Os
desafios para transformar conhecimento em valor econômico
Roberto
Nicolsky
Uma
questão crucial e oportuna para um país emergente,
que busca caminhos para alcançar um nível de produção
e renda compatíveis com as necessidades da sociedade, são
os processos, e os seus desafios, para gerar valor econômico
a partir do conhecimento. Ou seja, é a relação
entre o dispêndio em pesquisa e desenvolvimento (DPD) e o
crescimento do produto interno bruto (PIB) do país, no presente
cenário de um mundo globalizado, além da forma em
que esse DPD é aplicado.
Comecemos
por compreender como se realiza o processo em que um dado conhecimento
é incorporado ao valor econômico de um produto ou processo.
Esse mecanismo é complexo e variável para cada tipo
de agregação. Entretanto, é possível
estabelecer algumas etapas comuns a todos os processos, sistematizando-os
para que possamos melhor compreendê-los e até interferir,
com a formulação de políticas públicas
para o seu pleno desenvolvimento.
O uso
de um conhecimento científico em uma nova aplicação
determina o que vamos chamar de uma descoberta tecnológica.
Esse conhecimento tanto pode ser já consagrado em outros
usos (por exemplo, válvula de emissão termoiônica
para fazer o cinescópio da televisão) ou acabado de
ser descoberto (uso do cristal líquido para fazer uma tela
de calculadora). Nessa fase embrionária, uma descoberta tecnológica
é, em si mesma, essencialmente um novo conhecimento, um conhecimento
tecnológico, que se constitui na própria proposta
de uma aplicação criativa do conhecimento científico.
Nesse
estado nativo, é de muito interesse para atividade acadêmica,
principalmente para a capacitação de recursos humanos
para a pesquisa, e também porque pode ser objeto de publicações
e teses. Mas não tem ainda, de per se, um valor econômico,
pois não é suficientemente robusta para competir,
no mercado, com as alternativas tecnológicas existentes,
e nem é ainda patenteável.
À
essa descoberta tecnológica começam, então,
a ser agregados inúmeros aperfeiçoamentos, ou inovações
tecnológicas, contadas, muitas vezes, às centenas
e até milhares, tanto no produto quanto no seu processo de
fabricação. Essas inovações vão
implementando a robustez da tecnologia até dar-lhe suficiente
competitividade, para que possa vir a disputar com as outras tecnologias
do mesmo produto ou processo, ou do seu substituto, uma parcela
do seu mercado.
É
importante notar que, em sua grande maioria, essas inovações
não exigem que seja gerado um novo conhecimento, mas são
simplesmente o uso criativo, para o caso específico, de conhecimentos
já existentes. Por exemplo, fazer a tela do cinescópio
plana ou tornar a tela de cristal líquido em matriz ativa.
Assim, são, em geral, patenteáveis mas não
publicáveis.
Desta
forma, podemos conceituar uma descoberta científica ou tecnológica
como um ato acadêmico, realizado no âmbito da universidade,
destinado à capacitação de recursos humanos
qualificados e gerador de novos conhecimentos publicáveis
nos periódicos especializados, como prova de sua originalidade
e valor como um conhecimento.
A inovação,
ao contrário, como acima apresentado, é uma atividade
econômica, executada no ambiente da produção,
e que se destina a dar mais competitividade a uma tecnologia, ou
descoberta tecnológica, de um produto ou processo, ampliando
a sua parcela de mercado e, assim, agregando valor econômico
e lucratividade.
Portanto,
uma tecnologia constitui-se de uma descoberta, o uso de algum conhecimento
recente ou não em uma nova aplicação, robustecida
por centenas ou milhares de inovações utilizando criativamente
conhecimentos existentes. Um mesmo produto tem, em geral, umas poucas
descobertas amplamente conhecidas através de publicações
e centenas ou milhares de inovações, protegidas do
conhecimento e uso por terceiros através de patentes.
Como
exemplo, temos a tela de monitor que, em 70 anos de existência,
teve duas descobertas tecnológicas, válvula termoiônica
e cristal líquido, e milhares de inovações
patenteadas por diversos fabricantes, pois é óbvio
que os atuais modelos no mercado só têm em comum com
os primeiros as descobertas tecnológicas. Outro exemplo é
a propulsão do avião que, em cem anos, só teve
três descobertas: a hélice, o turbo-hélice e
o jato. Mas o número de inovações conta-se
aos milhares.
Note-se
que as inovações podem ser desenvolvidas em descobertas
tecnológicas recentes ou antigas, pelos que realizaram a
descoberta ou por outros produtores. Assim, a Coréia, embora
domine o mercado de monitores, não descobriu nenhuma das
duas tecnologias usadas para telas. O mesmo ocorre com a telefonia
celular, que não é descoberta da Nokia, da Samsung
ou da Motorola, os três principais fabricantes. Assim como
a Embraer não descobriu o avião.
Como
a descoberta tecnológica, em seu estado natural, não
tem viabilidade no mercado sem as inovações, fica
claro que essas é que são o real mecanismo de agregação
de valor econômico, na medida em que transformam uma descoberta
em um produto ou processo capaz de disputar o mercado, pela quase
contínua incorporação de conhecimentos.
Um
aspecto relevante é que uma descoberta tecnológica
pode consumir 10, 20 ou mais anos para alcançar suficiente
robustez para tornar-se uma tecnologia e disputar mercado. E, por
vezes, isso jamais acontece e a descoberta acaba definitivamente
abandonada. O seu risco, portanto, é muito elevado. A inovação,
ao contrário, na medida em que é o atendimento de
uma demanda real do mercado, por ser mais objetiva, é rapidamente
implementada e, por essas razões, tem baixo risco.
Portanto,
mesmo para um país que descobre novas tecnologias, como os
países do primeiro mundo, é indispensável ter
uma eficiente geração de inovações no
setor produtivo, para que alcance uma agregação efetiva
de valor econômico com o uso do conhecimento. E este, entretanto,
nem precisou ser gerado no próprio país, como é
o caso de Taiwan e Coréia. Portanto, para transformar conhecimento
em valor agregado, a geração de inovações
é condição indeclinável. E a descoberta
de novas tecnologias é conveniente, desde que o setor produtivo
seja um gerador de inovações.
A posição
do nosso país está muito aquém do desejável
e até do necessário para alimentar o nosso desenvolvimento
sustentado. Temos realizado, nos últimos 30 anos, o DPD de
modo irregular e, principalmente, ineficiente, para a transformação
de conhecimento em valor econômico, posto que a nossa política
de fomento à pesquisa (ou política de ciência
& tecnologia, na nomenclatura oficial) não contempla
a geração de inovações pelo setor produtivo,
mas apenas as descobertas científicas e tecnológicas,
realizadas no âmbito acadêmico. É o que mostram
a medida da nossa inventividade e de crescimento do PIB.
A medida
internacionalmente usada para avaliar o grau de inovação
é a outorga ou obtenção de patentes de invenção.
Como as patentes têm âmbito local, toma-se o mercado
americano para comparação, por ser o maior mercado
mundial, com 157 mil patentes em 2000. Apenas 12 países geram
95% dessas patentes americanas. Entre esses, só dois emergentes:
Taiwan, o quarto, e Coréia, o oitavo. A nossa posição
é humilhante para a nossa criatividade, o tamanho e a diversidade
da nossa economia e as expectativas da nossa sociedade: tivemos
menos de um milésimo das patentes, em 2000.
Mas
o mais grave é que enquanto crescemos de três em três
patentes, os países acima citados agregam cerca de uma quarta
parte a cada ano, dobrando a cada três anos. São países
que mobilizam a sua criatividade para alcançar a autonomia
tecnológica, assegurar a competitividade, elevar a renda,
distribui-la de forma justa e, assim, construir o próprio
futuro. E inovação tecnológica própria
é o que não temos na medida do necessário.
Veja-se o quadro abaixo.
Patentes
outorgadas nos Estados Unidos
|
1980
|
2000
|
Crescimento
anual médio
|
Estados
Unidos
|
37.354
|
85.072
|
2.331
unidades1
|
Taiwan
|
65
|
4.667
|
22,4%
|
Coréia
|
8
|
3.314
|
26,0%
|
Brasil
|
24
|
98
|
3
unidades1
|
Fonte:
U.S. Patent and Trade Mark Office. (1) Ajuste linear.
A consequência
direta da competência na inovação é que
o país pode disputar o mercado internacional pela via das
exportações. Isso amplia o mercado para os seus produtos
e, assim, propicia condições de um crescimento mais
rápido da economia, isto é, do PIB. Veja-se, no quadro
abaixo, como o nosso desempenho se compara com países que
têm uma intensiva geração de inovações,
uma vez que é no setor produtivo que se executam mais de
70% do DPD total do país.
Crescimento
do PIB e do dispêndio em inovação, taxas
anuais médias (%)
|
PIB1:
1980-1999
|
Dispêndio
em inovação3: 1980-1998
|
Brasil
|
2,9
|
|
Estados
Unidos
|
3,5
|
4,9
|
Taiwan
(1981-2000)2
|
7,0
|
9,6
|
Coréia
|
7,6
|
10,0
|
Fontes:
1) Banco Mundial; 2) página Internet; 3) KITA, 2000.
Temos
o pior desempenho entre os países acima e nem sequer temos
os dados de dispêndio em inovação do nosso país,
estimados em cerca de 0,10 a 0,15 do PIB. O mais grave, porém,
é que a distância entre a nossa economia e a dos EUA
aumentou nos últimos vinte anos. Além disso, fomos
ultrapassados em PIB per capita por Taiwan (US$ 14,4 mil) e pela
Coréia (US$ 13,7 mil), contra apenas US$ 3,5 mil do nosso
país, o 81o do mundo. Em 1981, porém, o PIB per capita
da Coréia era um quarto menor e o de Taiwan só 5%
maior do que o nosso. Ou seja, em cerca de 20 anos, o PIB per capita
de Taiwan cresceu quase quatro vezes mais do que o nosso, e o da
Coréia, cerca de cinco vezes mais.
O nosso mau desempenho em inovações deixou as indústrias
nacionais, que sobreviveram à desnacionalização
dos anos noventa, sem um mínimo de competitividade, condição
essencial ao crescimento da sua produção. Ora, sem
fomento governamental para inovações tecnológicas
e sem tempo e capital para desenvolvê-las com risco próprio,
as empresas foram compelidas a recorrer ao licenciamento de patentes
e de tecnologias do exterior. Isso propiciou um crescimento moderado
de 23% do PIB, de 1992 a 1997, ao custo de se elevarem as patentes
licenciadas em quase cem vezes e os gastos diretos com licenciamentos
externos em mais de nove vezes, no período, como se nota
no quadro abaixo.
Gastos
com licenciamentos externos (US$ milhões)
|
1992
|
1997
|
fator
1997/1992
|
Patentes
|
3
|
289
|
96,3
|
Tecnologia
|
31
|
647
|
20,9
|
serviços
técnicos
|
116
|
468
|
4,0
|
cópias
de software
|
59
|
449
|
7,6
|
Outros
|
10
|
134
|
13,4
|
TOTAL
|
219
|
1987
|
9,1
|
Fonte:
Banco Central
O desafio,
portanto, é gerar no país as inovações
tecnológicas exclusivas que nos faltam para propiciar, à
nossa produção, um alto valor econômico agregado
e uma forte competitividade nos mercados internacionais. Os exemplos
de Taiwan e Coréia, países emergentes que realmente
estão crescendo pela via da inovação própria,
são os exemplos. Outros são China e Índia,
que já seguem a mesma trilha com resultados significativos.
Para vencer esse desafio, precisamos criar políticas públicas
de fomento à inovação própria gerada
no setor produtivo, principalmente para tecnologias já existentes
e comerciais. Mas, para realizá-lo, precisamos, decididamente,
empenhar-nos em mobilizar os produtores, bem como a toda a sociedade.
Roberto
Nicolsky, 63, é professor do Instituto de Física da
UFRJ e coordenador-geral de pesquisa do Laboratório de Aplicação
de Supercondutores.
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