tornou-se
suscetível a intervenções técnicas: já
nos anos 60, surgiram as primeiras associações entre genes
particulares e características morfológicas (ou comportamentais);
nos 70, deu-se o começo da capacidade de intervenção
programada em processos genéticos; nos 80, tornaram-se corriqueiros
a inclusão, exclusão e substituição de genes
precisos, bem como a mescla interespécies; nos 90, é produzido
o primeiro bióide (ser vivo com desenho artificial) mamífero:
Dolly. A perspectiva que se abre é a da hibridação
radical: em cinqüenta anos, estima Freeman Dyson, teremos a plena
fusão interespécies, ou a gênese de espécies
inteiramente novas. Ora, de um ponto de vista estritamente microfísico,
não há diferença entre moléculas biológicas
e inorgânicas, naturais ou artificiais. À medida que aumenta
o poder de manipular objetos em escala molecular, a tendência seria
ocorrer uma integração crescente entre componentes orgânicos,
gerados biologicamente, e componentes eletrônicos, fabricados artificialmente.
Sínteses de carbono e de silício: essa fusão se daria
por uma real mescla de formas, pela interpenetração entre
componentes orgânicos e semi-condutores; a perspectiva então
é a de que nosso devir seja nos tornarmos borgues, híbridos
de células e chips. Recordemos um feito espantoso: o cérebro
do peixe lampreia foi conectado a sensores sensíveis à luz
e também aos controles de movimento de um pequeno robô. Com
o cérebro da lampreia funcionando como central de processamento,
o robô passou a agir como a lampreia agiria, evitando as zonas iluminadas
e buscando as escuras. Esta conexão é ainda muito rudimentar,
pois se trata de neurônios inteiros postos em contato com condutores
metálicos, mas brevemente será possível penetrar
em um nível subneuronal, associando subestruturas dos neurônios
a componentes eletrônicos. Nesse momento, que não estaria
longe, veremos o nascimento de autênticos híbridos biotrônicos,
veremos o nascimento de centauros cognitivos, e esses centauros seremos
nós.
ComCiência
- Quais as consequências para o ser humano da passagem de biontes
para bióides e, futuramente, para borgues? No panorama das atuais
intervenções tecnológicas e biológicas possíveis
no corpo humano, o que significa ser humano?
Oliveira - A imensa abertura de mundo propiciada pela aceleração
técnica aponta para uma variedade de caminhos. Hoje, destruímos
algumas centenas de espécies por dia, somos os realizadores de
uma extinção em massa; ao mesmo tempo, também nos
tornamos capazes de fazer aparecer novos tipos de vida, novas espécies.
Esse poder de gerar formas artificiais é aplicável a toda
matéria-prima biológica - inclusive a nós mesmos.
Tornamo-nos mármore bruto para nosso próprio engenho e arte,
nossos corpos e espíritos são doravante insumos que podem
ser manipulados para o engendramento de novas corporalidades e novos seres.
Uma breve excursão especulativa será suficiente para ilustrar
esse ponto. A biotecnologia já exibe uma capacidade em rápida
ampliação de intervenção nos dispositivos
básicos de funcionamento dos biontes, antecipando a possibilidade
- simultaneamente fascinante e aterradora - de se viabilizar a produção
antrópica, administrada, de células, tecidos, órgãos
e mesmo indivíduos vivos completos. O mapeamento do genoma, por
exemplo, poderá esclarecer os mecanismos de regulação
dos relógios celulares, que regem o ritmo do metabolismo - e a
taxa de obsolescência - de nossas células. Com o controle,
igualmente esperado, de diversas moléstias de cunho genético,
e também o concurso de outros avanços médicos, a
longevidade de (alguns) indivíduos poderá simplesmente desconhecer
limites. Não a atual expectativa de vida (nos países ditos
desenvolvidos) de oitenta anos, nem mesmo a previsão de longevidades
mais que centenárias para as crianças nascidas (nestes mesmos
países) na presente década, mas durações de
vida de, quem sabe, mil anos... Delineia-se um horizonte de valores fundado
na longevidade tecnicamente prolongada e administrada, calcada em estimativas
de riscos genéticos e ambientais, voltada para um 'mercado' restrito
de candidatos à perenidade, e cuja medida será a mais preciosa
das substâncias: o tempo. De acordo com o grau de acesso aos recursos
médicos (e à nutrição básica!), uma
situação sem precedentes se apresentaria: as populações
seriam divididas numa legião de 'efêmeros', uma minoria de
'duráveis', e uma elite de 'perpétuos'. Jamais qualquer
sociedade humana experimentou uma tal separação em castas
de durabilidade. Numa tal Era das Mesclas, de hibridações
de natureza e artifício, de carne e mente, de intimidade e globalidade,
em que os limites que definiam os indivíduos tornam-se cada vez
mais ambíguos e imprecisos, mais estendidos em um sentido, mais
contraídos em outro, talvez a pergunta-chave seja: estaremos em
vias de realizar a instalação de um novo patamar de complexidade
no sistema de sistemas que chamamos Terra? Estará em ação
uma nova síntese integradora da Vida, uma nova etapa de individuação
do Homem? Se as tecnologias de movimento, de percepção e
de cognição que nos fizeram a espécie dominante do
planeta migrarem para o interior dos nossos corpos, se elas se fundirem
com as nossas células, o significado de ser humano inexoravelmente
mudará. De animais técnicos que usam ferramentas, passamos
para o operário mecanizado de Chaplin, para o trabalhador automatizado
de Metropolis, mas a perspectiva que se abre agora é de termos
um homem fundido às máquinas, um homem-máquina no
sentido literal. Se, com Spinoza, entendemos por Ética a determinação
de estratégias de ação, nossa época de hipertecnificação
defronta-se com dilemas éticos ingentes. Selecionar valores que
favoreçam a vida, redefinir o sentido do que é ser humano
- eis o desafio que nos cabe enfrentar.
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