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Nanotecnologia assemelha homens e máquinas
Luiz Alberto Oliveira

Nanotecnologia brasileira deve aliar investimentos em ciência básica e aplicada
José Roberto Leite

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Nanotecnologia brasileira deve aliar investimentos em ciência básica e aplicada

A base científica brasileira é bastante sólida para um país subdesenvolvido. No entanto, muito pouco do que é produzido em ciência consegue ser transferido para o setor industrial, gerando produtos que possam ser fabricados por empresas brasileiras. Para José Roberto Leite, professor do Instituto de Física da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), isso se deve em parte à total ausência de indústrias de alta tecnologia no Brasil. Para ele, o desenvolvimento de uma indústria nacional com esse modelo é dificultado pela ausência de uma política industrial federal. O trabalho de Leite, hoje, envolve a pesquisa com semicondutores, com aplicações em nanoeletrônica e nanooptoeletrônica. A nanotecnologia pode ser um setor promissor de desenvolvimento d

o setor industrial brasileiro se, segundo Leite, o incentivo à pesquisa básica não for interrompido mas complementado pelo incentivo à tecnologia.

ComCiência - Nanociência e nanotecnologia, quais são as diferenças fundamentais entre elas?
José Roberto Leite -
As diferenças entre nanociência e nanotecnologia são as mesmas que existem entre ciência e tecnologia em geral. Quando nos referimos à ciência entendemos pesquisa básica, fundamental. Tecnologia se refere à aplicação dos conhecimentos científicos visando algum produto. Enquanto a ciência é principalmente guiada pela curiosidade do cientista, a aplicação tem por base a solução de um problema prático, na maioria dos casos de interesse da indústria. Quando os conhecimentos mais recentes originados da pesquisa científica se transformam em aplicações nós nos referimos à tecnologia de ponta ou alta tecnologia para caracterizá-las. Portanto, nanociência e nanotecnologia se referem à pesquisa básica e aplicada envolvendo sistemas atômicos de dimensões da ordem de milésimos de milímetro. A origem do nome se refere ao fato de quando expressamos estas dimensões em metros temos nove dígitos após a vírgula.

Em se tratando de nanociência, não existem fronteiras entre física, química, biologia molecular e engenharia de materiais. Trata-se de uma área de ciência altamente interdisciplinar, o que requer que diferentes grupos de pesquisa, situados em diferentes instituições, tenham projetos em colaboração. A pesquisa induzida contempla essa interdisciplinaridade em nanociência.

O processo ligado à pesquisa induzida leva, no caso, da nanociência, à criação de redes de grupos de pesquisa e institutos envolvendo vários laboratórios em diferentes instituições. Quase sempre os editais governamentais de indução contemplam a inovação tecnológica. Em nanociência, os conhecimentos científicos adquiridos se transformam rapidamente em produtos de alto interesse comercial. O que se recomenda é que o conhecimento científico, com potencialidade de aplicação, se transfira para uma incubadora ou para uma empresa interessada em seu desenvolvimento. Compete aos pesquisadores em nanociência usar sua curiosidade para fazer avançar a fronteira do conhecimento nessa área e formar novos pesquisadores habilitados. Cabe às indústrias implementar a nanotecnologia e comercializar os produtos resultantes.

ComCiência - Na área de nanotecnologia, em que patamar está o Brasil?
Leite -
A nanotecnologia que hoje aflora no mundo moderno como uma nova revolução industrial envolve principalmente alta tecnologia. Indústria de ponta ou alta tecnologia é praticamente inexistente no Brasil. O reconhecimento desse fato está por trás da Lei de Inovação Tecnológica que tramita no Congresso e da criação do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos em Ciência, Tecnologia e Inovação, iniciativas tomadas no governo que hora termina.

É preciso identificar os nichos ou as possibilidades que nós temos de inovar e competir nesta área tecnológica. Espera-se que as universidades e institutos de pesquisa prestem uma colaboração para que sementes sejam plantadas e que uma indústria de alta nanotecnologia floresça no país.

ComCiência - Como a indústria brasileira está lidando com a nanotecnologia? Existem investimentos privados? E incentivos governamentais para a área?
Leite -
Tecnologia é ciência aplicada. Portanto, não existe ciência aplicada se não existe ciência para aplicar. Esperar um grande salto tecnológico para a modernidade da maioria dos países da África e da América do Sul, por exemplo, é esperar o impossível. Eles não têm ciência para aplicar. Sob esse ponto de vista, o Brasil está em posição privilegiada, uma vez que consolidamos no país uma ciência básica muito saudável. Formamos doutores em Física ao ritmo de 180 por ano e, no total, a nossa pós-graduação produz 600 doutores por ano em todas as áreas do conhecimento. Estamos, portanto, preparados para o desafio da alta tecnologia. No caso particular da nanotecnologia a comunidade científica de física teve uma visão futurista em meados da década de 80, expandindo e consolidando a área de nanoestruturas semicondutoras com investimento de dez milhões de dólares, em cinco universidades.

Atualmente, a comunidade de físicos trabalhando em nanociência em geral é uma das mais organizadas e representativas da ciência brasileira. Situação análoga se detecta na Química e na área de Engenharia de Materiais. Pode-se dizer, respondendo à pergunta, que a iniciativa de se desenvolver nanotecnologia no país iniciou pela base científica através dos cientistas brasileiros atuando em universidades e institutos de pesquisa. Recentemente, o governo tomou a iniciativa de induzir uma pesquisa integrada nesta área com a criação das quatro redes de nanociência e nanotecnologia, a criação do Instituto do Milênio na área e o planejamento para implantação de um Instituto de Nanociência e Nanotecnologia, cuja proposta encomendada está em análise no Ministério de Ciência e Tecnologia.

É preciso enfatizar que as iniciativas governamentais refletem a movimentação internacional na área, que só nos Estados Unidos representa uma aplicação de, no mínimo, US$ 500 milhões anuais em iniciativas em nanociência e nanotecnologia. A Europa e o Japão, com suas redes e institutos de nanociência e nanotecnologia, investem recursos de bilhões de dólares anuais na área. No Brasil, os recursos investidos pelo governo nas redes e nos dois Institutos do Milênio até agora não chegam a US$ 1 milhão.

Apesar do forte poder de indução que levou os pesquisadores a se agrupar ao redor do tema, o principal componente é a pesquisa fundamental. Por trás das iniciativas governamentais paira a esperança de que a interação Universidade-Empresa, facilitada pela Lei da Inovação, resulte em inovação tecnológica. A questão é: que empresas? Até agora nenhum recurso privado foi investido na área. É preciso lembrar que o governo federal e os governos estaduais, notadamente o paulista, não têm uma política industrial. De fato, é preciso corrigir isso, pois não ter uma política, deixando que o próprio mercado se organize, é uma forma de política industrial também. Porém, em alta tecnologia, é preciso encontrar os nichos e ter uma política industrial para priorizá-los e explorá-los.

ComCiência - Quais os benefícios a rede de cooperação em nanotecnologia pode trazer? O fato de existir uma rede pode agilizar as pesquisas e disponibilizar os seus resultados de forma mais rápida e eficiente no mercado?
Leite -
As quatro redes de nanociência e nanotecnologia e o Instituto do Milênio em nanotecnoligia foram criados pelo governo através de editais que visavam induzir a integração da pesquisa científica na área. Para convencer os cientistas a interagirem e a aproveitarem o aspecto interdisciplinar da área, os editais induziam a coalização dos grupos. Um número grande de propostas de redes recebidas pelo governo inicialmente foi condensado em apenas quatro, induzindo grupos, até desconhecidos entre si, a se integrarem.

Por outro lado, os Institutos do Milênio envolvem um número grande de grupos e laboratórios que se agregaram em resposta aos editais de indução. Essa também é uma etapa essencial no processo de se expandir rapidamente a área e produzir idéias, modelos e processos que resultem em aplicações a serem desenvolvidas pelas indústrias que deverão ser criadas.

O caráter altamente interdisciplinar em nanociência e nanotecnologia tem que se refletir na maneira de se atuar nessa área. A tendência dos pesquisadores a se concentrarem em temas específicos de pesquisa, isolando-se nas universidades e nos institutos, é rompida com a promessa de recursos extras se se adaptarem aos editais. Essa é essencialmente a política da pesquisa induzida.

ComCiência - A Sociedade Brasileira de Física já promoveu algum encontro com seus associados para discutir a nanotecnologia e a nanociência no Brasil?
Leite -
A SBF discute intensamente todos os aspectos associados à política científica praticada no país. As ações ligadas a nanociência e nanotecnologia, por parte do governo que hora finda, foram acompanhadas de perto pela SBF desde o seu início, quando o tema apareceu em destaque no chamado Livro Verde, agenda da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação realizada em Brasília em setembro de 2001. Assim também foram acompanhadas as iniciativas que geraram as Redes e os Institutos do Milênio.

Atenção especial foi dada à criação do Instituto de Nanociência e Nanotecnologia uma vez que deverá representar uma iniciativa de maior vulto em pessoal e recursos. Cuidado redobrado teve a SBF quanto a questão da participação dos pesquisadores da academia no processo de inovação tecnológica, em parceria com as empresas sob a tutela da Lei de Inovação. Essas questões têm sido apresentadas e discutidas pela SBF nas dezenas de encontros setoriais que a Sociedade mantém anualmente. Em um deles, o Encontro Nacional de Física da Matéria Condensada, participam mais de mil pesquisadores. Em todas essas oportunidades a SBF tem colocado claramente a preocupação com a manutenção e ampliação do patrimônio de pesquisa em física básica, que construímos ao longo dos anos. Qualquer iniciativa para a inovação tecnológica necessita fazer uso deste patrimônio. Porém, com o cuidado necessário para preservá-lo. A idéia de que a ciência no país está bem e agora é a hora da tecnologia é perigosa, na medida em que a falta de financiamento pode rapidamente dilapidar esse patrimônio. Manter a pesquisa básica e ampliá-la é condição essencial para a criação de idéias inovadoras e formação dos guerrilheiros que, munidos de conhecimento, promoverão o desenvolvimento tecnológico. A SBF está atenta quanto ao financiamento contínuo, sem interrupções, da ciência básica no País.

ComCiência - A Lei de Inovação e nanotecnologia: é esperado algum resultado positivo?
Leite -
A Lei de inovação tem como principal objetivo flexibilizar as relações entre pesquisadores e institutos de pesquisa para o desenvolvimento de novas tecnologias para produtos, processos e serviços. É particularmente estimulada a criação de empresas de base tecnológica (EBTs). Segundo a lei, pesquisadores lotados em instituições públicas, como as universidades, poderão receber autorização para afastamento dos cargos, caso queiram colaborar com pesquisas em empresas. Também poderão tirar licença não remunerada se tiverem interesse em constituir, eles próprios, uma EBT. No que se refere à nanotecnologia, que vem sendo contemplada através da nanociência pelos físicos e químicos, a lei pode ter um efeito negativo. Apesar da pesquisa científica e a formação de pessoal em ciência básica estarem indo bem nas universidades, precisamos redobrar o esforço para produzir os profissionais necessários para atingirmos o estágio de enfrentar o desafio da nanotecnologia. Isto significa que, se os professores se afastarem de sua importante função de dar aulas, formar recursos humanos e pesquisar, estaremos comprometendo todo o sistema. Em minha opinião, o gargalo está nas engenharias que devem ser modernizadas e aceitar o desafio da tecnologia de ponta no país. Para isso, os seus currículos devem ser revistos e uma maior interação com a física, a química e a biologia deve ser contemplada.

ComCiência - Qual seu ponto de vista pessoal em relação ao desenvolvimento da área de nanociência e nanotecnologia?
Leite -
Acredito que a nanociência produzirá grande revolução em nossos conhecimentos na área da física, química, biologia e engenharia. Se examinarmos os temas agraciados com Prêmio Nobel nos últimos dez anos vemos imediatamente o impacto da nanociência no mundo acadêmico de hoje. As descobertas que virão, principalmente nas áreas de fronteira entre as tradicionais disciplinas em que se divide a ciência, serão certamente fantásticas. O produto deste conhecimento científico, a nanotecnologia, tem toda a potencialidade para ser a grande revolução tecnológica do início deste século. Nanomotores biológicos, nanotubos, nanopartículas para catálise, nanoeletrônica, computadores quânticos, nanosensores, nanooptoeletrônica etc, são exemplos de alguns elementos nesta revolução que já está em andamento. O Brasil não pode se ausentar dessa revolução como já fez em outras oportunidades. Trata-se de se estabelecer uma consciência nacional sobre a importância do tema.

Atualizado em 10/11/02

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