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Resenhas

Pré-História da Terra Brasilis
Organização de Maria Cristina Tenório

Sambaqui: a arqueologia do litoral brasileiro
Madu Gaspar

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Sambaqui: a arqueologia do litoral brasileiro
Madu Gaspar, Jorge Zahar Editor, 2000

Por Germana Barata

Montanhas de conchas e restos de animais, que chegam a ter mais de 30 metros de altura, já suscitaram inúmeras interpretações de arqueólogos no mundo inteiro. Conhecidos como sambaquis, eles estão presentes em vários pontos do litoral brasileiro, incluindo o baixo Amazonas e Xingu, com idades entre 500 e 6.550 anos. Interpretados como um amontoado de conchas, lixo, ambiente de moradia ou cemitério, esses verdadeiros monumentos foram mutilados para abastecer a construção civil, desvalorizados na academia e, poucos, ainda hoje, resistem inabalados pelo tempo e pelos homens Nesta obra, uma das maiores arqueólogas do país, Madu Gaspar - ou Maria Dulce Gaspar - faz uma importante coletânea e análise de informações referentes à história da arqueologia e dos sambaquis brasileiros, que contribui para uma agradável descoberta tanto para aqueles que desconhecem o assunto como para os que já arriscam discorrer sobre o tema.

Os sambaquis, palavra originária da mistura dos termos Tupi, tamba (conchas) e ki (amontoado), são constituídos por inúmeras camadas de conchas de moluscos, ossadas de animais, sepulturas humanas, restos de fogueira e, por vezes, adornos e esculturas, misturados à areia. Geralmente, estão localizados em área próximas ao mar e a braços de mar, rios e florestas, áreas estas que poderiam oferecer abundância, variedade e disposição de recursos para as populações, que organizavam diferentes sambaquis distribuídos em uma mesma área.

Os primeiros estudos, iniciados na segunda metade do século XIX, enfocavam as características físicas dos sambaquis e trouxeram à tona discussões sobre a antigüidade da humanidade e a pré-história brasileira. O conceito de 'raça', hoje rejeitado pela academia, resultou em descrições exaustivas da anatomia do chamado "Homem de Sambaqui".

Serviram como ferramenta para estudos sobre a mudança no nível do mar, no início do século XX, quando Ricardo Krone propõe, de maneira pioneira, que a linha da costa não era estável, mas mudava com o passar do tempo. Sua conclusão baseou-se na observação de sambaquis do Vale do Ribeira, mais afastados do litoral atual. Mas foi apenas na década de 1970 que as pesquisas nesta linha avançaram significativamente.

Com o aparecimento das técnicas de datações radiocarbônicas introduzidas a partir de 1950, a arqueologia brasileira começa a ser modernizada e as inúmeras camadas dos sambaquis passam a ter sua idade revelada de forma mais precisa, indicando que muitos foram habitados durante períodos que ultrapassam mil anos. Fica claro tratar-se de povos sedentários que tinham íntima relação com a região ao seu redor e não nômades que deixavam o local toda vez que os recursos naturais tornava-se escassos, como acreditava-se.

O crescente movimento de proteção aos sítios arqueológicos culmina, onze anos mais tarde, na criação de uma Lei Federal 3.925 que os torna patrimônio da União.

A grande reviravolta nos estudos sobre sambaquis acontece a partir de 1990, quando a unidade mínima dessas sociedades deixa de ser vista como um único sambaqui e passa a ser um conjunto deles. Uma aparente pequena mudança que deu aos sambaqueiros o status de uma sociedade complexa, com relações econômicas e hierárquicas próprias.

Ao longo do livro, Madu Gaspar mostra a dificuldade de construir hipóteses sobre a organização de uma sociedade, quando as provas disponíveis são apenas os elementos preservados pelo tempo. Um dos exemplos mais claros é o fato de ter sido aceito que a enorme quantidade de conchas de moluscos presente nos sambaquis ilustrava o item preferido na dieta da população. Ocorre que as conchas são melhor conservadas que ossos de peixes, que aparecem em número menor, ou que frutos, folhas e pequenos animais, que nem deixavam traços. Existem, porém, objetos e outros sinais que apontam para a familiaridade de uso e consumo desses alimentos.

Artefatos, cujo uso foi atribuído ao processamento de sementes e vegetais, presença de cáries nos dentes de sambaqueiros devido ao consumo de carboidratos - como a mandioca -, esculturas que representam grande diversidade de fauna, inclusive identificando as espécies de peixes, objetos que teriam servido para a pesca, como arpões e anzóis, mostram grande intimidade com o mar e destreza na pesca. É possível que a pesca em ilhas próximas - utilizando algum tipo de embarcação - ou em águas profundas, fizesse parte da busca de alimentos, considerando que ossos de espécies de peixes grandes e tubarões foram identificados nos sítios de sambaquis.

Gaspar mostra que havia articulação entre diferentes sambaquis. Há locais que teriam servido como verdadeiras oficinas de produção de artefatos, além do compartilhamento de recursos evidenciado a partir do mapeamento da área pertencente a cada um. A própria proximidade entre os vários sítios e o fato deles serem monumentos altos (a partir de 2 metros de altura), construídos em áreas planas, leva a crer que essas populações tinham o controle visual umas das outras, permitindo até a comunicação por sinais. Assim, os pesquisadores hoje acreditam que os locais eram ocupados por grupos de, no mínimo, três sambaquis, que são a unidade social básica.

A interação entre os grupos poderia ser esporádica ou rotineira. A ausência de artefatos de guerra indica que não eram belicosos. Isso não quer dizer que na comunidade não houvesse diferenças hierárquicas. Muito embora os sambaquis existentes ao longo da costa brasileira sejam regidos pelas mesmas regras de ocupação e arquitetura, há diferenças no tamanho e na composição de sambaquis de uma mesma área, o que pode significar o prestígio de alguns grupos, além de indicar um número maior de habitantes nos sambaquis grandes. Madu Gaspar informa, por exemplo, que, em alguns sambaquis, estima-se a presença de uma média de 180 indivíduos vivendo simultaneamente. Há também a presença de adornos, amuletos, esculturas e objetos em algumas das sepulturas, mostrando que os indivíduos recebiam tratamento diferenciado.

É provável que os sambaqueiros estivessem dispostos a estabelecer interações sociais com grupos culturais distintos que co-habitavam a região, pouco antes do Brasil ser descoberto pelos portugueses, o que pode ter sido o motivo de seu desaparecimento. Os arqueólogos registraram vestígios de grupos ceramistas - a presença de cacos nas camadas mais recentes dos sambaquis - que podem ter guerreado com ou absorvido os sambaqueiros.

A obra de Madu Gaspar nos revela uma cultura fascinante, cujas pesquisas ainda são incipientes para saciar a sede de inúmeras perguntas que faltam ser respondidas e para que possamos melhor compreender as relações, organizações e mudanças sociais dos sambaqueiros.

Atualizado em 10/09/03

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