Os alemães no Brasil: uma síntese.

   
 
Poema
Seminário discute movimentos migratórios
Giralda Seyferth:
imigração no Brasil
Lená Medeiros:
perspectiva histórica
Memorial do Imigrante
Fábio Bertonha: Migrações internacionais e política
Antônio A. Arantes: paisagens paulistanas
Marcílio Sant'ana: circulação de trabalhadores no Mercosul
Rosana Baeninger: Brasil e América Latina
Brasiguaios
Africanos no Brasil
Carlos Vogt & Peter Fry: Cafundó
Ana Paula Poll: novas facetas de uma migração recente
O novo império português
Conexão Brasil-EUA
Americanos no Brasil
Valéria Scudeler: valadarenses nos EUA
Giralda Seyferth: alemães no Brasil
Migração japonesa e o fenômeno dekassegui
Os judeus sefaradi
Ulisses Capozoli: migrações pelo oceano cósmico
 

Giralda Seyferth

Os primeiros imigrantes alemães chegaram ao Brasil antes da independência, no contexto da abertura dos portos, constituindo um grupo de comerciantes com atividades de importação/exportação estabelecido no Rio de Janeiro e organizado socialmente através da Gesellschaft Germania, uma associação de natureza étnica fundada em 1821. Alguns alemães também integraram os três primeiros projetos de colonização autorizados pelo governo português na Bahia, dos quais apenas a colônia Leopoldina, fundada pelo naturalista Freyreiss em 1818, costuma figurar na historiografia da imigração. No entanto, o fracasso dessas iniciativas e a pouca expressividade estatística - pouco mais de 200 imigrantes registrados antes de 1822 (Fouquet, 1974) - fizeram da fundação de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, em 1824, o marco inaugural da imigração alemã, desde então estreitamente associada ao povoamento e colonização da região sul.

Entre 1824 e 1830 os registros, bastante díspares, indicam a entrada de menos de sete mil alemães destinados às áreas coloniais abertas no sul (uma delas na província de São Paulo) pelo governo imperial e aos batalhões de estrangeiros agregados ao exército brasileiro, criados para lutar contra os portugueses (nas províncias do norte) e na guerra cisplatina.

À exceção dos comerciantes estabelecidos no Rio de Janeiro, não houve imigração espontânea de alemães pois o governo imperial, interessado em promover o povoamento e colonização, sobretudo na região sul, subsidiou os colonos e pagou a agenciadores para trazê-los ao país. A imigração foi interrompida em 1830, com a promulgação de uma lei proibindo despesas com a colonização estrangeira, sendo retomada quase quinze anos depois com a fundação de colônias alemãs no sul, no Rio de Janeiro (Petrópolis) e nas terras altas do Espírito Santo. A ação dos agenciadores a serviço do governo imperial, a promulgação da Lei de Terras (Lei 601) em 1850, dando acesso à propriedade de terras públicas para estrangeiros e abrindo espaço para a formação de empresas particulares de colonização, bem como os subsídios (sobretudo na forma de passagens de 2ª e 3ª classes), aumentaram o fluxo imigratório alemão na segunda metade do século XIX. Não obstante sua importância no contexto de colonização, no cômputo das entradas a imigração alemã não atingiu a expressividade numérica dos italianos, portugueses e espanhóis. Carneiro (1950) assinalou a entrada de 235.846 imigrantes alemães no período de 1819 a 1947; Willems (1946) preferiu fazer um cálculo baseado em critério linguístico, estimando que entre 1886 e 1936 o Brasil recebeu cerca de 280 mil "imigrantes de língua alemã". Àparte as discrepâncias estatísticas, houve certa constância do fluxo alemão desde 1824 até a década de 1930, ocorrendo dois períodos numericamente mais significativos (e que concentraram mais de um terço das entradas) - antes da 1ª Guerra Mundial e nos primeiros anos da década de 1920, no auge da crise da República de Weimar.

Essa concentração aponta para motivações de natureza econômica impulsionando a emigração para o Brasil desde 1824, mas não devem ser subestimadas as razões políticas que motivaram as saídas de revolucionários de 1848 ou de minorias teutas do leste europeu, por exemplo, bem como a eficácia da propaganda e dos subsídios prometidos pelos agentes do governo brasileiro e da companhia de colonização.

À parte os indicadores estatísticos, que deixam a imigração alemã bem atrás das principais correntes, deve-se assinalar sua importância e continuidade no processo de povoamento e colonização de uma parte do território nacional. Quase duas centenas de "colônias alemães" surgiram nos três estados do sul na segunda metade do século XIX, concentradas em algumas regiões como os vales dos rios Sinos, Jacuí, Taquari e Caí, e no Alto Uruguai (Rio Grande do sul); o vale do Itajaí e a região noroeste de Santa Catarina (cujos centros mais importantes são Blumenau e Joinville); a região de Ponta Grossa e municípios próximos, no Paraná; descendentes e novos imigrantes prosseguiram nesse processo de ocupação, juntamente com outros imigrantes, nas primeiras décadas do século XX - estabelecendo novas frentes pioneiras no planalto catarinense e paranaense. Além disso, colônias com preponderância de alemães surgiram no Espírito Santo (década de 1870) e, incipientemente, em alguns pontos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Eles tiveram papel importante num projeto colonizador com motivações geopolíticas, idealizado e, em parte, implementado pelo governo brasileiro, embora a imigração não estivesse restrita ao meio rural, e boa parte das colônias surgissem da iniciativa de companhias particulares com apoio dos governos provinciais.

Os alemães tiveram primazia na formação de uma estrutura agrária baseada na pequena propriedade familiar, cujo tamanho, no auge do povoamento através de linhas coloniais demarcadas em terras devolutas, chegou à média de 25 hectares. Juntamente com outros grupos de imigrantes, principalmente italianos e poloneses, formaram um campesinato cuja característica mais marcante foi produzida pela fixação (obrigatória) no lote colonial - sua unidade econômica básica.

O desenvolvimento posterior à fase pioneira e a diferenciação interna, bem como a migração para centros urbanos maiores, inclusive a cidade de São Paulo, além da emancipação de algumas colônias ainda no período imperial, deixaram visíveis as diferenças culturais produzidas pelo processo imigratório, num momento em que aumentava o fluxo imigratório no início da República e recrudesciam os discursos sobre assimilação dos estrangeiros, no rastro das preocupações nacionalistas com a possível formação de "minorias nacionais". A maior notoriedade da imigração alemã, portanto, tem a ver, por um lado, com a concentração espacial em áreas coloniais e urbanas (formação de bairros etnicamente configurados) e suas especificidades culturais - incluindo o uso cotidiano da língua alemã que persistia ainda na década de 1940 - e, por outro lado, com a formalização de um discurso étnico fundamentado na noção de germanidade ou germanismo (Deutschtum) e veiculado nas instituições comunitárias (escolas, associações recreativas e culturais, igrejas) e na imprensa e literatura publicadas em língua alemã. O surgimento de uma etnicidade teuto-brasileira foi concomitante com a emancipação das colônias (transformadas em município) e com os interesses mais diretos de uma elite e de uma classe média urbana e rural nos direitos de cidadania, aí compreendida a participação política.

A formulação da etnicidade teuto-brasileira tomou como referência alguns pressupostos de unidade étnica tomados do discurso nacionalista alemão e o processo histórico de colonização. A realidade histórica da colonização é apresentada no discurso étnico como um processo pioneiro e civilizatório - a construção de uma pátria no Brasil. Tal pressuposto estava inspirado nas diferenças sócio-culturais implícitas na idéia de colônia enquanto unidade étnicamente configurada por uma língua materna, instituições e habitus alemães - comunidade étnica em oposição aos princípios de brasilidade que exigiam a incorporação nos cânones da formação nacional. A categoria de identificação - teuto-brasileiro - afirma uma condição de pertencimento à nação alemã e a cidadania brasileira como coisas compatíveis. O nacionalismo brasileiro, porém, considerou a idéia de Deutschtum - que demarcou a etnicidade a partir da crença na origem (racial) comum, numa cultura compartilhada e no jus sanguinis - espúria e perigosa, ameaça à unidade brasileira. Para imigrantes e descendentes a noção de Deutschtum parecia compatível com a cidadania porque pensavam o Brasil como um Estado etnicamente plural e não como Nação. Essa pretensão pluralista alimentou as especulações sobre um possível separatismo - o "perigo alemão" evidenciado na dupla identidade que, para os brasileiros, atrasava o desejável processo de assimilação ou abrasileiramento (Seyferth, 1982). A propaganda pangermanista no início do século XX, com sua inspiração racista, e a marcante presença nazista denunciada no Estado Novo, ajudaram a produzir situações de conflito que marcaram a vida cotidiana dos alemães e seus descendentes até o fim da década de 1940.

Instituida em nome da unidade nacional, a campanha de nacionalização do Estado Novo, iniciada em 1937 com a pretensão de forçar a assimilação dos alienígenas (termo indicativo de ausência de abrasileiramento), produziu a maior crise enfrentada por alemães e descendentes: houve intervenção nas escolas e outras instituições comunitárias, o uso da língua materna foi proibido em público e os militares procuraram impor civismo através do elogio ao caldeamento étnico/racial. Tal experiência nacionalizadora teve efeitos definitivos, entre eles o desaparecimento da imprensa e das escolas étnicas e de algumas instituições culturais; mas não anulou alguns princípios da etnicidade teuto-brasileira, especialmente aqueles vinculados à origem comum, ao habitus e ao processo histórico de colonização (sob a chancela do pioneirismo) que, simbolicamente, compõem as marcas distintivas de uma identidade étnica persistentemente reconstruída.

Giralda Seyferth é pesquisadora do departamento de Antropologia do Museu Nacional - UFRJ

Referências:

CARNEIRO, J.F. 1950. Imigração e colonização no Brasil. Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Filosofia, Cadeira de Geografia do Brasil, Publicação Avulsa, 2.

FOUQUET, C. 1974. O imigrante alemão e seus descendentes no Brasil: 1808-1824-1974. São Paulo, Instituto Hans Staden; São Leopoldo, Federação dos Centros Culturais 25 de Julho.

SEYFERTH, G. 1982. Nacionalismo e Identidade Étnica. Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura.

WILLEMS, E. 1946. A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional.

   
           
     

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Atualizado em 10/12/2000

   
     

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