Diálogos
possíveis
Carlos
Vogt
O professor
Gleb Wataghin tem seu nome indelevelmente ligado ao Brasil, e a
Física moderna no Brasil, ligada, nas origens, ao professor
Wataghin, está historicamente associada à Física
dos Raios Cósmicos.
Nascido
na Rússia, em Odessa, doutorou-se em Física, em 1922,
pela Universidade de Turim, na Itália, sendo, em 1924 contratado,
como assistente da Escola Politécnica daquela universidade,
qualificando-se, mais tarde, em 1929, como livre docente em Física
teórica.
Wataghin,
assim como o matemático Luigi Fantappié, foi convidado
para a Universidade de São Paulo (USP) por Teodoro Ramos,
por sugestão e interferência de Enrico Fermi.
Desde
1931 vinha trabalhando na linha de investigação dos
raios cósmicos, cujas origens estão, primeiro, em
Robert Milikan, nos Estados Unidos e depois em Arthur Compton.
A vinda
de Wataghin para o Brasil inaugurou uma nova concepção
do ensino da Física e abriu, desde logo, duas correntes de
pesquisa em torno das quais se agregaram nomes que depois entrariam
definitivamente para a história do desenvolvimento da Física
moderna entre nós: em fins dos anos 1930, começo dos
anos 1940, uma dessas correntes, voltada para a Física teórica,
reuniu em torno de Wataghin, Mário Schenberg, Walter Schutzer
e Abraão de Moraes; a outra, voltada para os raios cósmicos,
Marcello Damy, Paulus Pompéia e Yolande Monteux.
Wataghin
viajou muito e teve contato com muitos dos grandes cientistas da
época, entre eles Lord Rutherford, Niels Bohr, Heisenberg,
Pauli, Max Born e o seu papel fundador e inovador para a pesquisa
científica brasileira foi fundamental.
Essa
herança permanece hoje inconteste tanto na USP, como na Unicamp,
cujo Instituto de Física leva, por reconhecimento e respeito,
o seu nome e onde discípulos de seus discípulos, por
gerações distintas, mantêm vivas as linhas de
pesquisa em raios cósmicos e as relações internacionais
de cooperação motivadas por sua vinda e por sua atuação.
Se
o Brasil teve, alguma vez, chance de chegar ao Prêmio Nobel,
foi nessa linha de pesquisa aqui instalada e implementada por Wataghin
quando, com 23 anos, César Lattes, em 1947, consagra-se,
internacionalmente, como um dos descobridores da partícula
méson pi, fato que por si só alavancou, num
sopro de entusiasmo e fortalecimento, a Física no Brasil.
O que
segue abaixo é uma colagem de depoimentos de grandes nomes
da Física brasileira colhidos em entrevistas, já publicadas,
para medir, enfatizando, a importância histórica dos
estudos de raios cósmicos, para cá trazidos por Gleb
Wataghin, e o papel fundador desses estudos para a formação
de competências e para a consolidação das pesquisas
em Física de partículas no Brasil.1
O diálogo
que eles aqui formam é fictício, mas os depoimentos
são reais. Juntas, ficção e realidade, alimentam
os mitos do conhecimento e a força renovadora de sua voz
em nossa história:
César
Lattes: Os primeiros físicos [no Brasil] tiveram a capacidade
de escolher uma Física barata, mas pesquisando assuntos de
fronteira. Quem iniciou a Física no Brasil foi um brasileiro,
o Joaquim da Costa Ribeiro, com o efeito Costa Ribeiro. No Physics
Abstract, no qual se apresentam resumos de trabalhos científicos,
está o chamado Costa Ribeiro Effect. Mas pouca gente
da comunidade científica sabe disso. O Wataghin, apesar de
teórico, escolheu trabalhar raios cósmicos. O padre
Roser, que começou o Departamento de Física da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, também vinha
de raios cósmicos. O Bernhard Gross, que iniciou outra escola,
mais de estado sólido, veio de raios cósmicos. Acho
que a Física de hoje em dia, mesmo a da matéria condensada,
tem que ser cara.
Bernhard
Gross: Naquele tempo não havia formação
de físicos no Brasil. Havia autodidatas, que tinham um trabalho
incomparavelmente maior para adquirir conhecimentos. Eu, por exemplo,
tive a maior admiração por pessoas como o Lélio
Gama, o Oliveira Castro, que foram autodidatas de uma honestidade,
de uma profundidade, absolutamente internacionais. Mas havia também
pessoas que perdiam o critério. E ninguém podia criticar,
porque ninguém trabalhava no mesmo assunto. Isso evidentemente
mudou quando começou a haver maior intercâmbio. A ciência,
eu acho, ficou mais objetiva.
Uma
coisa certamente me favoreceu: no instituto em que trabalhei na
Alemanha, o físico precisava saber fazer tudo. Quer dizer,
precisava ter a capacidade de saber fazer as coisas com as próprias
mãos, sem depender de equipamento, aproveitando o que existia
e sabendo construir o que faltava. Isso era uma orientação
mais ou menos geral na Alemanha, e era favorecida por duas coisas:
a falta de dinheiro e a extraordinária expansão
que a Física alemã experimentava então. Um
professor meu dizia: "Para fazer alguma coisa, é preciso
primeiro pensar e só depois comprar o aparelho."
Marcello
Damy: Naquele tempo, década de 30, os professores apenas
ensinavam Física. E da seguinte maneira: o professor estudava
a aula na véspera para no dia seguinte passar para os alunos.
A diferença do conhecimento do professor para o aluno era
de 24 horas. Em 1938, depois de formado, fui para a Universidade
de Cambrigde, na Inglaterra, e estagiei no Laboratório Cavendish,
que era o maior centro de Física do mundo. Lá apresentei
um projeto ao meu diretor, William Lawrence Bragg, Prêmio
Nobel de Física, para a construção de um equipamento
meio complicado para estudar raios cósmicos penetrantes,
que caíssem em grande extensão. Ele aprovou o projeto
e quando o aparelho estava quase pronto para funcionar veio a decisão
de fechar a universidade, por causa da guerra. Aí meu supervisor,
W. H. Lewis, me convidou a ficar lá, trabalhando com eles.
Eu disse que não dependia só de mim, até porque
eu estava lá pelo governo brasileiro. Eles escreveram uma
carta ao nosso governo perguntando sobre essa possibilidade. E por
sorte minha e por azar deles - ou vice-versa - o ministro das Relações
Exteriores era o Oswaldo Aranha, primo-irmão do meu pai.
O raciocínio dele foi este: "Se o Marcello pode ser
tão útil na Inglaterra a ponto de quererem mantê-lo
lá, ele vai ser muito mais útil aqui, porque não
temos ninguém com essa especialização."
Aí, voltei.
José
Leite Lopes: [Por volta de 1946], havia os trabalhos pioneiros
de Bernhard Gross sobre Física do estado sólido. Havia
o Francisco Mendes de Oliveira Castro, matemático e físico-matemático,
que se interessava pelos problemas experimentais e seu tratamento
matemático. Na Faculdade de Filosofia, tínhamos o
Joaquim Costa Ribeiro e seus assistentes e o Plínio Sussekind
Rocha, homem de grande cultura, sobretudo filosófica, professor
de mecânica celeste e mecânica racional. Eu queria desenvolver
a Física teórica voltada para a Física nuclear
e a Física de partículas. Nesse terreno não
havia nada no Rio de Janeiro. [Em São Paulo], havia a equipe
do Mario Schenberg, que fazia Física teórica, e o
Marcello Damy de Souza Santos, que comandava a Física experimental.
Como na Universidade de São Paulo existia o regime de tempo
integral, eles podiam se dedicar exclusivamente à pesquisa
e ao ensino na universidade. Não era o caso no Rio de Janeiro.
Mario
Schenberg: No Brasil [os] contatos com Wataghin e Occhialini
foram muito estimulantes. [...] Em 1938, comissionado pelo governo
do estado de São Paulo, fui para a Itália. Occhialini
voltava para lá, em férias. Viajamos juntos, e no
navio fizemos um trabalho experimental sobre a variação
da intensidade dos showers de raios cósmicos com a latitude.
Voltei a trabalhar com ele, mais tarde, ligado a um grupo de Física
experimental, na Bélgica. Em Roma, trabalhei com Enrico Fermi.
Publiquei dois trabalhos sobre as funções singulares
da eletrodinâmica quântica, que saíram na revista
Physica. Publiquei depois um trabalho mais completo no Journal
de Physique et du Radium. Fiz um trabalho interessante sobre
a origem dos raios cósmicos a partir dos mésons, partículas
altamente ionizantes, e não elétrons e fótons,
como se pensava na época. Fermi não acreditou nisso,
e eu só redigi o trabalho aqui, publicando-o nos Anais da
Academia Brasileira de Ciências. Mas o trabalho está
citado no livro de Heisenherg sobre raios cósmicos. Depois
de Fermi sair da Itália, fui para Zurique, onde trabalhei
com o professor Pauli. Encontrei Pauli várias vezes mais
tarde, em Princeton em 1941, e depois da guerra, em Zurique, onde
ele ensinava. Tivemos contatos freqüentes, que me influenciaram
muito, não só do ponto de vista da Física.
Eu que já tinha interesse pela filosofia oriental, fui estimulado
por ele em muitas conversas sobre esse assunto. De Zurique, como
a guerra estava para arrebentar, fui para a Bélgica, perto
de um porto de mar onde pudesse tomar um navio de volta. Passei
antes por Paris onde encontrei Bruno Pontecorvo, a quem me haviam
recomendado na Itália. Ele me apresentou a Frédéric
Joliot e passei alguns meses no Collège de France onde dei
seminários e conheci Paul Langevin. Da Antuérpia peguei
um navio do Lloyd Brasileiro. Era abril, e as tropas alemãs
entravam em Praga. A guerra começou em setembro, quando os
alemães invadiram Varsóvia. Foi um período
interessante. Gostei muito da Itália, onde me identifiquei
com o povo e vi muita coisa sobre arte. Foi quando comecei a me
interessar de novo pela arte. Em Paris conheci Di Cavalcanti que
tinha um atelier com Di Chirico. Foi muito interessante fazer essa
viagem a Europa, antes da guerra. Paris antes da guerra era outra
coisa. Foi um mundo que ainda pude conhecer e que desapareceu.
Oscar
Sala: Meu primeiro contato com a Física foi com a expedição
Compton, que veio ao Brasil em 1940, 1941.
Naquele
tempo, principalmente quem era do interior, assim que terminasse
o ginásio ia fazer medicina, engenharia ou odontologia. Assim,
vim fazer engenharia e entrei na Politécnica. Quando estava
de férias em Bauru, no campo de aviação havia
uma grande movimentação com os balões que eram
soltos a grandes altitudes para medirem a radiação
cósmica. Um dia estava lá vendo e comecei a conversar
com um senhor, que era justamente o Wataghin. Eu já tinha
lido um pouco sobre radiação cósmica e fiz
algumas perguntas a ele. Estranhou um pouco um caipira estar lá
querendo saber de Física. Perguntou o que eu fazia, e afinal
me convenceu a sair da Poli e eu entrei na Física, parte
da Faculdade de Filosofia.
Logo
depois que entrei, em 1941, o Brasil entrou na guerra e o Damy,
que estava na Inglaterra, e o Pompéia em Chicago, voltaram,
e assumiram, no Brasil o projeto Sonar, da Marinha do Brasil, para
detecção de submarinos na costa brasileira. O Wataghin
estava interessado em continuar as experiências sobre os chuveiros
penetrantes de raios cósmicos, que, publicadas em 1940, davam
a Wataghin, Damy e Pompéia a descoberta de que as partículas
detectadas não eram de origem eletromagnética, mas
eram provenientes de condições energéticas
nucleares... Wataghin se propunha a estudar os chuveiros produzidos
localmente, quer dizer, perto do ponto onde se dava a colisão,
para saber se havia produção múltipla de partículas...
Durante a guerra trabalhei sozinho com Wataghin, construindo todos
os circuitos dos contadores Geiger, que tínhamos de boa qualidade,
deixados no Departamento pela expedição Compton. Fizemos
os primeiros testes no laboratório, na Física, que
era na avenida Brigadeiro Luiz Antonio, 124 (...) Fizemos a montagem
e começamos as medidas, no ático da Faculdade de Medicina
como primeiro ponto da curva de absorção em função
da altura. O nosso arranjo era constituído de chumbo, para
eliminar os "chuveiros" de origem eletromagnética,
e sobre esse chumbo colocávamos grande quantidade de parafina
ou água. Os "chuveiros" produzidos nessa parafina,
ou água, então eram showers localmente produzidos.
Eram medidas demoradas, levavam dez meses contínuos. Fizemos
as medidas aqui e depois fomos para Campos do Jordão, perto
do pico de 2000 e tanto, quase três mil metros, no Umuarana,
para registrar um outro ponto, e depois fizemos medidas com aviões
da FAB. Os resultados foram publicados, em trabalhos de 1944/45.
O importante, nesse período, é que trabalhei praticamente
sozinho, pois o Wataghin era um teórico. Eu cuidava das experiências
na Medicina, em Campos do Jordão e assim por diante. Mas
eu tinha uma interação muito grande com o Damy e o
Pompéia, principalmente, e, como físicos experimentais,
eu discutia muito com eles. Por causa disso, também como
eles comecei a participar da parte da defesa, construindo para o
exército um transmissor portátil que foi levado para
a Itália [com a Força Expedicionária Brasileira,
que lutou contra o "Eixo" Itália, Alemanha, Japão,
na segunda guerra mundial (1941-1945)].
Mas
o importante era o seguinte: era um departamento pequeno, eu o único
experimental, fora o Damy e o Pompéia que estavam no projeto
da Marinha, tinha o Walter Schutzer, o Lattes, a Sonia Ashauer,
o Abraão de Moraes, o Mario Schenberg, e existia um ambiente
excepcionalmente bom, onde as pessoas se encontravam diariamente.
Havia grande interesse em saber o que cada um estava fazendo, contar
seus resultados, e se discutia Física intensamente no Departamento.
Eu acho que foi a grande coisa, esse tipo de ambiente que o Wataghin
proporcionou foi a razão do sucesso da Física no Brasil.
Foi extremamente importante para a formação da gente,
por exemplo eu, que não tive tempo nem de assistir aula,
o que não fiz foi assistir aula no Departamento, mas aprendi
conversando com o Schenberg, com o Wataghin, com o Damy, com o Abraão
de Moraes, e todos os outros.
Marcello
Damy: Wataghin era um físico teórico. Quando começamos
a construir os aparelhos, minha experiência com rádios
serviu. Eu sabia soldar, trabalhar com eletrônica, sabia como
uma válvula funciona. Occhialini veio com aquele espírito
fundamentalmente experimental do laboratório Cavendish, em
Cambridge, e defendia a necessidade de fazer o aparelho para realizar
um experimento. Na época não havia alternativa. Trabalhávamos
todos os dias e todas as noites, aos sábados e muitas vezes
aos domingos. Esse entusiasmo é que fez com que a Física
progredisse tanto num tempo tão curto em São Paulo.
Bolsas
[só] começaram a existir depois de 1951, com a criação
do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Antes as bolsas eram da
Fundação Rockefeller, da Fundação Guggenheim
e do British Council. Fui para a Inglaterra pelo British Council
e o Mário Schenberg para os EUA pela Fundação
Rockefeller.
[...]
Wataghin teve a sensibilidade de escolher o tema mais quente da
época. Os raios cósmicos foram descobertos em 1900,
por C.T.R. Wilson na Inglaterra, mas poucos laboratórios
se dedicaram ao tema até 1918, porque as observações
eram feitas só com câmaras de ionização.
Observa-se a corrente, mas não era possível saber
com certeza se se tratava de raios gama ou partículas carregadas.
Não se podia medir bem a energia. Essa situação
mudou depois de 1925, com a descoberta do contador Geiger-Müller.
Por volta de 1936 conseguimos fazer contadores que funcionavam razoavelmente
bem para a época e que não envolviam uma técnica
de fabricação complicada. A maior dificuldade era
a parte de eletrônica, que no Brasil não era ensinada
em lugar nenhum. Recordo-me de ter recebido críticas violentas
quando comecei a ensinar eletrônica na faculdade. Diziam que
aquilo era assunto para técnicos de rádio, não
para cientistas.
[O
professor Bernhard Gross também] trabalhava com raios cósmicos
em câmaras de ionização, seguindo a escola de
E. Regener, um dos pioneiros dos estudos de raios cósmicos,
de quem fora assistente, e ficou célebre pelo seu trabalho
conhecido como a 'Transformação de Gross'. Occhialini
e eu íamos ao Rio para discutir com o Gross, que em 1935
ainda era muito jovem, talvez tivesse dois ou três anos de
doutoramento, mas já havia trabalhado na Alemanha com Regener,
o primeiro a demonstrar, no lago Leman, que a radiação
cósmica penetrava 1.500 metros de água.
Bernhard
Gross: [Quando iniciei meu trabalho no Rio de Janeiro], eu ficava
completamente só numa sala vazia. A Divisão de Física
do Instituto de Tecnologia só estava criada no papel. Mas
eu precisava de uma mesa, cadeira se arranjava, escrivaninha se
arranjava; arranjavam-se também alguns instrumentos emprestados,
alguns se conseguia comprar. No começo conseguiu-se emprestado
no Observatório Nacional, cujo equipamento elétrico
fora comprado pelo Henrique Morize. Eu precisava de uma fonte de
tensão: comprou-se uma bateria de acumuladores de 500 volts.
Não me lembro como se arranjou um galvanômetro.
Em
1939 houve um acontecimento importante: conseguimos comprar uns
equipamentos bons da fábrica alemã Hartmann Braun
, tais como resistência de cravelhas, que então se
usava, e galvanômetros. Eletrômetros comprei só
um pouco mais tarde. Evidentemente eu não vou contar toda
a história das compras. Desde então e até a
guerra, começou-se a importar comercialmente uma porção
de equipamentos que ainda existem e que eram de muito bom padrão,
inclusive o chamado Pêndulo de Helmholz, um interruptor de
pêndulo que hoje não se usa mais porque há os
circuitos eletrônicos transistorizados. Foi com esse material
que se fez aquele trabalho sobre os zeólitos, que não
era uma obra de mestre, mas continha alguns aspectos experimentais
interessantes. Foi publicado tanto nos Anais da Academia Brasileira
de Ciências como numa revista alemã de cristalografia
em 1935.
César
Lattes: No meu campo, dinheiro não é muito importante.
Todo dinheiro que precisei sempre me foi concedido. Quando foi preciso
duplicar as câmaras de emulsões em Chacaltaya, deram-me
dinheiro. Na minha área o importante é que haja um
grupo mínimo, que interaja e que tenha criatividade. Deve-se
pôr constantemente em dúvida o que está escrito
nos livros. Não é uma coisa sistemática de
negar o que está lá, mas simplesmente devemos reexaminá-los,
porque os tempos passam. Deve-se ter muito medo dos livros didáticos,
de pedagogia. Gostaria de citar três afirmações
que não são minhas: "Quem sabe faz, quem não
sabe ensina, e quem não sabe ensinar ensina a ensinar."
Posso estar errado, mas é básico o que antigamente
se chamava "a procura da verdade". Francisco de Campos
tem uma nota ao pé da página naquele livrão
do Fernando Azevedo, sobre cultura brasileira, dizendo que se você
em vez de procurar a verdade quiser resolver problemas, você
praticamente se autocastrará.
As
grandes descobertas da ciência foram feitas até há
pouco tempo por acaso, por gente que queria saber como era feita
a natureza. Seguiam o conselho de Leonardo da Vinci: "Vá
aprender suas lições na natureza". Quando se
começa a dizer que a universidade deve servir à comunidade
e que tem que igualar nosso padrão de vida do primeiro mundo,
isso não é mais ciência, é outra coisa.
Na universidade, se você falar em coisa que não tem
aplicação, o reitor fica de orelha em pé, não
quer saber. O Pasteur dizia: "não há ciência
pura e ciência aplicada, há ciência e aplicações
da ciência." Ele fez aplicações formidáveis
do ponto de vista econômico. Só o carbúnculo
rendeu mais que as reparações da guerra da Alemanha,
segundo a Enciclopédia Britânica. Sem contar a pasteurização,
o bicho-da-seda e, no fim da vida, a vacina anti-rábica.
Mas quem era Pasteur? Era um professor secundário de Física,
Química e Cristalografia. Tinha uma curiosidade grande de
iniciar coisas. Fez a tese na École Normale, em Paris. Depois,
onde foi dar aula, tinha vinho e cerveja. Aí, veio a pasteurização.
Ele, embora professor secundário, tinha a alma de cientista.
Queria saber, por exemplo, se havia geração espontânea
ou não. Há coisas muito interessantes na natureza.
Sempre
achei que só se pode melhorar a qualidade de vida de uma
nação formando cidadãos pensantes. Isso significa
educação primária essencialmente, que só
pode ser feita com bons professores secundários. Para ter
boa educação secundária, precisamos de bons
professores universitários. E para isso necessitamos de pesquisa.
A sensação que tínhamos era que o Brasil poderia
dar um bom pulo se houvesse gente bem-treinada e capacitada.
Na realidade, não foi nem a Inglaterra nem os EUA que me
deram a formação de físico. Foi em São
Paulo, com o Wataghin, com o Occhialini e com o Damy. Quando cheguei
em Bristol, o Powell, que era o "dono-da-bola", tinha
deixado as chapas em cima da mesa e o Occhialini, com tradição
de raios cósmicos, estava estudando espalhamento de partículas
em chapas velhas. Quer dizer, não aprendi nada com eles,
a não ser inglês.
Notas:
1. As entrevistas aqui utilizadas
estão publicadas no livro Cientistas do Brasil - Depoimentos,
SBPC, CNPq, Fiesp, Ciência Hoje, São Paulo, 1998;
foi utilizada também a entrevista de Marcelo Damy de Souza
Santos concedida, recentemente, à revista Pesquisa Fapesp,
nº 85, março 2003.
|