Editorial:
Ciência, Tecnologia e Inovação: desafios e contraponto
Carlos Vogt
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Sistema de C & T é gerido por diversas instituições
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A inovação tecnológica nas grandes empresas
Incubadoras geram empregos e inovações
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Artigos:
O intinerário da pesquisa no Brasil:
Evando Mirra
Os desafios para transformar conhecimento em valor econômico:
Roberto Nicolsky
Livro Verde pode ampliar conceito de política científica:
Ulisses Capozoli
Interação Rhodia-universidades no Brasil:
Saul D'Ávila
Quando o setor produtivo faz C&T:
Adermerval Garcia
Poema
Bibliografia
Créditos

 

 

Os desafios para transformar conhecimento em valor econômico

Roberto Nicolsky

Uma questão crucial e oportuna para um país emergente, que busca caminhos para alcançar um nível de produção e renda compatíveis com as necessidades da sociedade, são os processos, e os seus desafios, para gerar valor econômico a partir do conhecimento. Ou seja, é a relação entre o dispêndio em pesquisa e desenvolvimento (DPD) e o crescimento do produto interno bruto (PIB) do país, no presente cenário de um mundo globalizado, além da forma em que esse DPD é aplicado.

Comecemos por compreender como se realiza o processo em que um dado conhecimento é incorporado ao valor econômico de um produto ou processo. Esse mecanismo é complexo e variável para cada tipo de agregação. Entretanto, é possível estabelecer algumas etapas comuns a todos os processos, sistematizando-os para que possamos melhor compreendê-los e até interferir, com a formulação de políticas públicas para o seu pleno desenvolvimento.

O uso de um conhecimento científico em uma nova aplicação determina o que vamos chamar de uma descoberta tecnológica. Esse conhecimento tanto pode ser já consagrado em outros usos (por exemplo, válvula de emissão termoiônica para fazer o cinescópio da televisão) ou acabado de ser descoberto (uso do cristal líquido para fazer uma tela de calculadora). Nessa fase embrionária, uma descoberta tecnológica é, em si mesma, essencialmente um novo conhecimento, um conhecimento tecnológico, que se constitui na própria proposta de uma aplicação criativa do conhecimento científico.

Nesse estado nativo, é de muito interesse para atividade acadêmica, principalmente para a capacitação de recursos humanos para a pesquisa, e também porque pode ser objeto de publicações e teses. Mas não tem ainda, de per se, um valor econômico, pois não é suficientemente robusta para competir, no mercado, com as alternativas tecnológicas existentes, e nem é ainda patenteável.

À essa descoberta tecnológica começam, então, a ser agregados inúmeros aperfeiçoamentos, ou inovações tecnológicas, contadas, muitas vezes, às centenas e até milhares, tanto no produto quanto no seu processo de fabricação. Essas inovações vão implementando a robustez da tecnologia até dar-lhe suficiente competitividade, para que possa vir a disputar com as outras tecnologias do mesmo produto ou processo, ou do seu substituto, uma parcela do seu mercado.

É importante notar que, em sua grande maioria, essas inovações não exigem que seja gerado um novo conhecimento, mas são simplesmente o uso criativo, para o caso específico, de conhecimentos já existentes. Por exemplo, fazer a tela do cinescópio plana ou tornar a tela de cristal líquido em matriz ativa. Assim, são, em geral, patenteáveis mas não publicáveis.

Desta forma, podemos conceituar uma descoberta científica ou tecnológica como um ato acadêmico, realizado no âmbito da universidade, destinado à capacitação de recursos humanos qualificados e gerador de novos conhecimentos publicáveis nos periódicos especializados, como prova de sua originalidade e valor como um conhecimento.

A inovação, ao contrário, como acima apresentado, é uma atividade econômica, executada no ambiente da produção, e que se destina a dar mais competitividade a uma tecnologia, ou descoberta tecnológica, de um produto ou processo, ampliando a sua parcela de mercado e, assim, agregando valor econômico e lucratividade.

Portanto, uma tecnologia constitui-se de uma descoberta, o uso de algum conhecimento recente ou não em uma nova aplicação, robustecida por centenas ou milhares de inovações utilizando criativamente conhecimentos existentes. Um mesmo produto tem, em geral, umas poucas descobertas amplamente conhecidas através de publicações e centenas ou milhares de inovações, protegidas do conhecimento e uso por terceiros através de patentes.

Como exemplo, temos a tela de monitor que, em 70 anos de existência, teve duas descobertas tecnológicas, válvula termoiônica e cristal líquido, e milhares de inovações patenteadas por diversos fabricantes, pois é óbvio que os atuais modelos no mercado só têm em comum com os primeiros as descobertas tecnológicas. Outro exemplo é a propulsão do avião que, em cem anos, só teve três descobertas: a hélice, o turbo-hélice e o jato. Mas o número de inovações conta-se aos milhares.

Note-se que as inovações podem ser desenvolvidas em descobertas tecnológicas recentes ou antigas, pelos que realizaram a descoberta ou por outros produtores. Assim, a Coréia, embora domine o mercado de monitores, não descobriu nenhuma das duas tecnologias usadas para telas. O mesmo ocorre com a telefonia celular, que não é descoberta da Nokia, da Samsung ou da Motorola, os três principais fabricantes. Assim como a Embraer não descobriu o avião.

Como a descoberta tecnológica, em seu estado natural, não tem viabilidade no mercado sem as inovações, fica claro que essas é que são o real mecanismo de agregação de valor econômico, na medida em que transformam uma descoberta em um produto ou processo capaz de disputar o mercado, pela quase contínua incorporação de conhecimentos.

Um aspecto relevante é que uma descoberta tecnológica pode consumir 10, 20 ou mais anos para alcançar suficiente robustez para tornar-se uma tecnologia e disputar mercado. E, por vezes, isso jamais acontece e a descoberta acaba definitivamente abandonada. O seu risco, portanto, é muito elevado. A inovação, ao contrário, na medida em que é o atendimento de uma demanda real do mercado, por ser mais objetiva, é rapidamente implementada e, por essas razões, tem baixo risco.

Portanto, mesmo para um país que descobre novas tecnologias, como os países do primeiro mundo, é indispensável ter uma eficiente geração de inovações no setor produtivo, para que alcance uma agregação efetiva de valor econômico com o uso do conhecimento. E este, entretanto, nem precisou ser gerado no próprio país, como é o caso de Taiwan e Coréia. Portanto, para transformar conhecimento em valor agregado, a geração de inovações é condição indeclinável. E a descoberta de novas tecnologias é conveniente, desde que o setor produtivo seja um gerador de inovações.

A posição do nosso país está muito aquém do desejável e até do necessário para alimentar o nosso desenvolvimento sustentado. Temos realizado, nos últimos 30 anos, o DPD de modo irregular e, principalmente, ineficiente, para a transformação de conhecimento em valor econômico, posto que a nossa política de fomento à pesquisa (ou política de ciência & tecnologia, na nomenclatura oficial) não contempla a geração de inovações pelo setor produtivo, mas apenas as descobertas científicas e tecnológicas, realizadas no âmbito acadêmico. É o que mostram a medida da nossa inventividade e de crescimento do PIB.

A medida internacionalmente usada para avaliar o grau de inovação é a outorga ou obtenção de patentes de invenção. Como as patentes têm âmbito local, toma-se o mercado americano para comparação, por ser o maior mercado mundial, com 157 mil patentes em 2000. Apenas 12 países geram 95% dessas patentes americanas. Entre esses, só dois emergentes: Taiwan, o quarto, e Coréia, o oitavo. A nossa posição é humilhante para a nossa criatividade, o tamanho e a diversidade da nossa economia e as expectativas da nossa sociedade: tivemos menos de um milésimo das patentes, em 2000.

Mas o mais grave é que enquanto crescemos de três em três patentes, os países acima citados agregam cerca de uma quarta parte a cada ano, dobrando a cada três anos. São países que mobilizam a sua criatividade para alcançar a autonomia tecnológica, assegurar a competitividade, elevar a renda, distribui-la de forma justa e, assim, construir o próprio futuro. E inovação tecnológica própria é o que não temos na medida do necessário. Veja-se o quadro abaixo.

Patentes outorgadas nos Estados Unidos

 

1980

2000

Crescimento anual médio

Estados Unidos

37.354

85.072

2.331 unidades1

Taiwan

65

4.667

22,4%

Coréia

8

3.314

26,0%

Brasil

24

98

3 unidades1

Fonte: U.S. Patent and Trade Mark Office. (1) Ajuste linear.

A consequência direta da competência na inovação é que o país pode disputar o mercado internacional pela via das exportações. Isso amplia o mercado para os seus produtos e, assim, propicia condições de um crescimento mais rápido da economia, isto é, do PIB. Veja-se, no quadro abaixo, como o nosso desempenho se compara com países que têm uma intensiva geração de inovações, uma vez que é no setor produtivo que se executam mais de 70% do DPD total do país.

Crescimento do PIB e do dispêndio em inovação, taxas anuais médias (%)

 

PIB1: 1980-1999

Dispêndio em inovação3: 1980-1998

Brasil

2,9

 

Estados Unidos

3,5

4,9

Taiwan (1981-2000)2

7,0

9,6

Coréia

7,6

10,0

Fontes: 1) Banco Mundial; 2) página Internet; 3) KITA, 2000.

Temos o pior desempenho entre os países acima e nem sequer temos os dados de dispêndio em inovação do nosso país, estimados em cerca de 0,10 a 0,15 do PIB. O mais grave, porém, é que a distância entre a nossa economia e a dos EUA aumentou nos últimos vinte anos. Além disso, fomos ultrapassados em PIB per capita por Taiwan (US$ 14,4 mil) e pela Coréia (US$ 13,7 mil), contra apenas US$ 3,5 mil do nosso país, o 81o do mundo. Em 1981, porém, o PIB per capita da Coréia era um quarto menor e o de Taiwan só 5% maior do que o nosso. Ou seja, em cerca de 20 anos, o PIB per capita de Taiwan cresceu quase quatro vezes mais do que o nosso, e o da Coréia, cerca de cinco vezes mais.
O nosso mau desempenho em inovações deixou as indústrias nacionais, que sobreviveram à desnacionalização dos anos noventa, sem um mínimo de competitividade, condição essencial ao crescimento da sua produção. Ora, sem fomento governamental para inovações tecnológicas e sem tempo e capital para desenvolvê-las com risco próprio, as empresas foram compelidas a recorrer ao licenciamento de patentes e de tecnologias do exterior. Isso propiciou um crescimento moderado de 23% do PIB, de 1992 a 1997, ao custo de se elevarem as patentes licenciadas em quase cem vezes e os gastos diretos com licenciamentos externos em mais de nove vezes, no período, como se nota no quadro abaixo.


Gastos com licenciamentos externos (US$ milhões)

 

1992

1997

fator 1997/1992

Patentes

3

289

96,3

Tecnologia

31

647

20,9

serviços técnicos

116

468

4,0

cópias de software

59

449

7,6

Outros

10

134

13,4

TOTAL

219

1987

9,1

Fonte: Banco Central

O desafio, portanto, é gerar no país as inovações tecnológicas exclusivas que nos faltam para propiciar, à nossa produção, um alto valor econômico agregado e uma forte competitividade nos mercados internacionais. Os exemplos de Taiwan e Coréia, países emergentes que realmente estão crescendo pela via da inovação própria, são os exemplos. Outros são China e Índia, que já seguem a mesma trilha com resultados significativos.
Para vencer esse desafio, precisamos criar políticas públicas de fomento à inovação própria gerada no setor produtivo, principalmente para tecnologias já existentes e comerciais. Mas, para realizá-lo, precisamos, decididamente, empenhar-nos em mobilizar os produtores, bem como a toda a sociedade.

Roberto Nicolsky, 63, é professor do Instituto de Física da UFRJ e coordenador-geral de pesquisa do Laboratório de Aplicação de Supercondutores.

Atualizado em 10/09/2001

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