Cerca de 275 milhões de pessoas ou 5,5% da população mundial entre 15 e 64 anos usou drogas psicoativas no ano passado
Eliane Comoli
Estima-se que cerca de 275 milhões de pessoas usaram drogas no mundo em 2020, enquanto mais de 36 milhões sofreram transtornos associados ao uso, de acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2021, divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Pesquisas sugerem que o vício ocorre quando há um incentivo excessivo produzido por um descompasso no sistema de recompensa no cérebro, que fica hiperativo, levando ao uso contínuo de uma substância mesmo com consequências negativas. As interações entre derivados da Cannabis sativa e o sistema de recompensa foram apontados, em 2020, em artigo na revista Dialogues in Clinical Neuroscience.
O consumo excessivo e frequente de drogas altera circuitos cerebrais que regulam a motivação e a capacidade de guiar ações para atingir metas, o sistema de recompensa. “É como se a droga contasse para o cérebro que ele só consegue ter aquele prazer quando experimenta aquela sensação sob o efeito daquela substância”, explica Alline Cristina de Campos, farmacologista do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
A fase da adolescência merece um olhar cuidadoso por ser um período importante, quando os neurônios estabelecem muitas conexões novas. “As drogas de abuso podem prejudicar a capacidade de o cérebro fazer as conexões corretas e manter os neurotransmissores em equilíbrio. Isso pode fazer com que na vida adulta desenvolvam transtornos psiquiátricos e doenças neurológicas”, alerta a farmacologista.
Há evidências também de que o estresse provocado por violência doméstica ou o estresse-pós-traumático deixem o cérebro mais vulnerável ao consumo de drogas. Crianças que sofreram violência, por exemplo, têm maior probabilidade de consumir álcool, nicotina e outras drogas. “Sabemos que a incidência do consumo de álcool em pessoas com estresse pós-traumático atinge 1 entre 3 pessoas, e entre os veteranos de guerra cerca de 60 a 70% têm problemas com álcool”, comenta Lucas Albrechet de Souza, neurocientista do Departamento de Fisiologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Louisiana, nos Estados Unidos.
Sistema de recompensa, drogas de abuso e dependência
“Ações humanas são impulsionadas principalmente por necessidades de sobrevivência – como alimento, água, sono e dor – e por recompensas. Essas recompensas motivam e incentivam a busca por algo ou propiciam sentimentos prazerosos”, explica Lucas.
O responsável por tal incentivo e motivação é um circuito neural – sistema de recompensa – formado por neurônios que se comunicam através da dopamina, considerada por muitos como a substância do prazer. Esses neurônios produzem mais dopamina quando se espera receber uma recompensa – que pode ser um alimento, um objeto, uma pessoa ou um acontecimento. “O aumento de dopamina faz o corpo entender que aquele estímulo é potencialmente prazeroso e nos impulsiona a buscá-lo”, comenta Alline. Quem entra em ação dizendo que é hora de parar é o córtex, que tem uma participação importante no julgamento e no controle da impulsividade.
A dopamina também favorece a consolidação das memórias relacionadas à recompensa e ajuda a criar associações emocionais. “A cocaína gera um estado de euforia extremo porque aumenta demasiadamente o nível de dopamina. Já o álcool, por outro lado, “deprime” o sistema nervoso”, apesar de aumentar o nível de dopamina indiretamente”, explica Rodrigo Campos Cardoso, doutorando do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. No caso do álcool a euforia está mais ligada à inibição do córtex: com o sistema de “julgamentos” suspenso, ocorre a liberação de ações muitas vezes não adequadas.
“A busca pelo efeito eufórico pode incentivar um consumo crônico e pode causar dependência”, salienta Rodrigo. No caso do vício, a falta da substância gera efeitos negativos como dor de cabeça, irritação, ansiedade, hiperexcitação, insônia e mal-estar. A partir daí o consumo passa a ser cada vez mais continuado justamente para diminuir os sintomas que a ausência da droga causa, e não mais para a busca do prazer que inicialmente sentia ao consumir.
Sistema endocanabinóide e uso da cannabis
O sistema endocanabinóide interessa muitos pesquisadores há anos. “É um sistema neural responsável pelo equilíbrio geral do organismo. Em situações normais libera sinalizadores, chamados endocanabinóides, que agem nos receptores canabinóides (CB) presentes no cérebro para potencializar o prazer através do aumento da dopamina”, elucida Lucas.
Os principais componentes da Cannabis sativa – o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) – atuam nos mesmos receptores. O THC altera o funcionamento do sistema de recompensa, bem como a neurotransmissão de outros sistemas importantes, resultando em efeitos psicóticos e neurotóxicos. “Pode até mimetizar uma psicose alterando a percepção do ambiente completamente. Amplifica os sistemas auditivo e visual e a pessoa pode escutar e ver coisas de formas distorcidas”, exemplifica Alline.
Já o canabidiol (CBD), devido ao seu potencial antipsicótico e ansiolítico, tem sido usado como fitoterápico para estimular o sistema endocanabinóide em desajuste. Trabalhos em andamento e relatos clínicos apontam efeitos benéficos do CBD em transtornos de adição. “Apesar dos efeitos positivos, são necessários estudos multicêntricos englobando vários países e com número grande de dependentes químicos para confirmar se o CBD pode tratar um dependente químico de outra droga como a cocaína”, pondera Alline.
Eliane Comoli é bióloga, mestre e doutora em neurociência pela USP, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e cursou especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.