Autonomia com compromisso social
Um grupo de 20 intelectuais ligados ao Fórum de Políticas Públicas do Instituto de Estudos Avançados da USP criou a sua própria proposta para a reforma universitária, visando contribuir para o debate sobre a reestruturação do ensino superior no Brasil. "O nosso grande ponto é a questão da democratização interna da gestão das universidades" afirma Sergio Cardoso, um dos redatores do projeto, que também contou com a participação da professora Marilena Chauí.
Cardoso, professor de ética e política do Departamento de Filosofia da USP concedeu entrevista à ComCiência, esclarecendo as principais propostas do grupo. "Nós queremos uma autonomia no sentido mais amplo da expressão, ou seja, autonomia institucional, no sentido administrativo, acadêmico, pedagógico e, sobretudo da pesquisa, que é o grande motor das universidades" ressalta.
ComCiência - Como surgiu a idéia de elaborar um projeto de reforma universitária dentro do Fórum de Políticas Públicas da USP?
Sergio Cardoso - A idéia de fazer esse projeto foi de trazer uma perspectiva diferente das que estavam sendo tomadas por outros grupos. A Andifes, por exemplo, tem uma proposta excelente, bem elaborada, avançada nos princípios, sobretudo na questão da ampliação da autonomia universitária e do estabelecimento de uma real liberdade de gestão financeira, patrimonial e de financiamento. O problema é que os dirigentes das universidades federais estão pensando sobretudo em termos de gestão e financiamento. A nossa perspectiva, segundo penso, avança em alguns dos pontos em que o projeto deles deixa a desejar. Nós queremos tomar a questão do ponto de vista da organização e da vida interna das universidades, ou seja, do seu perfil institucional. Então para nós o problema do financiamento não é central, o problema é a "cara" da nova universidade que queremos. Eu acho que a preocupação da Andifes é correta em pensar na autonomia administrativa e financeira, mas nós queremos que ela tenha, além desta autonomia, mais democracia interna e compromisso social.
ComCiência - Quais são as principais propostas?
Cardoso - Na verdade nós não temos propostas pontuais; trata-se mais de definir novos rumos, uma nova direção. Para nós, esta direção é a de uma autonomia real, mas não só financeira e administrativa; queremos uma autonomia no sentido mais amplo da expressão, ou seja, institucional: administrativa, acadêmica, pedagógica e, sobretudo, da pesquisa, que é o grande motor das universidades. Depois, que essa autonomia seja realizada com compromisso social por parte das universidades, ou seja, que elas adequem as suas atividades, como o ensino e a pesquisa, à realidade do país, às necessidades sociais, culturais, econômicas e mesmo às exigências regionais. Mas o nosso grande ponto é a questão da democratização interna da gestão das universidades, desde os orçamentos até os rumos da pesquisa, quer dizer, o que a universidade, como instituição democraticamente gerida, quer fazer de si própria e das suas atividades, seja de ensino, de pesquisa ou extensão. Nós insistimos porisso na idéia dos "orçamentos participativos", pois achamos que é um instrumento fundamental da realização da autonomia das universidades. Toda comunidade acadêmica, de maneira transparente e democrática, deveria discutir os orçamentos. Por que a universidade reserva determinada parte das suas verbas para tais cursos, para tais atividades? É preciso pensar se é isso mesmo que a comunidade acadêmica entende que seja o mais adequado. Até mesmo para tirar a universidade da rotina; porque hoje ela funciona na base da inércia, ou seja, sempre se deu tais verbas para a faculdade tal ou tal... Ora, ela precisa tomar consciência de si mesma e se readequar para um momento diferente da vida do país. Um bom instrumento para isso é que ela tenha um plano de atuação, um orçamento renovado, feito de uma maneira democrática, de modo que toda a universidade assuma a responsabilidade por esses planos. E não é tão difícil fazer isso: um plano de atuação periódico, conhecido pela sociedade, transparente, com a indicação das etapas e os orçamentos necessários, feito com a participação intensa dos professores, alunos e mesmo dos funcionários.
ComCiência - O senhor falou sobre democratização na pesquisa acadêmica e uma das propostas do fórum é que os recursos das agências de pesquisa, como Capes e CNPq, passem gradualmente para as mãos das universidades públicas. De que forma isso poderia ser feito?
Cardoso - O que se alega para que a universidade não decida que pesquisa ela quer fazer e como ela quer fazer é o corporativismo universitário, é a desconfiança sobre os pesquisadores, sobre o nível e capacidade acadêmica dos professores. Ou seja, há uma desconfiança em relação à universidade que faz com que se coloque fora dela os mecanismos de decisão sobre a pesquisa. Eu não acho que essa proposta possa favorecer o corporativismo dentro das universidades se as decisões forem institucionais, deliberadas democraticamente e assumidas pela instituição de uma maneira pública e transparente, ou seja, também discutida pela sociedade. Não se trata de uma autonomia sem freios, sem limites... E eu não temo o corporativismo, mas sim a direção do trabalho universitário por grupos, o que é pior. Aliás, as universidades sempre foram "corporativas", pois nasceram das corporações medievais de professores e alunos. Agora, isso pode e é contrabalançado pelos limites que a sociedade impõe.
Nós vivemos em um sistema inteiramente heterônomo, não somos autônomos para dizer qual pesquisa a universidade quer fazer, como ela quer fazer, como direcioná-la e em condições essa pesquisa deveria ser feita. Tudo isso é decidido, no final das contas, fora dela. E decidido por quem? Em nome da crítica do corporativismo da universidade, freqüentemente por pequenos grupos encastelados nas agências... É o que tem acontecido.
De um lado a nossa crítica é a seguinte: Por que as pessoas temem a autonomia e querem viver num regime heterônomo? Ou como afirmar a autonomia da universidade se, no registro de sua atividade fundamental, que é a pesquisa, ela é heterônoma? Essa é a nossa pergunta primeira. E a nossa proposta é que haja uma responsabilidade institucional das universidades sobre a sua pesquisa, sobre o seu orçamento de pesquisa... e eu acho que não é pedir muito. Porque hoje, por exemplo, se eu recebo um aluno de pós-graduação ele precisará de financiamento, bolsa etc, assim como todos os outros. E quem decide sobre isso é a Fapesp, é o CNPq; eu, como professor universitário, a rigor, não decido nada, percebe? Pois, se o estudante não recebe a bolsa, quase sempre é empurrado para fora do sistema. Não sei como a universidade tem aceitado conviver com essa situação que, aliás, é mascarada pela ideologia do "alto nível", da excelência, instalada nas agências..., na verdade, o que certos grupos acadêmicos entendem por alto nível e excelência do trabalho universitário. É por isso que nós dizemos que decisões democráticas e transparentes bem como uma gestão institucional dos recursos de pesquisa é o melhor remédio contra o corporativismo.
ComCiência - Mas dessa forma, com essa autonomia das universidades em decidir os rumos da pesquisa, não poderíamos ter problemas com a ausência de um plano diretor que leve à melhoria e ao progresso do país?
Cardoso - Nós temos mecanismos, instrumentos, para orientar essa pesquisa, ao invés de controlá-la. A própria Andifes propõe um conselho da educação superior que visa exatamente a orientar, integrar e levar sugestões às diversas unidades do sistema de educação superior. A universidade não quer ser um organismo voltado pra si mesmo, umbilicalmente centrado. Ela quer, muito pelo contrário, se abrir para a sociedade. Mas o que nós não podemos aceitar, por exemplo, é que decisões sobre as pesquisas que são feitas no país, não sejam tomadas de maneira clara, transparente e por agências sobre as quais as universidades, enquanto tais, não têm controle.
ComCiência - Com relação ao ensino, o grupo considera que se deve retirar grande parte do poder de definição das grades curriculares das mãos do MEC, passando-o a cada universidade, que definiria também seu próprio sistema de valorização das disciplinas, a duração dos cursos e a forma de recuperação de estudantes não aprovados nas disciplinas. Isso não poderia gerar uma diferença muito grande na formação de profissionais graduados em diferentes universidades?
Cardoso - Não se trata de dar às universidades total independência na determinação dos currículos. Não se trata de dizer que cada universidade vai ter um currículo, que vai fazer o que bem entende; até porque todos entendem que é preciso ter formas e instrumentos de integração do sistema universitário. Mas é consenso hoje - da Andifes, do MEC, da UNE e de todos os grupos que têm discutido essa questão - que as universidades precisam ter uma maleabilidade maior para se adaptar às exigências do meio em que elas estão. Uma coisa é você ter uma universidade no norte do país com determinadas exigências e com outras no Rio Grande do Sul, que não serão as mesmas do Amazonas; outra coisa é deixar que cada universidade faça o que bem entenda. Haverá, certamente, normas gerais para todas, valendo muitas delas tanto para as instituições públicas quanto para as privadas. A idéia é que haja instrumentos de uma maior flexibilidade para que as instituições definam seu perfil acadêmico, pedagógico e de pesquisa. Mas tem que ter o mínimo de integração do sistema e há muitas maneiras de fazer isso. Uma das propostas que está no nosso trabalho é a de que se tenha uma parte do currículo que seja nacional e uma parte que seja regional, assim haveria um bom equilíbrio entre as exigências consideradas.
ComCiência - Quais os principais obstáculos para que a proposta do Fórum de Políticas Públicas da USP seja aceita?
Cardoso - Eu acho até que muitas das coisas que nós propusemos, de alguma maneira, foram incorporadas pela Andifes e pela própria proposta do governo. Eu não vejo muitos obstáculos para muitos aspectos da nossa proposta. O que eu acho é que há uma cultura acadêmica um pouco medrosa da democracia interna. Ela teme o corporativismo e teme ficar nas mãos das lideranças sindicais e coisas tais, o que eu acho que é um equívoco. Se a universidade colocar em pauta, institucionalmente, a democratização de sua gestão, de modo transparente, eu acho que não existirá este perigo. Pois, a nossa proposta mais geral é de que precisamos prestar contas à sociedade, através de planos de ação, de atuação. A nossa idéia, inclusive, é de que se possa retirar verbas das universidades que não cumprirem o seu plano de atuação.
ComCiência - A proposta do Fórum da USP tem alguma sugestão sobre a proposta do MEC e da Andifes sobre a dissolução da estrutura departamental nas universidades?
Cardoso - Não diretamente; nós até vamos agora discutir mais isso, porque essa proposta nos parece problemática e polêmica, no mínimo. Até porque o modelo novo não está claro e isso para nós é central, pois podemos destruir a estrutura da universidade sem ter clareza de como nós queremos que a universidade funcione. O MEC, assim como a Andifes, está propondo a quebra da estrutura departamental em função de razões muito pragmáticas - e eu acho que não foram muito a fundo na questão do novo modelo - o que é muito problemático. Outra proposta que eu acho inaceitável, e grande parte dos meus colegas do Fórum também, é a idéia do ciclo básico. Embora seja preciso dizer que é hoje aceita por muitos nas universidades, nós temos em relação a ela uma crítica radical. O ciclo básico tenta resolver na universidade problemas que devem e podem ser resolvidos no nível do ensino médio. Essa proposta compromete a formação universitária porque quer preencher aí lacunas e funções que são do ensino médio. Isso pode trazer danos irreversíveis para a formação universitária no país. Estão voltando com a velha idéia dos cursos de licenciatura curta. Ora, nós lutamos a vida inteira contra isso...
ComCiência - O senhor acredita que em novembro o governo conseguirá apresentar um projeto fechado para a reforma universitária?
Cardoso - Eu acredito que sim, até porque ele se comprometeu e parece que vai cumprir. Agora, acho também que, nesses meses que restam, a comunidade universitária precisa se envolver mais com esse debate porque, caso contrário, muita coisa problemática pode passar, até mesmo por inadvertência. Algumas questões importantes estão sendo pouco discutidas, como a proposta dos ciclos básicos, da licenciatura curta, da quebra da estrutura departamental, das formas de financiamento das pesquisas e da democratização interna das universidades. Não basta discutir financiamento e aumento de vagas, não obstante a suma importância destas questões. Eu acredito que é preciso fazer a reforma, que é preciso ao menos indicar uma nova direção para as nossas universidades. Mas penso também que essa correção de rumos vai demorar a ser assimilada e a realmente fazer efeito; o que é normal. Porém, essa reforma será tão boa quanto nós conseguirmos fazê-la, porque ela não é apenas de responsabilidade do governo, muito pelo contrário. Ele, de toda maneira, está tentando dialogar.
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