Por Artur Araújo
Um país como o Brasil, com moeda soberana bastante estável há décadas, com mercado interno de grandes proporções, com razoável diversificação de parque produtivo, com abundância de insumos básicos, com fortes vantagens demográficas, territoriais e climáticas – e que só não transforma esses vetores em desenvolvimento com acelerada redução de desigualdades e clara orientação de sustentabilidade por força de travas ideológicas austericidas autoimpostas – é um país que tem que ser um dos líderes do novo arranjo do capitalismo que se esboça. Porque pode ser e porque precisa ser.
Foi necessária uma pandemia altamente contaminante e letal para provocar alterações qualitativas de orientações macroeconômicas e políticas que nem a Grande Recessão de 2009 tivera poder de provocar. Refiro-me não apenas ao Plano Biden – ou Planos, porque são várias iniciativas em distintos estados de formulação e implantação – mas também a mudanças, de ideias e de práticas, como as em curso na Itália, no Reino Unido, na União Europeia e em organismos internacionais como FMI e Banco Mundial.
Se o colapso mundial iniciado em 2008 gerou uma forte intervenção estatal para suprimento de liquidez, socorro a instituições financeiras e, até, de suporte direto a grandes conglomerados privados, seguidos por um rápido retorno ao cânone liberal, o coronavírus traz em sua esteira a revisão de grande parte do conjunto dos princípios e normas que são fundamentos do neoliberalismo e que, ao que tudo indica, são revisões a vigorar por longo tempo.
O primeiro elemento a ser destacado é a nítida percepção de que o Estado é elemento decisivo, para intervenção direta em todas as esferas da vida social e para coordenação de ações em quadros complexos como o de uma pandemia. Não há mercado que dê conta dos desafios colocados por fenômenos de forte alcance coletivo, porque a anarquia característica da competição entre infinitos pequenos interesses privados impede qualquer resultante convergente e acelerada, que enfrente eficazmente os múltiplos problemas que afloram simultaneamente.
O “Estado mínimo”, se tivesse continuado a operar, teria levado a mortandade em escala muito superior à dos já horrendos mais de 3 milhões de humanos. O Estado revelou-se imprescindível e, ainda mais importante, revelou-se que tem que ter porte e instrumental que lhe permitam agir decisivamente.
Em segundo lugar, cai por terra uma elaborada mitologia sobre finanças estatais. Subitamente, bobagens interesseiras como a da equiparação de governos emissores de moeda soberana a famílias e empresas usuárias dessa moeda revelam-se a falácia que sempre foram e os trilhões de dólares corretamente emitidos, mundo afora, para deter um colapso generalizado não provocam nenhum dos efeitos apocalípticos com que a ortodoxia liberal nos ameaçava.
Uma terceira revelação é também impactante: em paradas súbitas de demanda e produção, políticas estatais de socorro e suporte são a única possibilidade de evitar-se o caos e são os serviços públicos – quanto mais universais e gratuitos, melhor – a coluna vertebral de atendimento das populações de todas as faixas de renda e riqueza.
A partir dessas constatações, que se generalizam e ganham status de “nova verdade revelada” (ainda que fossem conhecidas e propagadas há décadas por todos os críticos do liberalismo), afirma-se também a percepção de que tal alteração de normas e princípios é essencial para as tarefas do pós-pandemia.
Generaliza-se, adicionalmente, a convicção de que as mudanças são vitais para deter a tempo processos deletérios como os da hiperdualização disruptiva das sociedades; da acelerada crise ambiental e climática; e da hiperfinanceirização, que leva à redução acelerada do intervalo entre uma crise de reprodução ampliada e de realização dos capitais e a crise seguinte, que sempre está no horizonte imediato.
A política econômica de endividamento em “moeda estrangeira” (euros que a Itália não emite) do ex-falcão austericida Mario Draghi para recolocar o país nos trilhos; os planos de reindustrialização franco-alemã; as loas ao NHS e a criação de instrumentos de intervenção econômica estatal em P&D e de planejamento da produção no Reino Unido; o Plano Biden e sua versão Bruxelas: abundam demonstrações de que vários pilares do liberalismo, da reaganomics, da TINA e do Consenso de Washington foram brutalmente abalados e tendem a ser substituídos por algo que se assemelha a um novo regime de acumulação no capitalismo global, ainda que preservadas a livre circulação de capitais, a dominância relativa e em queda do dólar dos EUA e o primado das finanças como fração hegemônica.
Emissão monetária; endividamento em moeda própria, tributação progressiva; forte taxação de grandes rendas, patrimônios e heranças; investimentos estatais; recuperação dos serviços públicos universais; programas de renda; políticas industriais; Estado planejador e interventor. É longa e positiva a lista dos assuntos que foram retirados do index prohibitorum vigente desde a década de 1980. Valores de gastos estatais expressos em bilhões de dólares passam a ser normalidades no noticiário.
Nossa convivência de décadas com o Complexo de Vira-Lata que marca as “elites” brasileiras diria que essa virada teórica e empírica nos países centrais levaria a uma acelerada revisão do ultraliberalismo que domina o país.
Só que não.
As fórmulas empregadas pelo liberalismo tabajara, para tentar impedir que as novas ondas cheguem a nossas paradisíacas praias, vão do patético à mentira aberta. Subitamente, o Postulado de Juracy – o que é bom para os EUA é bom para o Brasil – é revogado e pululam “explicações” de por que, assim de repente, “Brasil não é Estados Unidos”.
É evidente que a dimensão da economia estadunidense, seu poderio militar e geopolítico, seu grau de interação nas cadeias produtivas e nos circuitos financeiros globais são muito distintos daqueles que nos caracterizam. Mas, no que importa para o aqui e agora e mesmo a médio prazo, são muito mais distinções de escala do que de conteúdo.
Um país com moeda soberana bastante estável há décadas, com mercado interno de grandes proporções, com razoável diversificação de parque produtivo, com abundância de insumos básicos, com fortes vantagens demográficas, territoriais e climáticas – e que só não transforma esses vetores em desenvolvimento com acelerada redução de desigualdades e clara orientação de sustentabilidade por força de travas ideológicas austericidas autoimpostas – é um país que tem que ser um dos líderes do novo arranjo do capitalismo que se esboça. Porque pode ser e porque precisa ser.
Há uma dupla carapaça que envolve os farialimers em suas diversas versões – a da rapaziada dos bancos, fintechs e corretoras; a do “jornalismo” econômico dos veículos de comunicação grandes; a dos industriais embaladores; a dos varejistas do contrabando e da sonegação; a dos burocratas de porta-giratória; a dos acadêmicos a soldo – bloqueando até mesmo o debate inteligente sobre alternativas ao que eles têm imposto ao país, com resultados de pífios a desastrosos.
A primeira casca, evidentemente, é a da obscena taxa de retorno que vêm obtendo desde o golpe parlamentar de 2016, principalmente graças à celerada e acelerada desregulamentação, desproteção, perda de direitos, perda de poder reivindicatório e queda estrutural do preço da força de trabalho que atingem os trabalhadores. Lucram com a miséria de multidões e preferem acumular capital via exacerbação de sua fatia na repartição do excedente a buscar ganhos de escala em um mercado de massas que viesse a ter forte demanda efetiva. O curtoprazismo e uma postura predatória são marcantes. Se tudo capotar, se o país for se tornando uma entidade incoerente, disfuncional e sujeita a coerção crescente, Miami aí vamos nós.
Há, no entanto, uma casca subjacente que beira a patologia social. É a notória demofobia, que marca desde os representantes diretos do grande capital até parcelas significativas das camadas médias tradicionais (e mesmo boa parte da pretensa “nova classe média” cantada em prosa e verso até 2015), passando pelos aparatos de Estado via as “elites do funcionalismo”, com ênfase no Judiciário, no Ministério Público e em determinadas carreiras do executivo, no topo da escala de remuneração e poder fático.
Esse combo de frações de classes e corporações tem um horror atávico à presença do povo em “seus” espaços, das boas escolas aos bons hotéis e aos bons empregos. Para eles , a “distinção” tem valor de uso, a posição relativa importa tanto quanto – por vezes, mais do que – o ganho material absoluto que auferem. Apesar da reiterada profissão de fé vira-lata, da admiração basbaque pelo american way of life e pelas quinquilharias da Flórida, nunca foram capazes de perceber uma das principais razões para os EUA serem o que são: a mais aberta massificação do consumo interno e do acesso à propriedade imobiliária, a potencialidade da acumulação de capital e de obtenção de alta renda para os estratos superiores dos assalariados pela via dos gastos da multidão.
São essas duas carapaças que abrigam e propagam a segunda epidemia que assola o Brasil, a da recusa reiterada e daninha a examinar o que se passa no mundo e a propor uma versão brasileira da reorientação macroeconômica, política e social em curso.
É a epidemia do isolamento paroquial, aldeão, causada pelo vírus do viralatismo reverso, que provoca negação teimosa das mudanças corretas, necessárias e aceleradas por que passa o mundo em pandemia e pós-pandêmico.
O Brasil, como muito já se disse, não é um país para principiantes ou amadores: temos muita capacidade de criar inusitados, até um certo orgulho de nossas jabuticabas. No entanto, a súbita reversão do viralatismo, o rompimento do alinhamento automático à matriz – que eram demandas vitais e progressistas no passado até recentíssimo – agora é má novidade.
Ironia das ironias: fecho o texto afirmando que é hora de combatermos sem tréguas o vírus tabajara do viralatismo reverso e de aplicarmos no Brasil os novos protocolos terapêuticos adotados pela maioria das nações, em particular Itália, Austrália, França, Coréia do Sul, Alemanha, Japão, Reino Unido, EUA.
É bom para eles, para seus trabalhadores, e será bom para nós brasileiros.
Artur Araújo é especialista em gestão pública e privada e consultor da Fundação Perseu Abramo e da Federação Nacional dos Engenheiros.