Entrevistas
Gerontologia
estuda envelhecimento de forma global
Anita Neri
Antropóloga
analisa situação de idosos sob a ótica dos próprios
Myriam Lins de Barros
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Antropóloga
analisa situação de idosos sob a ótica dos próprios
Myriam Lins de Barros trabalha com a perspectiva dos velhos sobre a velhice,
a família e a memória da cidade do Rio de Janeiro. Sobre a
família, sua pesquisa baseia-se na visão dos avós das
camadas médias da sociedade, analisando as questões de permanência
e as mudanças de valores na família. Quanto à memória,
busca nos idosos de diferentes bairros, a forma como é construída,
através da memória de uma geração, a
idéia de uma cidade e de seu lugar social. e publicou os livros Autoridade
e Afeto. Pais, filhos e netos na família brasileira da editora
Zahar e a coletânea de artigos de vários antropólogos
Velhice ou Terceira Idade, editada pela editora da Fundação
Getúlio Vargas, além de artigos em revistas e livros. Myriam
é doutora em antropologia e professora da Escola de Serviço
Social da UFRJ.
ComCiência
- Velhice ou terceira idade, qual a diferença?
Myriam Lins de Barros - Quando acabei de organizar a coletânea
de artigos de antropólogos editada pela Fundação
Getúlio Vargas, discuti com a editora, Alzira Abreu, o título
do livro. A dúvida recaia sempre sobre o peso negativo da palavra
velhice que vem normalmente associada a um conjunto de significados que
na nossa sociedade estão referidos a aspectos negativos e mesmo
estigmatizantes dessa fase da vida. Associamos à velhice e, logo,
os velhos e as velhas, à ausência de sinais positivos ou
à sua perda, como a perda da saúde, da capacidade de produzir,
do vigor sexual, da beleza e da força física e mental. E
mais do que isso, fazemos a ligação entre as imagens da
velhice e da morte. Como Philippe Ariès e Norbert Elias já
mostraram, a morte é um tabu na sociedade moderna e hoje, com as
novas e avançadas tecnologias para o corpo, com técnicas
para o prolongamento da vida que por sua vez trazem a discussão
médica e ética sobre o controle técnico do momento
da morte, verificamos que fica cada vez mais complicado lidar com a velhice
e com seus imperativos que são, apesar de todos os avanços
da ciência, a aproximação com a morte e a decadência
física. É interessante como esta compreensão da velhice
e da morte ocorre paralelamente, na sociedade brasileira, a um aumento
significativo da violência e da morte de jovens por causa dessa
mesma violência. Assim, mesmo que assistamos, hoje, à emergência
de uma imagem menos negativa da velhice, as palavras velhice, velho e
velha têm culturalmente um peso negativo muito grande. Voltando
ao título da coletânea: a discussão girava em torno
dos termos velhice e terceira idade, esta mais leve, mais livre dos constrangimentos
negativos da morte e da decadência humana. Mas no próprio
livro havia textos que trabalhavam, exatamente, o surgimento da denominação
'terceira idade', para designar um modo de envelhecer e seus significados
construídos no século XX.
ComCiência
- Outros pesquisadores já estudaram essa questão da nomenclatura
para designar as pessoas acima dos 60?
Barros - Guita Debert (veja artigo
de Debert na ComCiência) e Clarice Ehlers Peixoto analisaram,
em seus trabalhos, a elaboração cultural dessa nomenclatura,
que não vai classificar uma fase do curso da vida, a sua fase final,
mas uma maneira específica de vivê-la. Essa forma de experiência
do envelhecer é elaborada na sociedade moderna quando a aposentadoria
se faz presente como direito social nas nações modernas,
quando aumenta a expectativa de vida e quando a ideologia individualista
está implicada em todos os níveis da vida. Neste contexto,
a representação da velhice negativa é substituída
por uma imagem positiva no discurso de especialistas no envelhecimento
na área médica e psicológica e, hoje, na sociedade
como um todo. Esta positividade elege a juventude como um modelo de vida,
vista não mais apenas como uma fase da vida, mas como uma forma
de se viver. Todos podemos manter os sinais que elegemos na sociedade
moderna como positivos para se viver: a jovialidade, a esperança,
a saúde, a alegria, a vida sexual e afetiva etc. Nesse discurso
ideológico encontra-se embutida a idéia de que para viver
bem o último período da vida, bastaria nos engajarmos nessa
idéia e se não o fazemos, isto se deve mais a nós
mesmos do que às condições sociais e culturais. É
nesse sentido que Guita Debert fala em reprivatização da
velhice. E é aí que vemos se apresentar com muita clareza
a presença da ideologia individualista no trato com a velhice e
na experiência do envelhecer. Como se vê, há uma distinção
clara entre velhice e terceira idade, mas há, também, o
ponto fundamental a aproximar essas duas expressões que é
o fato de serem, ambas, culturalmente construídas. Para concluir:
o livro acabou com o título que nasceu da discussão - Velhice
ou terceira idade?
ComCiência
- Qual a relação da família atual com os idosos?
Em seu trabalho junto às famílias do Rio de Janeiro, a senhora
nota alguma diferença entre a conformação atual da
família e a sua conformação no passado?
Barros - Quando trabalhei com os avós, eles próprios
me trouxeram, a partir de suas lembranças, diferenças nas
relações familiares que eles próprios haviam vivido
em sua trajetória de vida. A experiência deles como avós
suscitou uma série de recordações que remetiam às
suas relações com os seus avós, na infância.
Mas também traziam a experiência do começo de suas
vidas conjugais e do nascimento de seus filhos e de sua educação.
Assim, as diferenças não são percebidas por mim apenas
como pesquisadora que contextualiza as narrativas dos avós entrevistados,
remetendo-as a situações e condições sociais,
econômicas e culturais. As diferenças são relatadas
pelos indivíduos que as vivem e as interpretam. O que nós
pesquisadores fazemos é compreender como a experiência e
suas interpretações são elaboradas.
Assim podemos ver que para os avós há uma diferença
fundamental entre eles e seus próprios filhos. Os avós constroem,
a partir das narrativas de lembranças, um passado familiar com
seus filhos pequenos onde prevalecia a autoridade. Esta percepção
só consegue se dar, na medida em que podem, hoje, experimentar,
outro aspecto da vida familiar, igualmente fundamental para sua constituição,
o afeto que dedicam a seus netos.
"Os
avós pensam assegurar com sua presença, sobretudo
junto aos netos, a permanência do valor da família"
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ComCiência
- Eles refletem como foi a educação que deram a seus filhos?
Barros- Esta experiência de ser avô e avó desperta
uma certa visão crítica sobre sua própria educação
e eles acabam se criticando porque foram mais autoritários do que
afetivos com seus próprios filhos. Uma das razões para isto
é encontrada pelos entrevistados na separação cotidiana
entre a família que construíram e as famílias de
origem. Esta separação, como falei, não se dava como
um valor, mas como uma maneira de se estabelecer os laços familiares
entre as três gerações familiares. Os avós
se percebem mais perto do dia-a-dia dos filhos casados e dos netos do
que seus pais eram com eles. São chamados para ajudar no cuidado
com as crianças pequenas e se mostram disponíveis para auxiliar
nos momentos de separação de casais. Esta aproximação
maior acontece, numa aparente contradição, no momento em
que as mulheres entram mais francamente no mercado de trabalho, em que
os casais se separam com maior freqüência, fatos que se associam
à idéia de modernidade da vida urbana. Mas é exatamente
por isto que a presença dos avós se faz maior e eles percebem
que podem ter uma função importante nessas relações.
Embora tenham uma visão crítica sobre a forma que educaram
os filhos, sentem-se ainda responsáveis por ensinar-lhes, agora,
como ser pais, não da forma que foram, mas somando a autoridade
ao afeto. Além disso, pensam assegurar com sua presença,
sobretudo junto aos netos, a permanência do valor da família.
É claro, também, que essas relações não
se dão sem conflitos entre os avós e seus filhos quando
têm (e quase sempre é isto que acontece) interpretações
distintas da realidade. Na pesquisa que realizei, acabo concluindo que
as formas e as interpretações da família de camadas
médias estudadas no Rio de Janeiro (e que devem ser encontradas
em outras grandes cidades brasileiras) são hoje, uma espécie
de família extensa e não nuclear.
"A
dificuldade de se sentir parte de uma cidade onde não conseguem
reconhecer seus lugares físicos e simbólicos é
uma das formas que os mais velhos têm para falar das transformações
sociais."
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ComCiência
- A senhora me disse que, através de sua pesquisa, pôde discutir
a família, "...analisando como os velhos constróem,
pela memória social de uma geração, uma idéia
da cidade e de seu lugar social nesse espaço". Os lugares
de nascimento e crescimento são importantes na construção
da memória e da identidade dos idosos? Como funciona esse processo
mental e através de que símbolos (histórias, gestos,
suspiros, olhares perdidos...) são passados?
Barros - A memória parte do momento presente para fazer um
percurso de uma trajetória de vida. É como velhos que as
pessoas falam, mas é também como avós, como moradores
de uma cidade, como mulher e como homem, como indivíduo de uma
determinada camada social e de uma determinada profissão. No momento
da entrevista de história de vida, eu, como pesquisadora, faço
desencadear o fluxo das lembranças depois de colocar as questões
para meu interlocutor. Várias coisas nas narrativas podem servir
como pistas de lembranças. Falo de pistas como indicadores para
o narrador se guiar nas lembranças e que são analisadas
pelo pesquisador para dar uma referência histórica e cultural
à fala do entrevistado, portanto, à construção
de uma lembrança que não está pronta e algum lugar
mas é, em cada momento, reconstruída, dependendo do lugar
que o narrador está na sociedade no momento em que elabora sua
narrativa. As pistas para as lembranças podem ser fotos, a paisagem
urbana, as festas familiares. A experiência de realizar pesquisa
sobre fotografias de família me deu a dimensão fundamental
dessas pistas. Uma foto apenas pode iniciar um enorme relato sobre as
relações familiares e sua interpretação atual
de fatos passados. Mas, na pesquisa sobre a memória da cidade,
a pista pode ser, exatamente, a ausência de marcos, destruídos
do cenário urbano com as reformas na cidade. A dificuldade de se
sentir parte de uma cidade onde não conseguem reconhecer seus lugares
físicos e simbólicos é uma das formas que os mais
velhos têm para falar das transformações sociais.
"Nas
camadas mais pobres, a aposentadoria dos velhos é a única
forma de um rendimento familiar certo e constante."
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ComCiência
- A senhora baseia sua pesquisa nos "avós de classe média".
O que é feito deles? Existem diferenças significativas entre
as várias classes sociais?
Barros - É claro que existem. As pesquisas que fiz recentemente
tratam de avós e velhos de camadas de baixa renda. Trabalhei a
idéia de redes sociais e como os idosos se movimentam nessas redes
sociais onde estão presentes familiares, amigos, vizinhos e companheiros
de centros de convivência, estes últimos representando uma
forma de sociabilidade que surge com as políticas sociais baseadas
na compreensão da velhice como um modo de vida, isto é como
"terceira idade". Nessas pesquisas como nas de outros pesquisadores,
vemos que nas camadas mais pobres, a aposentadoria dos velhos é
a única forma de um rendimento familiar certo e constante, portanto
eles são fundamentais nas relações familiares. Nessas
camadas sociais aquilo que percebi nas camadas médias se torna
mais claro: as redes de apoio mútuo. Mais uma vez não podemos
esquecer que na família encontram-se também os conflitos
e a violência. Os dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro
apontam um percentual elevado de queixas de violência doméstica
contra idosos, fato que não pode deixar de ser objeto de questões
sociais e de pesquisas.
ComCiência
- A atual situação econômica de nosso país,
faz com que muitos jovens acabem voltando para a casa de seus pais - ou
nem saindo dela - e há muitos casos em que famílias inteiras
dependem da aposentadoria do idoso da casa. Como essa mudança é
sentida por eles?
Barros - A volta dos filhos para a casa dos pais se dá em todas
as camadas sociais. Não só a volta como a saída tardia
ou mesmo a não saída. O desemprego é uma das razões,
mas a forma com que as diferentes famílias entendem essa volta
é que é interessante de investigar. Ao lado dessa volta
dos filhos, ocorre também um desejo maior das mulheres idosas em
morar sozinhas. A dificuldade apresentada hoje em comprar um imóvel
ou não ter como alugar um espaço para viver e constituir
sua própria família é também outra razão
para os filhos continuarem a morar com os pais ou retornarem à
casa paterna e materna. As separações de casais e a gravidez
na adolescência também vêm se somar a essa realidade.
Estes fatores devem, entretanto, ser entendidos a partir de uma representação
da família e das relações familiares que parece que
no Brasil continuam sendo fundamentais para o apoio físico e emocional
dos indivíduos.
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