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Um guia diferente
Antonio Augusto Arantes

Produzindo um mapa cultural para São Paulo
João Baptista da Costa Aguiar

 

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Um guia diferente

O mercado editorial está inundado de guias que ajudam o turista a se orientar e a usufrir melhor da cidade que está visitando. Nos últimos anos, novos guias têm surgido. Voltados também para o turista, eles procuram não somente orientá-lo em sua permanência na cidade mas procuram também mostrar o que há de interessante na vida cultural da cidade. Em geral escritos por personalidades do mundo da cultura, como Sérgio Mota e seu guia sobre Nova Iorque ou César Giobbi e seu guia sobre São Paulo, eles se pretendem relatos de experiência, quase antropológicos.

Para a costa do descobrimento, no sul da Bahia, o antropólogo Antônio Augusto Arantes, pesquisador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (Cemi) da Unicamp, está finalizando um guia que poderá verdadeiramente ser chamado de antropológico. Tendo como público alvo não o turista mas os próprios moradores da região, o guia é o retorno que o grupo de pesquisadores comandado por Arantes oferece para comunidade que foi objeto de pesquisa. Diferente de um guia tradicional, ele não contém informações sobre hotéis e estradas, mas dá indicações sobre a história da região e suas práticas culturais. "Nós assinalamos o trajeto da esquadra de Cabral tanto espacialmente como usando-a de referência para falar da evolução histórica da região, com a construção discursiva dela que passa por Caminha, Sérgio Buarque de Holanda, Oswald de Andrade. Mostramos como o significado do descobrimento é múltiplo, é uma coisa complexa.", explica

Mapa da Costa do Descobrimento disponível no guia digital elaborado pelo grupo do antropólogo Antonio Augusto Arantes

A região é formada por diferentes comunidades, o guia procura mostra a especificidade de cada uma delas, respeitando as diferenças. "O carnaval não é uma festa que diferencia uma localidade da outra, ocorre em todas elas. Mas sempre que tem um carnaval diferenciado, como uma variante do bumba-meu-boi, por exemplo, o guia mostra. Mas não focaliza somente o que é patrimônio tradicional, fala sobre o forró, a lambada, que são referências contemporâneas", explica.

O lançamento do guia deverá acontecer nos próximos meses mas uma versão eletrônica já funciona no Museu Aberto do Descobrimento, que fica na região. A versão impressa será distribuída pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Arantes tentou editar o guia através de uma grande editora mas preferiu mantê-lo com sua concepção original a transformá-lo em um guia turístico tradicional. "As organizações funcionam de uma maneira fordista e tudo que é fora do padrão não tem espaço.", comenta. Ele espera que o guia seja utilizado por professores nas escolas da região e que sirva para realimentar valorização dos elementos culturais do lugar.

O trabalho utilizou imagens de satélite da região

ComCiência - Como surgiu a idéia do guia cultural da Costa do Descobrimento?
Antonio Augusto Arantes -
Ele tem uma história muito longa: começou como uma pesquisa acadêmica, com uma proposta de estudo de construção social da paisagem e a questão das fronteiras sociais, as identidades. A costa do descobrimento tem alguns processos fundamentais muito interessantes. Os pataxós recuperaram suas referências de identidade e vivem no Monte Pascoal. Há uma cultura tradicional está instalada, que foi bastante permeada por uma cultura globalizante dos turistas, dos mochileiros, dos jovens. E também tem o turismo de massa. A região é um dos cruzamentos do mundo, parecida com Goa, com Bali.

Então, comecei um projeto interessado em entender essa negociação de identidades, esse processo dinâmico de transformação de identidades. Aí, de acordo com um série de circunstâncias, os eventos foram me levando a fazer um estudo do impacto da construção de um monumento exatamente em Coroa Vermelha, que é o símbolo do descobrimento. E nós fizemos uma equipe grande, interessada em mostrar que aquele monumento era uma aberração, uma proposta descabida, tanto do ponto de vista cultural como ambiental. Esse estudo foi feito, publiquei, apresentei em congresso, ainda estava no meio acadêmico. O projeto do monumento em Coroa Vermelha foi então embargado e foi construído um outro, mais adequado. Depois disso, o Iphan tinha o interesse de desenvolver uma metodologia para o estudo do inventário cultural de regiões tombadas. Então me procuraram e desenvolvi uma metodologia. Fiz uma proposta para que nós fizéssemos um piloto na região do descobrimento para desenvolvermos uma metodologia. Mas isso foi em um período em que o Pronex, que financiava as atividades acadêmicas de pesquisa, estava meio suspenso e estávamos sem receber o dinheiro e eu tinha pesquisadores-alunos envolvidos no projeto. Aí o Iphan concordou com o piloto, pude ampliar a equipe e pudemos aprofundar o projeto. Trabalhamos sistematicamente em vista do desenvolvimento da metodologia. Era uma pesquisa acadêmica que derivou para um estudo de impacto ambiental e que levou ao desenvolvimento de uma metodologia de política cultural. A minha argumentação é que a sustentabilidade deve incluir a sustentabilidade cultural, social de qualquer grande empreendimento. É preciso conhecer a região, a população e os aspectos culturais da população. Em geral, os estudos de impacto focalizam muito mais os aspectos econômicos. Se um empreendimento vai contra os processos culturais instalados vai ter muita dificuldade de se enraizar efetivamente e produzir para a população local os frutos que uma atividade sustentável deveria trazer. É por isso o interesse do Iphan no estudo do inventário cultural, para que possa exigir do empresário algum trabalho dessa natureza.

O guia mostra a localidade e suas referências culturais

ComCiência - Como você compara o guia que vocês produziram com os guias tradicionas?
Arantes -
Basicamente a concepção é diferente. Tivemos a preocupação em informar as pessoas que estão em contato com aquela região, morando lá ou visitando frequentemente. Nos outros países é um pouco diferente mas, nos guias turistas do Brasil existe muito pouca informação sobre os lugares onde vivemos e frequentamos. A pobreza da narrativa dos guias turísticos, é trágica, realmente é uma coisa absolutamente clichê, absolutamente vazia e muitas vezes errada. Acho importante devolver a informação, que exista uma reflexividade no trabalho de pesquisa. Ao fazer um guia com esse material resolvi trabalhar com essa reflexividade. Tenho intenções muito claras na pesquisa.. Por exemplo, quando eu coloquei os comentários de Caio Prado, foi porquê eu queria exatamente aquele comentário sobre esse contexto. Ou quando eu coloquei o comentário de Caio Prado ao lado de um texto de Camões eu estava contrapondo dois autores que, do ponto de vista dessa região hoje, tem visões importantes para se colocar. Um tem uma visão enaltecedora, emergente e outro tem uma visão crítica desse processo. Na verdade, na costa do descobrimento as duas coisas convivem. Mal, mas convivem. Então acho importante por essas duas passagens uma ao lado da outra. Quando eu escolho um viajante e não outro é porque eu quero chamar a atenção para conservação desse aspecto, ou para a transformação de outro. Eu quero dar uma visão mais humanizada da presença indígena dessa região, do que uma visão folclorizada. Diferentemente dos guias turísticos, esse guia não está conversando com o lazer do viajante, ele está procurando explicitar as significações que foram escavadas pelo pesquisador e trazer isso à tona de modo que as pessoas que estão lá ou vivem lá vejam ou saibam do que se trata.

ComCiência - Nos últimos tempos tem surgido guias que se pretendem culturais. Principalmente de cidades como São Paulo, Nova Iorque e Rio de Janeiro. O que você acha desses guias?
Arantes -
Tem guias ótimos, turísticos. Tanto ponto de vista confiabilidade das informações - turísticas históricas e culturais - como do ponto de vista visual. Bem construídos, com um material visual riquíssimos. Eu acho que eles tem um papel importante a cumprir. Eu vi um guia que é um guia, por exemplo, sobre a estrada real em Minas Gerais e feito para caminhantes, que tem uma especificação muito rica, tanto da marca histórica como nas referências contemporâneas. Eu acho que esta preocupação do nosso trabalho está num contexto. É um trabalho de vanguarda, mas nós não somos os únicos. Mas acho muito bom também quando tem um guia que te ensina como chegar em algum lugar, onde se hospedar... Mas o problema é a tônica, que é a do mercado.

ComCiência - Mesmo no caso dos guias culturais?
Arantes -
Quanto aos guias culturais o que eu temo é a folclorização. É a transformação de referências culturais em atrativos turísticos. Procuramos contribuir para que isso se faça discursivamente. Tive muito cuidado com os adjetivos para não dizer: olha, esses são os atrativos turísticos. A gente procurou baixar a bola dessa interpretação de mercado da cultura. Até porque o mercado é dominante, ele não precisa de mais força. Acho que frequentemente os guias turísticos caminham na direção de constituir, de fazer parte do processo de transformação da cultura e das identidades em produto de mercado. Eu não tenho uma atitude purista, sei que se os pataxós quiserem dançar e cobrar dos visitantes como uma forma de geração de renda tudo bem, mas acho que eles têm que ter o direito de optar. Eles têm que poder ter festas que são parte de um ritual de pertencimento etc. Tem essas nuances. A cultura tem essa dinâmica de aspectos públicos, aspectos privados, estratégicos, que você expõe, que você apresenta para um determinado público. Cultura é um processo muito complicado, multifacetado, com muito meio-tom. E os guias culturais tendem a tirar o meio-tom e fazer aquele coisa enaltecedora, em que tudo é um barato, maravilhoso.

ComCiência - Mas nas cidades grandes, em que o mercado está presente na cultura, isso é diferente não?
Arantes -
Aí as atividades da cultura já são feitas para o mercado. Por isso é difícil falar em guias turísticos em geral, sobretudo a partir da minha experiência com o guia. Uma vez me perguntaram, em um seminário, sobre a metodologia que uso, se ela podia ser aplicada para uma mega-cidade. Eu acho que com muita dificuldade, muita coisa precisaria ser repensada. Mas é uma questão de escala. Quando se fala em uma cidade como São Paulo, eu vejo um guia como esse sobre a Vila Madalena, por exemplo. Porque é uma escala em que não se perde de vista a existência individual. As referências, a dona fulaninha que é benzedeira, o outro que faz barco, é numa escala que você pode abarcar com a sua experiência direta. Então, nesse sentido, dentro dessa concepção, poderia ter diversos pequenos guias.

ComCiência - É uma questão de escala? Se fosse feito uma algo semelhante com um bairro seria viável?
Arantes -
Perfeitamente. Para um conjunto de bairros ou até para o centro. Mas não é uma questão de ser centro ou periferia, rico ou pobre. É uma questão de escala, por exemplo, Jardim Europa, em São Paulo; tudo bem.. Você mapeia, você visualiza. Agora quando você muda de escala, por exemplo, região metropolitana de SP como um todo, você necessariamente se distancia e, ao se distanciar, você perde de vista, em grande parte, os processos culturais daquela experiência, experiência do lugar. Eu trabalho o tempo todo com o conceito de lugar. E é difícil trabalhar na escala de uma mega-cidade com noção de lugar. Tem um lugar que é emblemático da região metropolitana como um todo. Como eu disse, temos lugares como Trancoso, na região do descobrimento, que é emblemático de toda essa região e até do Brasil hoje. Um lugar onde todo mundo transita; desde o Leonardo di Caprio até o Hélio que toca o samba de couro, incluindo a classe média, o ônibus da Soletur e todo mundo transita.. Mas é, digamos, um microcosmo. Quando você trabalha numa escala numa mega-cidade como Rio de Janeiro, Nova Iorque, poderia se ter um guia de seus respectivos bairros. Por causa desse compromisso com a experiência. Nesse sentido ele é bem antropológico. Você pode fazer antropologia de grandes organizações e processos, mas essa particularidade do olhar antropológico em flagrar a cultura que está se fazendo. Então esse é um guia de contato, nesse sentido, por isso eu acho que ele se presta muito a um trabalho que chamam de educação para a comunidade. Um trabalho de reavivar na população de determinada região, determinado lugar, o seu sentimento de pertencimento àquela localidade. No caso da costa do descobrimento eu achei também interessante trabalhar o pertencimento ao local e ao nacional. Inevitavelmente Coroa Vermelha ela é um lugar de um cruzamento da identidade indígena e da identidade nacional. E tendo a argumentação para se justificar como sendo detentora de um bem como esse, os sujeitos individualmente e coletivamente ele tem que se projetar no contexto da nação, contexto nacional. É muito interessante isso, você estar num âmbito da experiência, do local, mas você está em um lugar onde os eixos se cruzam.

Atualizado em 10/03/02

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