"A vida se parece com o processo evolutivo, uma união de potencialidades e oportunidades"
Marco Antonio Del Lama, professor de evolução e pesquisador em genética de abelhas desde 1974, na Universidade Federal de São Carlos, professa também uma experiência religiosa na fé cristã, mais especificamente, na religião católica. "Ao iniciar a disciplina de evolução aos meus alunos da Universidade Federal de São Carlos, eu costumava brincar com eles dizendo que não era o meu parco conhecimento a respeito de evolução que me fazia levantar cedo e disposto da cama, mas a minha fé" afirma o pesquisador. Entrevistado pela ComCiência o pesquisador comenta questões polêmicas como a evolução cultural, extremismos religiosos e científicos e fornece uma descomplicada coletânea dos principais conceitos em que se baseia a biologia evolutiva, fornecendo também um breve panorama do estado-da-arte do conhecimento atual em genética e evolução.
Del Lama queria ser padre. Após alguns anos de seminário e cursando a faculdade de filosofia, ele decidiu tornar-se biólogo e, posteriormente, pesquisador em genética de abelhas. "A vida da gente se parece muito com o processo evolutivo: uma mistura constante de oportunidades e potencialidades" filosofa o geneticista.
ComCiência - Existe uma real incompatibilidade entre fé e ciência? Em que região estariam os limites? E sobre os riscos inerentes aos extremismos em cada uma delas? Como esses problemas poderiam ser atenuados?
Marco Del Lama: Eu tenho a nítida convicção de que não há essa incompatibilidade, de que ela não é real. Fico me perguntando se toda a inteligência que existiu para fazer a boa ciência que muitos eminentes cientistas fizeram deva nos levar a olhar com desconfiança o fato de eles apresentarem também uma atitude de fé. É difícil ficarmos imaginando que alguém possa, esquizofrenicamente, enfrentar a vida ora como um religioso e ora como um homem de ciência. Vejo o cientista como uma pessoa que, além da ciência, pratica também uma fé. A evolução de alguma forma pode me dizer como as coisas aconteceram e, por outro lado, a minha fé pode me dizer que, por trás dessa forma de ação está uma ação de Deus. A questão fundamental reside na decisão pessoal, que não exclui certamente a razão, de se relacionar ou não com um Deus pessoal.
ComCiência - Quais as contribuições da teoria evolucionista para a biologia atual? E para as demais áreas do conhecimento e a sociedade como um todo?
Del Lama - As duas grandes contribuições da teoria evolutiva para a biologia foram fornecer explicações naturais para a adaptação e para a diversidade. Ao propor o conceito de seleção natural Darwin foi capaz de incorporar uma explicação natural para esse fato - geração após geração, a seleção natural vai produzindo modificações nas características das populações que têm, como conseqüência, um ajuste mais fino desse organismo às condições de ambiente que ele experimenta. A outra grande novidade de Darwin é propor um mecanismo para a diversidade - todas as formas de vida foram produzidas a partir de modificações em formas pré-existentes, incorporando a idéia de uma ancestralidade comum. Como conseqüência, nós temos uma explicação natural do porquê alguns organismos são mais semelhantes entre si em razão de compartilharem uma ancestralidade mais recente.
A biologia evolutiva não é apenas um conjunto de conceitos abstratos, ela tem implicações no nosso dia-a-dia. Nos nossos dias, é senso comum que o uso indiscriminado de antibióticos, de inseticidas e outros químicos, levam à seleção de linhagens resistentes e que, por esta razão, o uso dessas substâncias deve ser feita com muito cuidado. Essas idéias foram produzidas no interior da biologia evolutiva.
ComCiência - Um dos questionamentos de segmentos anti-evolucionistas é o de que a evolução "não é um fato comprovado". Como geneticista, o que o senhor pode nos fornecer como fatos evolutivos...
Del Lama - Não vejo razões para duvidar de que a evolução é um fato, ao contrário, ela aconteceu e continua acontecendo, inclusive aos nossos olhos, se atentarmos para a realidade que nos cerca. As evidências acumuladas pela morfologia e embriologia, pela bioquímica (similaridade nas moléculas e processos vitais), pelo registro fóssil, pela biogeografia, entre outras, são garantias suficientes para testificar que a evolução é um fato.
ComCiência - Outro questionamento: "se o mais apto é o que sobrevive e os que sobrevivem são os que possuem mutações favoráveis... ou seja: os mais aptos" O senhor poderia nos esclarecer melhor sobre essa aparente tautologia ?
Del Lama - Essa é uma das críticas mais comuns à teoria evolutiva - A palavra favorável, embora seja uma forma concisa de expressar o argumento, é mal interpretada. O que se quer dizer com isso é: se os indivíduos portadores de um certo estado (forma variante) do caráter deixam um número de descendentes maior que a média da população na próxima geração esse traço ocorrerá em maior proporção. Portanto, ocorreu, naturalmente, uma mudança em uma das propriedades dessa população. Veja, portanto, que não há razões para que a seleção natural seja entendida como um ente, uma força, ou coisa que o valha. Seleção natural foi um termo proposto por Darwin para definir o sucesso reprodutivo diferencial (fitness ou valor adaptativo) de parte dos indivíduos de uma população por estes compartilharem um estado do caráter, razão do maior sucesso reprodutivo que eles apresentam em relação aos demais indivíduos da população.
O fitness darwiniano não é assim um conceito abstrato. Trata-se de uma proposição testável e que pode ser quantificada. O biólogo evolutivo tem meios de determinar qual o incremento no sucesso reprodutivo que a posse de um certo estado do caráter traz aos indivíduos de uma população.
ComCiência - Outro questionamento leigo: "porque a seleção artificial nunca produz uma nova espécie"?
Del Lama - O problema maior está na definição do que entendemos por espécie, isso é, qual o sentido que eu devo emprestar à palavra. Ao definirmos um conceito nós o delimitamos, o circunscrevemos. Nós não temos um critério único que possa ser usado para definir realidades tão distintas quanto as formas de vida atuais e fósseis, os organismos de reprodução sexuada e assexuada, os organismos que vivem nos mesmos ambientes ou em ambientes separados etc.
Nós podemos dizer que já fomos capazes de fazer várias novas espécies de plantas cultivadas, utilizando um protocolo que a natureza nos ensinou. Na natureza, inúmeras vezes espécies relacionadas foram capazes de produzir um híbrido viável, porém, infértil. Entretanto, por um evento fortuito, em algum momento nesses sucessivos experimentos da natureza, a duplicação do número cromossômico do híbrido permitiu-lhe doravante uma meiose normal, já que este híbrido duplicado agora constituía um duplo diplóide. Esse mecanismo fartamente conhecido e documentado na literatura genética, denominado alopoliploidia, tem sido utilizado há anos pelo homem com tanta freqüência que reconhecidamente a grande maioria das plantas cultivadas hoje tiveram como origem esse mecanismo que o geneticista aprendeu com a natureza. Como os duplos diplóides, formados a partir de eventos fortuitos de hibridação seguida de duplicação genômica, são capazes de se intercruzar, mas não o são com seus parentais, constituem prova de que nós podemos por seleção artificial produzir novas espécies. Veja que, neste caso, nós estamos utilizando o critério de intercruzamento para a definição de espécie.
ComCiência - Uma coisa é a evolução, outra seriam os mecanismos através dos quais ela ocorre...
Del Lama - A questão me permite esclarecer um ponto importante: a evolução é um fato ou uma teoria? A evolução é, ao mesmo tempo, fato e teoria. O fato evolutivo já foi discutido em pergunta anterior. Entretanto, a evolução também é teoria, isto é, nós temos realizado um grande esforço para conhecermos os mecanismos (os denominados fatores evolutivos) e processos que fazem com que a evolução aconteça. Nesse particular, nós ainda temos algumas dificuldades e visões alternativas a inúmeras questões. Longe disto parecer uma fraqueza, elas revelam o cerne do trabalho científico - os modelos que construímos a respeito da realidade que nos cerca devem ser aperfeiçoados à medida que novos fatos são conhecidos ou novas idéias são produzidas.
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