Por Harry Crowl
Nos últimos anos temos visto um crescente interesse pela obra do mais celebrado compositor brasileiro tanto no Brasil quanto no exterior.No presente artigo, examinaremos dois ciclos de obras contrastantes e seminais na produção do compositor, os “Chôros” e as Sinfonias. Estes ciclos, que nas suas versões integrais nunca tinham sido contemplados até o final do século XX, vêm recebendo atenção por parte de importantes orquestras sinfônicas oficiais através de ambiciosos projetos de gravações. É o caso tanto das sinfonias quanto a série dos “Chôros”, cuja singularidade sempre a tornou um desafio imenso de ser realizado.
O primeiro ciclo, são 12 obras cuja seqüência começa com uma singela peça para violão, o “Choros no.1”, de 1920, dedicado a Ernesto Nazareth, com uma duração de poucos minutos e segue até o Choros no.12, para grande orquestra com uma duração de mais de 40 minutos. A viagem sonora proporcionada engloba as mais inusitadas formações camerísticas, como no “Choros no.7” (Settemino), até uma gigantesca composição para uma formação tradicional, mas tratada completamente fora do contexto de concerto solista, como é o caso do Choros no.11, para piano e orquestra com quase 1 hora de duração. Além do ciclo oficial, há o Choros no.13 e no.14, dos quais o compositor deixou descrições mais ou menos detalhadas, mas alegava ter perdido os manuscritos originais, além do duo para violino e violoncelo “Dois choros (bis)” e a “Introdução aos Choros”, para violão e orquestra.
Já as sinfonias, que contam com a numeração de 1 a 12, foram escritas ao longo de um período bem mais amplo da vida do compositor e, aparentemente, seriam composições mais regulares e não tão originais quanto os choros. Curiosamente, como não poderia deixar de ser no caso Villa, a polêmica também aparece no ciclo das sinfonias. A Sinfonia no.5 “A Paz” encontra-se supostamente perdida, pois há dúvidas se realmente algum dia existiu. As primeiras 4 sinfonias pertencem ao início da carreira do compositor, assim como pertenceria a 5ª sinfonia. Todas foram escritas até 1920. Ele retomou ao ciclo com a 6ª, em 1944, que traz o subtítulo “Sobre as Montanhas do Brasil”. Da 7ª à 12ª, ele escreveu numa seqüência direta até o final da vida, sendo que a 10ª. Sinfonia, “Sumé Pater Patrium” está mais próxima de um grande oratório.
No caso dos “Choros”, somente a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a regência de John Neschling encarou a hercúlea tarefa de gravar o ciclo completo, com todas as obras orquestrais, de câmera e solistas. Esta série de obras permanece como um dos acervos mais ousados, se não for o mais ousado de tudo que já se produziu de música no Brasil até os dias de hoje. A razão para isso é que Villa-Lobos não se utilizou de nenhum padrão de forma musical fixo que pudesse justificar o pertencimento de todas as obras a um mesmo conjunto. Apesar do nome “Choros”, as obras têm praticamente nenhuma relação com o chorinho. Aparece de tudo nessas criações, pastiches de Debussy, Wagner, Stravinsky sobrepostos a sambas, batucadas, marchas-rancho, serestas, valsas e ainda, música indígena coletada por Roquette Pinto, e por Theodor Koch-Grünberg.
Tudo nos “Choros” é inusitado, até a ordem cronológica de sua criação, que é a seguinte, 1, 2, 7, 8, 3, 5, 4, 6, 10, 11, 14, 9, 12, 13 (se é que foi realmente escrito, assim como o de no. 14). A Introdução aos Choros, para violão e orquestra, foi escrita em 1929, quando a série já estava toda constituída. O que afirmou Villa-Lobos é que a numerara a série dessa forma foi a intenção de atender a complexidade crescente das obras tanto do ponto de vista técnico quanto estético. A seguir, temos a relação de todas as obras:
– As obras são sempre denominadas no plural, “Chôros”, conforme grafia da época do compositor –
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No. 1 para violão (1920)
No. 2 para flauta e clarineta (1924)
No. 3 Para coro masculino ou 7 instrumentos, ou ambos em conjunto (1925) “Pica-pau” Coro masculino (2 tenores, barítono, baixo)/ clarineta, sax-alto, sax-alto 3 trompas, trombone. Tema “Nozani-Ná”, dos índios Parecís.
No. 4 para 3 trompas e trombone (1926)
No. 5 para piano (1925) “Alma brasileira”
No. 6 para orquestra (1926)
No. 7 para 7 instrumentos (1924) “Settimino” (flauta, oboé, clarineta, sax-alto, fagote, violino, violoncelo e tam-tam opcional)
No. 8 para grande orquestra com 2 pianos solistas (1925) – Conhecido também por Choros da Dança. Há nesta obra uma forte aproximação com “A Sagração da Primavera”, de Stravinsky.
No. 9 para orquestra (1929)
No. 10 para coro e orquestra (1925) “Rasga o coração”. Texto de Catulo da Paixão Cearense.
No. 11 para piano e orquestra (1928)
No. 12 para orquestra (1929) – nesta obra há citações explícitas de um tema de Petruchka, de Stravinsky e da marcha-rancho As Pastorinhas, de Noel Rosa, composta em 1935. Este Choros só foi estreado em 1945.
No. 13 para banda e 2 orquestras (1929) – partitura perdida, com exceção de um fragmento de partitura consistindo na primeira página de uma redução de piano, preservada pelo Museu Villa-Lobos.
No. 14 para orquestra, banda e coro (1928) – partitura perdida (?). Ao que parece, o compositor chegou somente a planejar a obra.
Chôros bis, para violino e violoncelo (1928–29)
Todas essas obras já receberam diversas interpretações e gravações, especialmente as para formações menores. A música de Villa-Lobos, de um modo geral representa um desafio imenso para os intérpretes, pois requer tanto um sentimento de balanço característico brasileiro, que envolve sutis diferenças nas sincopas, assim como o domínio da técnica de todos os instrumentos envolvidos. Portanto, muitas vezes grupos estrangeiros tocam a música com muita acuidade técnica, mas de forma um pouco mecânica, por falta de conhecimento e intimidade com o balanço característico da música popular brasileira. Os grupos brasileiros, freqüentemente esbarravam na falta de aprimoramento técnico encontrados nas orquestras e grupos de câmara internacionais, embora detivessem o balanço desejado para a interpretação das obras.
Seguindo uma trajetória bem mais obscura por muitos anos, as sinfonias de Villa-Lobos ganharam mais uma leitura recentemente. As únicas sinfonias que já tinham sido gravadas eram a Sinfonia no. 4 “A Vitória”, de 1919, inclusive pelo próprio compositor, nos anos 50, com a Orquestra Sinfônica da Rádio Francesa, certamente uma de suas favoritas, e a de no.6, de 1944, por Roberto Duarte, com a Orquestra Sinfônica da Rádio Eslovaca. No final dos anos 90, o regente norte-americano Carl St.Clair, por sugestão do musicólogo franco-brasileiro Gerard Behague, gravou pela primeira o ciclo completo das sinfonias para o selo alemão CPO, com a Orquestra Sinfônica da Rádio de Stuttgart. Foi também um trabalho gigantesco que levou quase 10 anos para ver a sua conclusão. Nessa época ficou bem clara a indisponibilidade da Sinfonia no.5 “A Paz”. O ciclo foi registrado então com as sinfonias de nos.1 a 4, e depois, de no.6 a 12. Duas questões saltaram à vista mesmo nas sinfonias já gravadas. A primeira, e mais óbvia, era que o compositor tinha sido absolutamente fiel ao modelo do classicismo do final do Séc. XVIII ao estruturar as sinfonias em 4 movimentos. Com exceção da 10ª, todas as sinfonias seguem esse padrão. A segunda, porém, refutando todos os preconceitos criados inclusive por outros compositores brasileiros de sua época, mostra que o compositor tem uma personalidade forte e se expressa de uma forma muito particular, mesmo nas primeiras sinfonias, sobre as quais se convencionou afirmar que ele estava influenciado pelo tratado de composição musical, do compositor francês Vincent D’Indy. Basta uma audição de obras do compositor francês para se perceber que o que as aproxima das primeiras sinfonias de Villa são apenas alguns recursos harmônicos. Já na Sinfonia no.1, de 1916, intitulada “O Imprevisto”, trata-se de uma música muito diferente daquilo que tinha sido escrito no Brasil até então e a tão decantada influência francesa é muito diluída.
A partir de 2009, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), sob a regência de Isaac Karabitchevsky, empreendeu a tarefa de gravar para o selo NAXOS, uma segunda leitura do ciclo completo das sinfonias. O trabalho foi concluído neste ano de 2018, com o lançamento da caixa com a coleção completa e a inclusão de alguns extras, como a Cantata Mandú-Çarará, que ainda não contava com uma gravação profissional.
As Sinfonias:
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Nº 1 O Imprevisto (1916)
Nº 2 Ascensão (1917/1944) – obra estreada somente em 1944, em Los Angeles, com a Orquestra Werner Janssen, sob a regência do próprio compositor. Há uma inserção temática no primeiro movimento de uma melodia muito próxima à do tema principal do filme “E o vento levou…”, de autoria de Max Steiner.
Nº 3 A Guerra (1919) – a mais experimental de todas as obras do ciclo. O compositor sobrepõe o hino da França “La Marseilaise” ao Hino Nacional Brasileiro no último movimento numa construção muito similar à do norte-americano Charles Ives. Porém, seria impossível para Vila conhecer o norte-americano naquela época, uma vez que a música de Ives ainda se encontrava na mais completa obscuridade e rejeitada por meio musical de seu país. Isso sem mencionar que a música de concerto norte-americana era completamente desconhecida no Brasil daquela época.Encomenda oficial do Governo Federal para formar o Trítico de Guerra, para celebrar o fim da 1ª Guerra, com roteiro literário do historiador Luíz d’Escaragnolle Dória.
Nº 4 A Vitória (1919) Obra monumental em termos de orquestração, porém de caráter um pouco mais convencional que a anterior.
Nº 5 A Paz (1920) – dada como perdida. Muito provavelmente nunca tenha sido escrita. Não há notícias de sua execução e sua partitura nunca foi vista por ninguém. Foi planejada para coro e orquestra. Porém, o fato é que a encomenda do Trítico foi feita a 3 compositores. A Villa-Lobos coube “A Guerra”. “A Vitória” foi encomendada a J. Otaviano Gonçalves e, “A Paz”, a Francisco Braga que escreveu um poema sinfônico para coro e orquestra. Motivado pelo estrondoso sucesso de sua 3ª. Sinfonia, o compositor resolveu ele mesmo responder ao chamado de fazer um Trítico de sua autoria, já que as outras duas obras não chamaram tanto a atenção.
A interrupção do ciclo das sinfonias aconteceu em função do contato do compositor com as novas linguagens da vanguarda européia da época com as quais ele teve contato a partir dos anos 20, quando de suas estadas em Paris. É justamente nesse período que ele escreveu o ciclo dos Chôros e também as “Bachianas Brasileiras”, já numa linguagem neo-clássica, embora também muito pessoal. A retomada do ciclo das sinfonias coincide com início das relações do compositor com os EUA.
Nº 6 Sobre a linha das montanhas do Brasil (1944). Baseada em melodias criadas a partir do delineamento da Serra dos Órgãos, feito a partir de uma fotografia e sobreposto a um papel milimetrado. A mesma técnica que usara em 1939 para escrever a obra para piano “New York Sky Line”.
Nº 7 (1945) – Composta para o Concurso de Composição “Symphony oftheAmericas”, Detroit, EUA. Neste mesmo concurso, A Sinfonia no.2, do brasileiro Camargo Guarnieri, ganhou o segundo lugar.
Nº 8 (1950) – dedicada ao crítico norte-americano Olin Downes.
Nº 9 (1952) – estreada pela Philadelphia Symphony Orchestra, sob a regência de Eugene Ormandy.
Nº 10 “Sumé Pater Patrium” (Sinfonia ameríndia) (1952). Obra para solista, coro e orquestra. Encomenda para os 400 anos da Cidade de São Paulo. Foi estreada somente em 1957, em Paris. A estréia brasileira só ocorreria seis meses depois, no Teatro Municipal de São Paulo.
Nº 11 (1955) – encomenda da Orquestra Sinfônica de Boston para a celebração de seus 75 anos. Dedicada a Serguei Kussevitsky.
Nº 12 (1957) – estreada pela Orquestra Sinfônica Nacional, Washington, DC.
A obra de Heitor Villa-Lobos sempre foi motivo de grandes polêmicas, que iam desde a sua colaboração com o estado Novo, de Getúlio Vargas, passando pela forma um tanto agressiva que sempre a divulgava até as suas opções estéticas e formais. Estas sempre continuaram após a sua morte. Mas, mesmo após quase 60 anos de seu falecimento e muitas transformações nas maneiras de abordar a composição da música de concerto ocorridas em todo o mundo desde então, e não mais somente na Europa, o seu universo de criação suscita desafios e reflexões que sempre se revelam atuais mesmo diante da magnitude das possibilidades dentro do universo da criação musical. No ano de seu falecimento, 1959, as tendências da música de concerto indicavam que a estética dos primeiros modernistas, entre eles Villa-Lobos, logo estaria esquecida. As novas linguagens propostas pelos festivais de Darmstadt, através de compositores como Stockhausen, Boulez, Berio, Cage e Xenakis, e por outro lado, também pela Escola Polonesa, através dos Festivais Outonos de Varsóvia, que apresentou ao mundo uma forte abertura vinda do Bloco Comunista, se consumiram nelas mesmas. O interesse nas criações antes vistas como periféricas sempre voltam a suscitar interesse pelas soluções inusitadas que muitas vezes propunham os compositores sobre o material considerado pelos vanguardistas como superado.
Harry Crowl é compositor e musicólogo nascido em Belo Horizonte. Estudou no Brasil e nos EUA, na Juilliard School of Music. Atuou como pesquisador de música do período colonial brasileiro através da Universidade Federal de Ouro Preto, até 1994. Estudou Comunicação e Semiótica na PUC-SP. É professor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná e diretor artístico da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná.