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Estudos sobre o comportamento de abuso de drogas por humanos mostram que a dependência do álcool e de substâncias psicoativas é influenciada por fatores biológicos e ambientais. A pesquisa atual evidencia claramente que a dependência de álcool, do tabagismo e de drogas como a maconha e cocaína sofre influências familiares.

Uma pesquisa sobre a transmissão familiar do comportamento de abuso de drogas psicoativas, o Estudo Colaborativo da Genética do Alcoolismo, foi realizada recentemente na Universidade de Washington com 1212 dependentes químicos e seus filhos. Os dados mostraram que uma grande parcela dos filhos de pais alcoolistas, principalmente do sexo masculino (aproximadamente 50% dos irmãos e 25% das irmãs) eram dependentes de álcool. Em relação à maconha, cocaína e hábito de fumar, observou-se que filhos de dependentes apresentavam um elevado risco de dependência.

Embora inegável, a influência genética no desenvolvimento da dependência de drogas de abuso é apenas parcial. A dependência de drogas é um comportamento complexo, que reflete a interação de vários genes e de variáveis psicológicas, sociais e demográficas. Nesta última década, a ciência tem investido esforços significativos na busca da identificação dos genes que predispõem o indivíduo para o uso abusivo de drogas. Entretanto, a base genética da dependência química está ainda longe de ser um fato estabelecido.

Alguns genes associados ao uso abusivo e à dependência de drogas psicoativas já foram identificados. Estudos genéticos revelam uma forte associação destes genes com o mecanismo de gratificação cerebral, ou circuito cerebral de recompensa, a via do sistema nervoso central responsável pela sensação de prazer, que reforça os comportamentos prazerosos, e inclusive o desejo de consumir drogas.

O circuito de recompensa, como outros mecanismos cerebrais, funciona através de neurotransmissores. Estes são mensageiros químicos que promovem a comunicação entre as células nervosas, os neurônios. A dopamina é o principal neurotransmissor que ativa o sistema de gratificação cerebral. A comunicação entre os neurônios se dá através da liberação de um neurotransmissor por um neurônio e captação por outro neurônio vizinho, através de um receptor específico. Então, a interferência nos mecanismos de liberação e captação da dopamina pelos neurônios resulta em efeitos no sistema de recompensa.

Genes que afetam a síntese, liberação, transporte e captação da dopamina, freqüentemente estão implicados no desenvolvimento de comportamentos de uso abusivo e dependência de drogas. Assim, drogas de abuso de diferentes naturezas químicas atuam no sistema nervoso central através de diferentes mecanismos que afetam o sistema cerebral de gratificação, mimetizando a ação da dopamina, produzindo efeitos de estimulação, euforia ou tranqüilização. No caso do tabagismo, alterações genéticas mapeadas no metabolismo da nicotina ou nos seus receptores em neurônios do circuito de recompensa seriam os principais candidatos a promotores do hábito de fumar.

Recentemente, foi descoberto um outro gene candidato à predisposição ao alcoolismo. Trata-se do gene codificador do neuropeptídeo Y, um ansiolítico fisiológico natural e modulador neuronal da fome. Sua associação com o alcoolismo foi descoberta primeiramente em ratos, de uma linhagem com um comportamento preferencial pelo álcool em vez de água. O traço de preferência para o álcool nesses animais foi localizado no cromossoma 4, na mesma região correspondente ao neuropeptídeo Y. Recentemente, este neuropeptídeo foi caracterizado como um fator potencial para o desenvolvimento do alcoolismo em humanos. Estudos populacionais revelaram a presença de uma forma variante do neuropeptídeo Y (contendo uma substituição de leucina por prolina) em uma amostra da população americana dependente de álcool.

Outra questão que há muito tempo vem despertando o interesse mundial é a tentativa de identificação de traços de personalidade associados com uma predisposição ao alcoolismo e uso abusivo de drogas. Embora especialistas afirmem não existir um tipo de personalidade tipicamente alcoolista, estudos longitudinais mostram que a hiperatividade e o comportamento anti-social são freqüentemente associados com o desenvolvimento tardio de alcoolismo. O perfil mais vulnerável à dependência é representado pelos indivíduos hiperativos e por aqueles que apresentam um traço de personalidade caracterizado por uma constante busca de novidades. Tais indivíduos são geneticamente ligados, apresentando alterações em um mesmo gene, o do receptor D4 da dopamina nos neurônios.

A hiperatividade é uma atitude típica dos indivíduos portadores do distúrbio do déficit de atenção com hiperatividade, transtorno antes conhecido como síndrome hipercinética. O transtorno tem componentes neurológicos e comportamentais e atinge 5 a 10% das crianças em idade escolar. As crianças afetadas apresentam sintomas típicos de desatenção, hiperatividade e impulsividade. Mostram dificuldade de prestar atenção em jogos e brincadeiras, são descuidadas com suas coisas e atividades escolares, são inquietas e impulsivas. Crianças portadoras do distúrbio de déficit de atenção com hiperatividade são candidatos naturais a desenvolver dependência de substâncias psicoativas na adolescência e idade adulta.

Até pouco tempo atrás se pensava que as atitudes características do distúrbio de déficit de atenção com hiperatividade eram apenas problemas comportamentais infantis, cuja tendência seria desaparecer na idade adulta. Entretanto, sabe-se hoje que o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade pode persistir na idade adulta em 30 a 50 % dos casos e tem componentes genéticos. Adultos com o distúrbio são geralmente distraídos, desorganizados, agitados, emocionalmente instáveis, impulsivos, às vezes explosivos, e geralmente intolerantes ao estresse. Estudos de genética molecular indicam que a susceptibilidade à doença está relacionada com um desequilíbrio em nível de neurotransmissores, em particular com os genes receptores da dopamina D4 e D2 e com o gene transportador da dopamina.

Muito se tem a pesquisar ainda para se definir os marcadores genéticos da dependência de substâncias psicoativas, mas as perspectivas são promissoras. Um estudo de grande abrangência e relevância está atualmente em andamento em clínicas de cinco países, incluindo o Brasil: Montreal, no Canadá; Helsinki, na Finlândia; Saporo, no Japão; Sidney, na Austrália e São Paulo, no Brasil. A pesquisa é apoiada pela World Health Organization (WHO) e a Sociedade Internacional de Pesquisa Biomédica do Alcoolismo nos Estados Unidos. Sua importância se fundamenta na amostragem ampla de indivíduos (1863 dependentes de álcool), de diferentes países e culturas. Além disso, a abordagem metodológica contempla a realização não só de entrevistas, mas também de análises bioquímicas, inclusive análises de DNA, visando identificar os marcadores genéticos bem como os fenótipos fisiológicos e psicológicos que determinam a predisposição ao alcoolismo.

Os primeiros resultados deste projeto foram publicados recentemente, e dizem respeito às variáveis demográficas e hábitos dos grupos populacionais objetos do estudo. Observou-se que o fator que mais contribuía para o diagnóstico da dependência era a ansiedade manifestada pelo indivíduo ao parar de beber. Muitos dos dados reportados confirmam estudos esparsos anteriores. Algumas conclusões sobre o consumo de álcool pela população estudada foram: 1) homens consomem mais álcool que mulheres; 2) asiáticos consomem menos álcool que brancos e negros; 3) o consumo de álcool aumenta com a idade e com o aumento do nível educacional; 4) pessoas com personalidades anti-sociais consomem maior quantidade de álcool que pessoas normais. As publicações posteriores deste estudo certamente trarão informações novas e esclarecedoras sobre os marcadores genéticos e outras variáveis determinantes da predisposição ao alcoolismo e à dependência química.

A perspectiva e esperança hoje são de que num futuro próximo, com a disponibilidade de técnicas avançadas da Biologia Molecular e os novos conhecimentos do genoma humano, possamos conhecer os genes que governam o mecanismo cerebral de recompensa e os comportamentos de abuso e dependência de substâncias psico-ativas. Isso tornará possível o desenvolvimento de inovações tecnológicas que possibilitem a identificação precoce da tendência à dependência química, tais como kits para análise de marcadores genéticos da predisposição à dependência de drogas de abuso. A identificação precoce de indivíduos geneticamente mais vulneráveis e predispostos à dependência de drogas possibilitará um melhor preparo dos pais, familiares, professores e orientadores para lidar com a situação, e escolher as estratégias mais seguras, adequadas e eficazes em relação ao uso de drogas lícitas e ilícitas pelos adolescentes e adultos dessa população de risco.

Maria Edwiges Hoffmann, é Doutora em Bioquímica pela USP e docente do Departamento de Bioquímica do Instituto de Biologia da UNICAMP há mais de 25 anos. É também divulgadora de ciências.

Leitura adicional
Bierut, L. J. et al. (1998). Familial transmission of substance dependence: alcohol, marijuana, cocaine, and habitual smoking: a report from the Collaborative Study on the Genetics of Alcoholism. Arch. Gen. Psychiatry, 55: 982-988.
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Glanz, J. et al. (2002). WHO/IBRA Study on state trait markers of alcohol use and dependence: Analysis of demographic, behavioral, physiologic, and drinking variables that contribute to dependence and seeking treatment. Alcohol Clin. Exp. Res. 26: 1047-1061.
Longenecker, G. L. (1998). Como agem as drogas. Editora Quark do Brasil.
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Psicosite (www.psicosite.com.br/tra/int/tdah.htm). Transtornos do deficit de atenção com hiperatividade, disponível em 11/09/2002.
Rossing, M. A. (1998). Genetic influences on smoking: candidate genes. Environ. Health Perspect. 106: 231-238.

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Atualizado em 26/09/2002

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