Uma leitura geográfica da greve estudantil de 2023 na Unicamp

Por Vinícius Carluccio de Andrade, Rafael Vidotte Mativi e José Antonio Lemos Veronesi

Introdução

A greve estudantil de outubro de 2023 não ocorre no vácuo. A paralisação votada por diversos centros acadêmicos das diferentes unidades dos campi da Universidade Estadual de Campinas precisa ser entendida a partir de um olhar geográfico. Quando movimentações – como a que ocorreu na Unicamp – aparecem, dificilmente as análises convergem para a Geografia. A luta, porém, passa a ser minuciosamente entendida se o espaço geográfico não for desconsiderado. Para Santos (2008a), o espaço geográfico, objeto de estudo da Geografia, é um conjunto solidário, indissociável e contraditório de sistemas de objetos e de sistemas de ações. Embora tal definição, a princípio, pareça complexa, o fundamental a se assinalar é que o espaço geográfico é uma instância social e dinâmica, ou seja, que muda segundo as transformações realizadas pelo homem.

A intenção desta breve reflexão não é trazer um arsenal teórico-conceitual da Geografia, mas propor uma visão que inclua, indispensavelmente, o espaço na leitura das tensões e das conquistas da greve discente, que acompanhou a greve dos funcionários iniciada anteriormente. Ainda segundo Santos (2008a, 2013, 2020, 2021), o espaço geográfico forma uma totalidade pela integração e pela inter-relação das partes que formam o todo. Percebe-se, além disso, que essa noção de holismo está em constante transformação, isto é, em um processo eterno de totalização. Assim, com a apresentação de motes como cotas trans, cotas PCDs e aumento de verbas para permanência estudantil, pensa-se em como, futuramente, transformar a Unicamp. A mudança vem não só pelo ingresso, mas também pela permanência. Além de possibilitar a entrada de pessoas cada vez mais heterogêneas, a intenção é permitir que esses indivíduos continuem a frequentar os espaços universitários através, por exemplo, da abertura do restaurante universitário aos finais de semana. A despeito de não estar explícito, as motivações estudantis têm sim um componente espacial e, acima de tudo, geográfico.

A máxima para tal afirmação reside, inclusive, na ocupação do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC). Com alunos subvertendo a tradicional lógica de aulas do local, o IMECC esteve, desde o incidente que deu força à paralisação, ocupado pelo corpo estudantil de muitos cursos da graduação e da pós-graduação. A ocupação não seguiu uma linha, entretanto, do “ocupar pelo ocupar”. Há a busca de um objetivo para justificá-la: segundo discursos nas assembleias gerais, a materialidade (forma material, aspecto visível de uma coisa – e, nesse caso, de uma construção) IMECC, com sua função (tarefa ou atividade esperada de uma forma) metamorfoseada da comum – pois serviu até de abrigo para graduandos que lá dormiram –, seguiu sem aulas e com centralidade dos discentes “até a reitoria acatar as demandas e os motes na mesa de negociação” (sic). O IMECC ocupado nada mais é que uma maneira de pressionar pelo reconhecimento dos pedidos dos que estão em greve. É um modo de se apropriar de uma forma, uma das unidades que compõem a totalidade inerente ao espaço geográfico, para alterar quem acessa e quem permanece no espaço da Unicamp.

Cartografia para espacializar a convergência dos momentos

Frequentemente, a Geografia é confundida como uma ciência que se limita à produção e à confecção de mapas e/ou outros produtos cartográficos. Na realidade, a Cartografia está na Geografia, mas a Geografia não é só a Cartografia. Apesar desse imaginário, é basilar espacializar o movimento de paralisação nas unidades. Foi vinculado, nas redes sociais, um mapa (figura 1) de autoria do aluno Gustavo Palma de Andrade Santos[1], que intentou, por meio do Google Maps, destacar pontos representantes dos centros acadêmicos e o resultado de suas respectivas votações (com ou sem greve). Até o momento da conclusão deste artigo, tal confecção somava mais de 36 mil visualizações. De forma simples, os alunos puderam acompanhar quais institutos aderiram ou não aos motes apresentados à reitoria.

Figura 1 – Mapa da greve de 2023 na Unicamp

Autoria: Gustavo Palma de Andrade Santos (2023).

Para um detalhamento maior, em conformidade com um recorte temporal (em dias) do início das votações, as figuras 2, 3 e 4 a seguir explicitam os resultados. Os mapas favorecem e facilitam a visualização e a leitura espacial do fenômeno. A Geografia, novamente, ajuda a captar o movimento. A sequência da paralisação (tanto do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp a partir do dia 24 de agosto quanto dos estudantes no começo de outubro) fica nítida:

Figura 2 – Mapa da greve no dia 3/10/2023

Elaborado pelos autores (2023).

Figura 3 – Mapa da greve no dia 4/10/2023

Elaborado pelos autores (2023).

Figura 4 – Mapa da greve no dia 5/10/2023

Elaborado pelos autores (2023).

Outro tópico interessante de se destacar se conecta à concepção da Geografia como filosofia das técnicas. Um adendo é necessário: as técnicas não são neutras e guardam intencionalidades (Santos, 2008a), afinal carregam consigo um componente social[2]. Há um fator humano nas técnicas – e por isso ela entra no escopo da ciência geográfica. Com a divulgação, em tempo real, do link para o mapa de Gustavo Palma de Andrade Santos, principalmente na plataforma Whatsapp, os demais discentes puderam acompanhar a atualização dos resultados das votações. A distribuição de votos também estava disponível. Curiosamente, em uma breve ponderação, nota-se algo identificado por Santos (2008b): as atualizações acerca da greve estão intimamente associadas à convergência dos momentos.

A convergência dos momentos, de acordo com o autor, é a unicidade do tempo, fruto dos avanços técnicos. É uma sensação de instantaneidade, posto que as assembleias foram acompanhadas concomitantemente. Pela simultaneidade das ações, os momentos vividos convergem, confluem. Esse contato com as informações originárias de outros espaços físicos e de outros institutos da Unicamp desvela, portanto, o conhecimento do acontecer do outro. Observa-se, assim, a multiplicidade de fatores que justificam o porquê analisar a greve de 2023 segundo a ótica da Geografia.

Conclusão

O movimento que marcou o segundo semestre de 2023 na Unicamp por unir pautas de estudantes e trabalhadores (funcionários, terceirizados e técnicos administrativos) tem sua semente geográfica. A ocupação do IMECC, por despertar conflitos e acirramentos de disputas, é a materialização da contradição presente na conceituação do espaço geográfico. Os itens defendidos pelos coletivos em greve são tentativas de democratizar o que se entende como espaço universitário. É uma situação, à vista disso, que apenas demonstra a potencialidade da Geografia como Ciência Humana. O espaço geográfico, tão esquecido em outros debates, é central para uma compreensão clara, concisa e, ao mesmo tempo, profunda, do que motiva os estudantes e os trabalhadores da Unicamp com suas propostas.

Por último, as mudanças que foram e serão proporcionadas como fruto das vitórias e das conquistas dos estudantes manifestam, na mesma medida, a “vida” que faz parte do espaço geográfico. Em outras palavras, a “vida” nada mais é que o dinamismo do processo de totalização citado anteriormente. Sempre há uma motivação para questionar. Nesse caso específico, as mais de dez palavras de ordem, sem dúvidas, estabelecem uma ruptura em prol de uma proposta e de uma ideia de universidade mais inclusiva. O que era excludente tende a ficar para trás. Leituras do futuro não são o fim deste texto, mas, entre tantas outras particularidades a serem salientadas do que foi construído pelos estudantes em outubro de 2023, uma se sobreleva: o vigor (como vitalidade e/ou força da vida) próprio ao espaço geográfico. Em qualquer análise, o espaço não pode ser omitido, pois foi utilizado para modificar quem ingressa e quem permanece na Unicamp.

Referências Bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008a.

_____________ Espaço e Método. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020.

_____________ Por uma Geografia Nova: Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.

_____________ Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2008b.

_____________ Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-científico-informacional. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

Vinícius Carluccio de Andrade, Rafael Vidotte Mativi e José Antonio Lemos Veronesi são graduandos em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

[1] O mapa pode ser encontrado no seguinte link: https://goo.gl/maps/dnW3pcNyQJSVDTH26. Acesso em: 20 out. 2023.

[2] Para Santos (2008b, p. 24), “o desenvolvimento da história vai de par com o desenvolvimento das técnicas”. Consoantemente, para Castells (1999, p. 25, itálico no original), “a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas”.