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A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo

Ieda Tucherman

Este artigo é centrado numa hipótese contida neste enunciado que sugere que o estilo que caracteriza a nossa atualidade teria sua inspiração ou sua referência nas narrativas e nos filmes que convencionamos classificar como sendo ficção-científica. Estamos propondo portanto considerar que, no nosso momento atual, estamos inarredavelmente próximos dos temas, das questões, dos personagens e das situações que desde o Frankenstein de Mary Shelley, de 1815, considerado como o primeiro romance de ficção-científica, até os filmes como a trilogia Matrix dos irmãos Wachovski ou as realizações de David Cronenberg, fazem a definição mesma desta expressão: ficção-científica.

Vale lembrar que a ficção-científica nasceu provocada pelas mudanças produzidas pela Revolução Industrial que alteraram não apenas a vida concreta e cotidiana mas também, e de maneira talvez mais insidiosa, o imaginário das sociedades modernas. Sua tarefa foi, portanto, e desde o seu nascimento, pensar e mesmo antecipar as conseqüências sociais, políticas e psicológicas provocadas por este novo desenvolvimento técnico-científico.

No entanto, na sua origem, a ficção-científica apareceu como um gênero menor, uma espécie de subliteratura, dirigida a um público setorizado e muito específico, quase uma seita. Qual seria o motivo desta desconfiança? Arriscamo-nos a pensar que, embora tenha tomado para si o encargo de produzir as narrativas da aventura humana na sociedade científica, ela tinha nesta Modernidade uma presença complexa o que explica sua posição marginal: afinal juntava na sua própria definição uma contradição, uma vez que reunia na mesma expressão duas posturas vividas como opostas: a liberdade da ficção, classicamente associada à não verdade, ao falso, ao não verdadeiro, e o rigor da ciência, o solo celebrado dos enunciados verdadeiros.

Hoje não é mais esse o panorama, e essa transformação é bastante sintomática. Para começar somos cada vez mais freqüentados pelo que podemos chamar de criaturas da técnica que nos chegam dos variados produtos da ficção-contemporânea, literatura, cinema, história em quadrinhos, videoclipes, videogames, mas também, eis aí uma grave diferença, dos nossos mais prestigiados laboratórios, universidades e centros de pesquisa, o que nos permite diagnosticar uma contração da anomalia na nossa vida cotidiana.

Além disto, as narrativas de ficção-científica oferecem aos críticos da cultura outras inspirações, especialmente o questionamento das fronteiras entre a subjetividade, a tecnociência e as possibilidades de experiências espaços-temporais, assim como importantes antecipações, sobre as questões que hoje precisamos enfrentar já que nosso ambiente é efetivamente dominado pela técnica que é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade do nosso presente e o agente da passagem do nosso ontem ao nosso amanhã.

As novas técnicas de informação e de comunicação são mais que instrumentos, próteses, ou extensões dos nossos sentidos. Internet, ciberespaço e realidade virtual são novas maneiras de integração homem-máquina: a máquina é o novo ambiente das nossas experiências. Nesta integração que é um movimento entre seres biológicos e seres maquínicos, corpo e pensamento, matéria viva e inerte, carne e silício, nossas referências tradicionais se vêem fragilizadas e talvez só possamos compreender o que se passa recorrendo às lições de filmes como Blade Runner ou Gattaca.

Afinal de contas, fabricando monstros e espaços abstratos que eram exclusivos da ficção-científica, as ciências que produziram um rato com uma orelha implantada no dorso, um computador que é campeão de xadrez, alimentos transgênicos, a ovelha clonada, inúmeros processos de reprodução in vitro, entre outros, romperam as fronteiras que separavam a realidade da ficção. E, anunciando o resultado de suas pesquisas assim como os objetivos perseguidos, os cientistas parecem mais próximos do delírio que não importa qual dos mais inventivos autores de ficção-científica.

Quando divulgou os primeiros resultados do projeto Genoma Francis Collins, diretor na época do laboratório Cellera, afirmou: “Agora conhecemos a linguagem com que Deus criou a vida”, o que, segundo ele, nos ajudaria a erradicar as doenças e afastar a morte do nosso horizonte. Hans Moravec, pesquisador da área da robótica do prestigiado Carnegie Mellon College nos Estados Unidos, propõe que a nossa descendência verdadeira, já que nossos bebês serão feitos no laboratório, será o download que faremos dos nossos cérebros nos nossos computadores.

Parece interessante selecionar os temas mais freqüentes da ficção-científica para demonstrar sua proximidade com as questões da cultura contemporânea: o fim do mundo e o fim dos tempos; os paradoxos temporais; a comunicação com inteligências demonstrando outras formas de vida totalmente diferentes; as múltiplas desconstruções das diferenças entre natural e artificial, humano e não-humano, vivo e não vivo, real e virtual; as mutações e as reconstruções dos corpos humanos; as transformações do político. Temas que também são presentes nos debates mais sofisticados filosóficos e científicos.

Para a nossa cultura ocidental isso tem uma dramaticidade própria uma vez que aprendemos a pensar em torno de referências opositivas: ou natural ou artificial ou ciência ou arte. Mesmo o mundo moderno, nosso mais próximo passado, foi formulado a partir dessas tipologias de diferenças, de tal maneira que a relação homem-máquina, que é, de longe, o mais freqüente tema da ficção científica e da pós-modernidade cultural, apareceu como uma polaridade: ou a máquina liberaria o homem e o conduziria ao ápice do seu espírito, tal como vemos em alguns textos de Marx, na estética futurista, em algumas obras de Marcuse ou a máquina esmagaria o homem, desumanizando-o, tal como vemos em Tempos modernos de Chales Chaplin, mas também nos escritos de Adorno, Benjamim, Heidegger e outros.

Na verdade o mundo moderno se absteve de pensar as mudanças, as metamorfoses, os hibridismos: estas figuras cuja presença hoje definem nossa atualidade não puderam se fazer ver fora de um gênero menor que, justamente por conta de sua pouca importância, permitiu-se pensar os hibridismos e metamorfoses, os mistérios deste mundo submetido a essa radical e acelerada transformação. A conseqüência mais evidente foi a concessão de um caráter profético à ficção-científica, mais ligado ao medo moderno que o impediu de compreender a tecnociência, que a um suposto processo divinatório que lhe seria próprio.

Concluindo: a ficção-científica é a narrativa da presença da técnica num mundo que J.D.Ballard , autor de Crash, entre outros textos, assim descreve: “O equilíbrio entre ficção e realidade mudou na última década. Seus papéis estão invertidos. Somos dominados pela ficção. O papel do escritor é inventar a realidade”.

Ieda Tucherman é professora do programa de pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.

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Atualizado em 10/10/2004

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