Entrevistas
As
guerras e o desenvolvimento científico
Shozo Motoyama
O espaço
e a ordem político-militar
Gilberto Câmara
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O
desafio científico de uma nova ordem político-militar
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"A diminuição do desequilíbrio internacional na balança de poder
militar, somente será possível, com o domínio pleno da tecnologia
de sensoriamento remoto pelos países emergentes"
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O Coordenador-Geral de Observação
da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Gilberto
Câmara, foi um dos criadores da Divisão de Processamento de Imagens
da instituição e um dos responsáveis pelo desenvolvimento do Sistema
Iintegrado de Processamento de Informações Georeferenciadas
(Spring),
que compõe uma solução atualizada e adequada para a implantação da tecnologia
de geoprocessamento no Brasil. Com intensa atuação na área de tecnologia
de sistemas de informação geográfica, análise espacial e processamento de
imagens de sensores remotos, tem se destacado pelo desenvolvimento de pesquisas
e aplicações em bancos de dados geográficos, sobretudo visando implementar
um padrão nacional de intercâmbio dessas informações. Nesta entrevista,
tendo o espaço como elemento de análise, ele prognostica o desafio científico
da viabilização de uma nova ordem político-militar.
ComCiência - Como se dá o uso do sensoriamento remoto
para fins militares?
Gilberto Câmara - Em tese, todos os satélites de sensoriamento
remoto têm uso militar, no sentido em que permitem a detecção de alvos
na superfície terrestre de forma sistemática e sem controle do país-alvo.
Na prática, para que os alvos militares (aviões, campos de treinamento,
estações de lançamento de mísseis) sejam reconhecidos, é preciso utilizar
resoluções menores que 5 metros (para detecção) e menores que 0,5 metro
(para identificação). Evidentemente, estes limiares variam com o tipo
de alvo. Por exemplo, para o caso de veículos, uma resolução de 1m permite
seu reconhecimento, mas não sua identificação, o que só seria possível
com uma resolução de 25 cm. O sensoriamento remoto para fins militares
pode ser feito com o uso de satélites comerciais (como o Ikonos
e o Quickbird) e por satélites exclusivamente militares. O governo
americano tem seus próprios satélites militares, como a série SH-12 (Improved
Crystal), cuja resolução no solo é estimada em 10 cm.
ComCiência - Quem está autorizado a fazer a captação
dessas imagens?
Câmara - O governo dos EUA tem uma diretriz governamental, Presidential
Decision 23 (PD-23), promulgada pelo presidente Clinton, em 1994,
e ainda em vigor, que permite a firmas comerciais desenvolver, lançar
e operar serviços de imageamento por satélites em alta resolução. Esta
diretriz requer que as empresas se cadastrem junto ao governo dos EUA,
e se submetam a controles sobre as áreas imageadas. Estes controles incluem
tanto restrições aos potenciais clientes das imagens, quanto restrições
de acesso a áreas específicas durante períodos determinados de tempo,
a critério do governo americano (o chamado shutter policy). Embora
a diretriz PD-23 em tese se aplique apenas a empresas americanas, outros
países com tecnologia semelhante (como Israel), por pressões diplomáticas,
vem seguindo tais orientações.
ComCiência - Qual a implicação para a segurança geopolítica
global?
Câmara - Durante a Guerra Fria, as capacidades de imageamento da
URSS e dos EUA eram relativamente equivalentes. Com o colapso da URSS
e o grande investimento militar e comercial em tecnologias de sensoriamento
remoto feito pelos EUA, o balanço de poder está desequilibrado, na medida
em que um único país concentra um conjunto privilegiado de informações
acerca dos demais. A implicação evidente deste fato é que países emergentes,
como a China, índia e até o Brasil deverão dar ênfase, nas próximas décadas,
a programas de sensoriamento remoto. Estes programas deverão ter a capacidade
de coletar informações de forma global, para no mínimo compensar a liderança
dos EUA neste campo.
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Foto
com 10 cm de resolução tirada a partir de um satélite
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ComCiência - Que instrumentos existem para resguardar
a segurança de todos os países, na medida em que as informações sobre
o planeta são um privilégio dos países mais desenvolvidos?
Câmara - Esta afirmação deveria ser redimensionada. Na verdade,
informações de caráter civil, para aplicações como agricultura, floresta
e oceanos, mesmo que geradas por satélites americanos e europeus, estão
de forma geral, disponíveis amplamente para todos os países. Além disso,
esta classe de satélites (com resolução entre 10 e 50 m no solo) já tem
sua tecnologia acessível a países emergentes, como demonstra a série de
satélites CBERS, desenvolvida em parceria entre o Brasil e a China. Informações
de caráter militar (1m de resolução ou menos) ainda são privilégio dos
EUA, mas dentro de 10 anos, a tecnologia para construir esses satélites
estará ao alcance de países como o Brasil. Como os princípios estabelecidos
internacionalmente vêm sendo desrespeitados por países como os EUA, só
restará a países como o Brasil, se quiser ter autonomia nesse campo, manter
e ampliar seu próprio programa espacial.
ComCiência - Porque não há um Tratado Internacional
sobre sensoriamento remoto?
Câmara - O comitê das Nações Unidas para o uso pacífico do espaço
(Copuous) estabeleceu um documento de princípios internacionais sobre
o acesso aos dados de sensoriamento remoto, (Principle
Relating to Remote Sensing of the Earth from Space - resolution 41/65),
que dispõe que as atividades de imageamento por satélites devem ser conduzidas
para o benefício de todos os países, com respeito à soberania dos países
e de seus habitantes sobre seus próprios recursos naturais. Esses princípios,
na prática, vêm sendo minados e desrespeitados pelos EUA e seus aliados,
que implementam políticas próprias, como estabelecido na PD-23. Na mais
recente reunião do Copuous, em março de 2002, o Brasil foi um dos países
que liderou uma moção para o estabelecimento de uma Convenção Internacional
sobre Sensoriamento Remoto. Esse pedido foi bloqueado pelos EUA e seus
aliados (Alemanha, Japão e Canadá), alegando que os princípios jurídicos
dessa convenção iriam bloquear os avanços da tecnologia. Trata-se de uma
posição unilateral, típica da atual balança de poder internacional, que
só será vencida quando o Brasil e países emergentes tiverem o domínio
pleno da tecnologia de sensoriamento remoto.
ComCiência - é legítimo os satélites se tornarem instrumentos
para ações bélicas, como aconteceu na Guerra do Golfo em 1991 e mais recentemente
no Afeganistão?
Câmara - O conceito de "legitimidade", no contexto internacional,
depende da existência de princípios e convenções aceitas internacionalmente.
Na ausência de convenções internacionais, prevalecem princípios genéricos,
que são omissos para tratar casos de guerra, como a Guerra do Golfo e
a do Afeganistão.
ComCiência - Como se dá a ocupação de posições orbitais,
elas atendem a um interesse público global?
Câmara - Há dois tipos de posições orbitais: as órbitas geoestacionárias,
usadas pelos satélites de telecomunicações e meteorológicos, que são estabelecidas
pela União Internacional das Telecomunicações (UIT). Em princípio, são
estabelecidas de forma equânime, na base do "first come, first served".
Na prática, os conflitos têm sido resolvidos de forma relativamente aceitável.
Os satélites de sensoriamento remoto operam em órbita polar (sol-síncrona),
o que minimiza o problema dos conflitos por órbita.
ComCiência - Se, pela sua própria natureza e por força
do Tratado do Espaço, o uso do espaço cósmico é público, em que bases
e com que respaldo, tem havido essa desenfreada competição de grandes
corporações e empresas pelo uso privado dos recursos espaciais?
Câmara - O uso comercial não é conflitante com a natureza pública
do espaço cósmico. Considerando que o acesso ao espaço é teoricamente
aberto a todos os países, na prática, os países avançados tratam o uso
do espaço como concessão de serviços públicos. Como toda concessão, as
licenças de exploração são concedidas a companhias que geram negócios
e empregos para o país concedente, ao mesmo tempo em que preservam seus
interesses nacionais. Este é o espírito da PD-23 do governo dos EUA.
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