Por Gustavo Steffen de Almeida
O ano de 2017 é especial para os entusiastas e pesquisadores da literatura de ficção científica. Há 100 anos, nascia um dos maiores escritores do gênero, que, além de contribuir com a literatura, ajudou a fazer com que a ficção científica transpusesse a barreira dos livros, alcançando novos âmbitos, públicos e magnitude. O centenário de Arthur C. Clarke é uma data importante, e olhar para sua obra ainda hoje é essencial para entender a literatura de ficção científica e – por que não? – a própria ciência. Nascido na Inglaterra, Clarke é principalmente conhecido pela obra 2001: uma odisseia no espaço, um marco dentre os filmes em que a ciência realmente ganha papel central na trama, e que influenciou e alavancou o gênero da ficção científica no cinema mundial. O autor escreveu o roteiro da produção cinematográfica, lançada em 1968, juntamente com o grande diretor Stanley Kubrick, baseando-se em alguns de seus contos de ficção científica anteriormente publicados, destacadamente A sentinela, de 1951. No entanto, apesar de todo o impacto e importância do filme, a obra de Clarke vai muito além dele, servindo de influência para muitos outros autores e interferindo permanentemente nos rumos da ficção científica.
De acordo com Luís Paulo Piassi, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, Arthur Clarke tem uma perspectiva única em sua obra. “Ele inaugura, de uma forma bastante competente, aquilo que se convencionou chamar de ficção científica hard (FC hard), na qual o autor se preocupa em construir seu mundo narrativo de uma forma convincente. Ele se vale de conceitos que são validados no meio acadêmico-científico e usa esses elementos, seja do ponto de vista linguístico ou conceitual”, ressalta. Pesquisador da ficção científica e, em especial, da obra de Clarke, Piassi considera que isso torna o autor “um marco, no sentido de que ele vai ser uma escola para outros autores”.
Sobre os autores de ficção científica influenciados de maneira visível pela obra de Clarke, o professor cita Charles Sheffield, Ben Bova e Greg Bear como alguns nomes importantes. No cenário brasileiro, destaca o nome do fluminense Jorge Luís Calife, escritor cuja obra também se vale dos elementos da FC hard. Tendo traduzido diversas obras de A. Clarke para o português, Calife escreveu pessoalmente ao britânico pedindo que este criasse uma continuação para 2001: uma odisseia no espaço – fato reconhecido pelo próprio Clarke na ocasião do lançamento da sequência, na década de 1980. Recorda ainda do paraibano Bráulio Tavares, outro expoente brasileiro do gênero.
O papel essencial da obra de Clarke é também reafirmado por Luciano Levin, pesquisador da Universidad Nacional de la Pampa, na Argentina. “Clarke foi, sem dúvida, um dos grandes escritores de ficção científica do século XX. Sua etapa humanista, caracterizada por O fim da infância (1953) e 2001: uma odisseia no espaço, me parece um marco de toda a ficção científica e, talvez em grande medida, boa parte de certo ‘ethos’ científico do século XX”, diz, e agrega, “2001 foi importante não somente como obra literária, mas também impulsionou um grande desenvolvimento no cinema, na música e nas relações entre Hollywood e os assessores científicos”.
Por todas suas contribuições e os muitos prêmios que recebeu como escritor, Clarke foi condecorado cavaleiro do império britânico, recebendo o título de sir Arthur C. Clarke. Além disso, foi nomeado cidadão cingalês, por haver vivido grande parte de sua vida no Sri Lanka, onde morreu em 2008, aos 90 anos.
Afastando-se do “profeta”
Arthur Clarke é, muitas vezes, exaltado na mídia por haver “previsto” diversas tecnologias que não existiam à época em que escreveu seus livros e que vieram a tornar-se realidade. Ainda que não esteja incorreta essa percepção – o exemplo dos satélites geoestacionários é bastante emblemático de algo com uma especificidade técnica maior ao qual Clarke se antecipou – apenas reduzir o escritor a um adivinho de novas tecnologias prejudica a real compreensão de seu trabalho, de acordo com os entrevistados. “Não me parece que seja uma das características de Clarke (e nem de nenhum divulgador científico, realmente) fazer previsões. Eram, antes disso, pessoas muito bem informadas e com um sentido do que é possível muito bem desenvolvido”, enfatiza Levin.
Piassi tende a concordar. Ele rechaça o ponto de vista de que A. Clarke é um grande autor só porque antecipou a existência de determinados artefatos tecnológicos. “É uma visão pobre, que diminui a obra dele, e não é isso que interessa”, critica. Mais importante na obra de Clarke, defende o professor, não é a tecnologia em si, mas sim analisar de que forma ela impactaria do ponto de vista das relações sociais e embates humanos. “Ele queria ver quais seriam as consequências humanas que determinadas tecnologias iam acabar apresentando, mas sem ter uma perspectiva muito entusiasmada”, coloca. Para ele, muitas são as questões levantadas pelo autor no decorrer de suas obras, e essas podem levar ao aprofundamento de indagações essenciais às sociedades humanas. “Eu acho que a contribuição maior dele são as reflexões sobre o que é a ciência, o que ela representa; ela é uma coisa que tem poder transcendente, ou tem limites? Com nossa capacidade, nossos limites, será que vamos chegar a alguma coisa relevante?”, questiona.
Alguns autores de ficção científica e divulgadores de ciência compartilham do ponto de vista de que, de certa forma, por meio do desenvolvimento tecnológico, iríamos nos tornar mais éticos enquanto sociedade. Na opinião de Piassi, Arthur Clarke não é um deles. Nesse sentido, argumenta o professor da USP, Clarke difere de outros expoentes da ficção cientifica mundial, dentre os quais, Isaac Asimov (1920-92). “Asimov defendia que a própria ciência é emancipatória. Ciência em oposição à religião. Confronto. Arthur Clarke claramente não segue essa linha. Ele segue a linha do ‘não-sei’. Não tem como saber…não temos essa capacidade”.
Para Piassi, isso é perceptível em suas obras, nas quais muitas são as perguntas levantadas e poucas as respondidas. Dentro das narrativas, muitas vezes não temos respostas objetivas sobre qual a origem dos objetos, artefatos, seres ou mesmo personagens. “Na obra de Arthur Clarke, o ‘talvez’ é fundamental. Talvez aquilo que a gente interprete como alguma coisa de origem sobrenatural seja só uma tecnologia muito avançada, mas ele não dá, em nenhum momento, essa resposta”, comenta, lembrando uma das chamadas “Leis de Clarke” – possivelmente a mais famosa – que enuncia: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Novos rumos da ficção científica
Clarke abriu novos caminhos na ficção científica. Muitos autores, como visto, se espelharam em suas obras e seu estilo. Ainda hoje sua influência é sentida. Quais seriam, no entanto, os novos rumos para esse gênero? Sobre isso, Luciano Levin comenta que “O gênero está atravessando um momento muito difícil de ajuste a grandes modificações que operaram na ciência. A ficção científica hard, caracterizada por robôs e dados, e a ficção soft, especulativa, tem convergido em uma ficção que, às vezes, se torna muito fantástica e, noutras, alcança pontos sublimes de desenvolvimento”.
O pesquisador argentino acredita que novos campos da ciência devem ganhar progressivo espaço nas obras do gênero. “As neurociências, as nanotecnologias, as TICs (tecnologias da informação e comunicação) têm impactado na ficção científica moderna”, menciona. O pesquisador conclui apostando que as questões sociais e éticas concernentes à ciência, tecnologias e seus impactos humanos, assim como advogara Clarke, se tornarão temas centrais. “Está-se notando um importante avanço dos aspectos sociais da ciência, como as políticas científicas, a inclusão de aspectos éticos ou valorativos da ciência, a discussão, nas tramas argumentativas, com outros tipos de conhecimento (tradicionais, nativos etc.) que predizem um desenvolvimento interessantíssimo da ficção científica nos anos que estão por vir”, finaliza.
Gustavo Steffen de Almeida é graduado em ciências dos alimentos (USP), mestre em ciências de alimentos (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.