A violência é chocante, aprisiona a atenção do respeitável público e dá audiência. Como um sinal da onda anticivilizatória que nos assola, são casos e mais casos por semana, ferindo sensibilidades e rendendo enxurradas de posts indignados no Facebook – tudo isso sem contabilizar as desgraças nas periferias das cidades e do mundo, para as quais, sejamos francos, a maioria não dá a mínima. Violência – Seis reflexões laterais (editora Boitempo) tenta chamar a atenção para dois tipos de violência além da subjetiva, a que faz a festa dos programas policiais de TV. Elas estão convenientemente invisíveis e são: (1) a simbólica, da linguagem enquanto tal – “a imposição de um certo universo de sentido” e (2) a sistêmica – as consequências catastróficas do “funcionamento normal” dos sistemas econômico e político.
O autor das 195 páginas de Violência é um intelectual esloveno acusado de ser pop demais e de forçar a mão nas provocações, um teórico político e crítico da cultura que fustiga direita, esquerda (se a liberdade burguesa é “meramente formal”, porque o stalinismo a receava tanto?) e, com ainda mais gosto, o pós-modernismo. Slavoj Žižek, nascido em 1949, é filósofo marxista e psicanalista lacaniano que adora misturar Hegel com aquele filme disponível na Netflix que você ainda não viu, ou viu e não deu bola (pode ser filme ruim, mas os comentários são quase sempre viagens interessantíssimas). Em poucos parágrafos, é capaz de citar Freud, Lacan, Deleuze, o poeta Yeats, os diretores de cinema Andrei Tarkovski e Ingmar Bergman, o escritor Gore Vidal e o quadrinista Neil Gaiman, autor da graphic novel Sandman – se você duvida, favor checar as páginas 56 e 57[1].
Ganha tempo para uma melhor compreensão do livro quem começar pelo epílogo (que serve como guia), voltar para a introdução, voltar mais um pouco ainda, para o prefácio à edição brasileira (em que Žižek rebate críticas) e só então, assim com um estratégico e prudente aquecimento prévio, partir para os seis capítulos. Nos seis ensaios com títulos de andamentos musicais (“andante ma non tropo”, “allegro moderato”, “adagio ma non tropo e molto expressivo” e assim por diante), Žižek aborda a revolta na periferia de Paris em 2005 – um motim sem significado nem reivindicação, uma explosão de ira cuja mensagem seria apenas um “olá, está me ouvindo?”, uma passagem ao ato lacaniana em que a violência é uma confissão implícita de impotência. Aborda, ainda, o ressentimento como motor do terrorismo islâmico – ressentimento só agravado pela benevolência e condescendência dos liberais de esquerda. E analisa o caos em Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina. Também retoma temas clássicos como o Holocausto, o conflito entre Israel e Palestina, e outros inusitados, como a “Masturbatona” de São Francisco. Por seu olhar temos contato com aspectos reveladores de A vila, do diretor M. Night Shyamalan, de Filhos da esperança, de Alfonso Cuarón, e até de diálogos ruins da série Nip/Tuck.
Violência sistêmica, ou a indiferença do capital
Mas, dizíamos, o ponto central do livro é a cegueira diante da violência sistêmica e da linguagem. “Quando chamamos a atenção para os milhões de pessoas que morreram por causa da globalização capitalista […] a responsabilidade tende a ser em larga medida negada”, escreve Žižek. As centenas de milhares de mortes no Congo Belga, por exemplo, aconteceram como resultado de um processo que “ninguém planejou nem executou e para o qual não houve um ‘Manifesto Capitalista’”. Convém aqui reproduzir três passagens maiores, fundamentais:
“É aí que reside a violência sistêmica fundamental do capitalismo, muito mais estranhamente inquietante do que qualquer forma pré-capitalista direta de violência social e ideológica: essa violência não pode ser atribuída a indivíduos concretos e às suas ‘más’ intenções, mas é puramente ‘objetiva’, sistêmica, anônima. Encontramos aqui a diferença lacaniana entre a realidade e o Real: a ‘realidade’ é a realidade social dos indivíduos efetivos implicados em interações e nos processos produtivos, enquanto o Real é a inexorável e ‘abstrata’ lógica espectral do capital que determina o que se passa na realidade social. Podemos experimentar tangivelmente o fosso entre uma e outro quando visitamos um país visivelmente caótico. Vemos uma enorme degradação ecológica e muita miséria humana. Entretanto, o relatório econômico que depois lemos nos informa que a situação econômica do país é ‘financeiramente sólida’: a realidade não conta, o que conta é a situação do capital…” [p. 26]
“É talvez aqui que podemos situar um dos principais perigos do capitalismo: embora seja global, embora abranja o mundo todo, mantém uma constelação ideológica stricto sensu ‘destituída de mundo’, negando à grande maioria das pessoas qualquer cartografia cognitiva dotada de significado. O capitalismo é a primeira ordem social e econômica que destotaliza o sentido: não é global ao nível do sentido (não há ‘ visão de mundo capitalista’ global nem ‘civilização capitalista’ propriamente dita: a lição fundamental da globalização é precisamente que o capitalismo pode se adaptar a todas as civilizações, da cristã à hindu ou à budista, do Ocidente ao Oriente), e sua dimensão global só pode ser formulada ao nível da verdade-sem-significado, como o ‘Real’ do mecanismo do mercado global.” [p. 73, grifos do autor]
“O capitalismo, cuja ideologia é o liberalismo, é universal, e não mais enraizado em uma cultura ou ‘mundo’ particulares. Foi por isso que [Alain] Badiou afirmou recentemente que o nosso tempo é privado [ou destituído] de mundo: a universalidade do capitalismo reside no fato de o capitalismo não ser o nome de uma ‘civilização’, de mundo simbólico-cultural específico, mas o nome da máquina simbólico-econômica verdadeiramente neutra que tanto opera com valores asiáticos como quaisquer outros.” [p. 125, grifos do autor]
Com base nisso, sobram pauladas para o que Žižek chama, curiosamente, de “comunistas liberais”, como Bill Gates, George Soros, o pessoal do Google e os filósofos à sua disposição, como Thomas Friedman. Para o autor, a ideologia dessa turma tornou-se indistinguível da nova geração da esquerda radical antiglobalização – e aqui ele cita Toni Negri, “guru da esquerda pós-moderna” que elogia o capitalismo digital. “Os comunistas liberais simplesmente amam as crises humanitárias, que trazem à tona o melhor de si mesmos”, provoca. O fundador da Microsoft e maior benfeitor individual da história da humanidade mostra que “o problema é que para darmos, temos primeiro de tomar – ou, como alguns diriam, de criar”. Sua justificativa pode ser assim sintetizada: “A fim de ajudarmos realmente as pessoas, temos de ter os meios necessários, e, como ensina a experiência do desolador fracasso de todos os métodos estatistas e coletivistas, a via mais eficaz é a iniciativa privada”. Como diria o filósofo pós-humanista alemão Peter Sloterdijk, citado por Žižek em vários pontos de Violência, o capitalismo cria, assim, seu mais radical e fecundo oposto, totalmente diferente de tudo que a esquerda clássica, prisioneira do seu miserabilismo, era capaz de sonhar.
Resumo da ópera: o capitalismo atual precisa de caridade extraeconômica para manter seu ciclo de reprodução social. É a “triste situação em que nos encontramos”, lamenta o filósofo. Situação agravada pela pós-política, que deixa para trás os velhos embates ideológicos para se centrar na gestão. Com a administração despolitizada, “a única maneira de introduzir paixão e mobilizar ativamente as pessoas é através do medo, um elemento constituinte fundamental da subjetividade de hoje” (p. 45).
Linguagem
Por que Žižek fala da violência oculta na linguagem, se a linguagem é o oposto da violência? Podemos admitir que pode acontecer às vezes, em certas épocas, em certas sociedades, de a linguagem estar infectada por violência, mas só é por influência de circunstâncias patológicas contingentes que distorcem a lógica imanente da comunicação simbólica. Mas Žižek vem com uma de suas infindáveis perguntas desconfortáveis: “E se os humanos superam os animais em sua capacidade de violência precisamente porque falam?” A ideia prevalecente da linguagem e da ordem simbólica como meio de reconciliação e mediação oposta a um meio violento de confronto cru “é problemática”, escreve o filósofo, porque há algo de violento no próprio ato de simbolização de uma coisa, equivalendo à sua mortificação. A linguagem simplifica, destrói a unidade da coisa designada, tratando suas partes e propriedades como se fossem autônomas. Insere a coisa num campo de significação que lhe é exterior.
“A barreira da linguagem que me separa para sempre do abismo de outro sujeito é simultaneamente o que abre e que mantém esse abismo – o próprio obstáculo que me separa do Além é aquilo que cria a sua imagem”, diz Žižek.
Por exemplo, a divisa cristã de que “todos os homens são irmãos” [ou todas as pessoas são irmãs] significa também que aqueles que não aceitam essa fraternidade não são homens [ou são desprovidos de humanidade].
‘Violência divina’ em Walter Benjamin
O capítulo 6 trata de um conceito de Walter Benjamin (em Para uma crítica da violência), o de “violência divina” em oposição à “violência mítica” (páginas 154 e 155). Não tem nada a ver com divindade nenhuma, é bem mais complicado, ou denso, para utilizar o termo elegante empregado por Žižek. Violência divina faz parte do domínio do Acontecimento, sem um sentido mais profundo. Como ela é? Olhem para o Terror revolucionário de 1792-1794 na França, exemplifica o filósofo. “A violência divina deveria ser concebida como divina no sentido preciso do velho adágio latino vox populi, vox dei”, ação heroica da solidão da decisão soberana. Sem a fé na ideia eterna de liberdade que persiste para lá de todas as derrotas, e aqui ele está citando Robespierre, uma revolução não é mais do que um crime ruidoso que destrói outro crime.
Assim, Žižek parte da rejeição de uma falsa (porque hipócrita) antiviolência e chega à aceitação da violência emancipatória – entendida como uma alteração radical das relações sociais de base –, porque “estigmatizar a violência, condená-la como ‘má’, é uma operação ideológica por excelência, uma mistificação que colabora no processo de tornar invisíveis as formas fundamentais da violência social”.
Ricardo Whiteman Muniz é jornalista (Cásper Líbero, 2004), bacharel em direito (USP, 1993) e mestre em sociologia da religião (Metodista de São Paulo, 2000). Trabalhou em ONG internacional (comunicação e viagens de campo), na Exame.com (repórter de economia), no jornal O Estado de S. Paulo (subeditor de ciência, saúde, educação e meio ambiente) e no portal G1 (editor de ciência e saúde). É coeditor da revista ComCiência (parceria do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp com a SBPC) e professor da especialização em jornalismo científico do Labjor (curso Comunicação de Universidades).
[1] O exemplar lido para a escrita desta resenha é da 2ª reimpressão (agosto de 2016). A primeira edição no Brasil é de maio de 2014, tradução de Miguel Serras Pereira do original em inglês (Violence – Six sideways reflections. Londres: Profile Books, 2008)