Por Rodrigo Ghedin
Com a promessa de conectar pessoas no ambiente digital, empresas como a Meta e o X (antigo Twitter) nos tornaram prisioneiros em plataformas que trocam pequenas doses de dopamina por pares de olhos dispostos a consumirem anúncios pelo maior tempo possível.
Os efeitos nocivos — em indivíduos e no coletivo — causados por essas empresas, as chamadas big techs, já são bastante conhecidos, bem como a inércia — muitas vezes proposital — delas em corrigirem problemas urgentes, resultado do desalinhamento entre o que seria melhor para as pessoas e para os bolsos dos seus acionistas.
Nem sempre foi assim. Entre a popularização da web e sua plataformização, quando o ambiente online ainda era pautado pelo amadorismo, sem tanta influência comercial ou interesses escusos, tivemos um breve vislumbre de uma rede global que, de fato, conectava pessoas.
Quem viveu a era de ouro dos blogs, dos fóruns de discussões, dos espaços de bate-papo regionais movidos no IRC, das BBSs, lamenta o que a internet se transformou após corrompida pela ganância sem limites dos donos do capital.
Estamos há tanto tempo nessa — quase duas décadas — que já temos gerações que não conheceram a vida sem internet, sem essa internet, mas mesmo os mais jovens — especialmente eles — têm sentido os efeitos danosos de viverem em ambientes online pautados pelos piores impulsos da big tech.
É difícil tecer análises no olho do furacão. Embora haja sinais promissores de mudanças, ainda sentimos os efeitos de uma série de fatores que concentraram ainda mais poder em grandes empresas de tecnologia nos últimos anos: a publicidade invasiva, o enfraquecimento da imprensa, o recrudescimento da política institucional, os efeitos do pós-pandemia.
Tais fatores aumentaram o contingente de pessoas interessadas em alternativas às tecnologias que se tornaram vitais e, por esse motivo, inescapáveis. Mesmo tomados por poucos, existem caminhos alternativos que nos empurram para frente. É de alguns deles que aproveito este espaço na ComCiência para falar.
As mesmas tecnologias que viabilizaram a “web 2.0”, ou seja, a web participativa, ainda existem e funcionam. Mais que isso: continuam sendo aperfeiçoadas para acomodar novas funcionalidades e atender às expectativas das pessoas, hoje muito distintas das do início do século.
Tomemos o blog. Ele opera com protocolos e tecnologias abertos, livres para uso — HTTP, HTML e RSS. Hoje, em alguns sistemas é possível ir além e incorporar protocolos mais sociais recentes, como o ActivityPub, que é reconhecido pela W3C, órgão que rege os padrões web, e tem por finalidade aplicar uma camada social por cima de sites que, de outra maneira, funcionam isolados.
A aplicação mais famosa que adotou o ActivityPub é o Mastodon, um serviço de rede social que à primeira vista lembra o finado Twitter.
O Mastodon é apenas uma de incontáveis aplicações possíveis. Existem alternativas ao Reddit (Lemmy), YouTube (PeerTube), Goodreads (Bookwormy), além de componentes para adaptar sites já existentes, caso do plugin homônimo ao protocolo para WordPress, o sistema de blogs mais popular do mundo. Todas essas plataformas dialogam por adotarem um mesmo “idioma”, o ActivityPub.
Em outro recorte, essas comunidades podem ser temáticas, o que abre espaço para o fortalecimento de comunidades que já existam ou queiram se estabelecer no “mundo físico”.
No Mastodon, por exemplo, existem três “timelines”: a dos perfis que alguém segue, a local (das pessoas no mesmo servidor/comunidade) e a global (de todas as conexões que todas as pessoas da comunidade estabeleceram).
A interoperabilidade e o código livre dessas aplicações resgatam a nossa autonomia no digital. Ao optar por elas, trocamos entidades centralizadas no Vale do Silício e de outros pólos tecnocratas por um emaranhado quase orgânico de comunidades onde quem participa tem voz e o poder de migrar para outras paragens sem perdas (ou com poucas). Deixamos de ser usuários. Viramos membros, participantes ativos.
As chamadas redes descentralizadas pulverizam o controle das comunidades em que dialogamos, divulgamos e interagimos na internet, sem tirar-lhes a capacidade de ouvir e se fazer ouvir por pessoas que estão além delas graças à federação, ou seja, a capacidade que as comunidades têm de se conectarem entre si.
Como em toda mudança, esta também não se faz sem percalços. O conceito de federação, termo importante no contexto do ActivityPub e outros protocolos descentralizados, não é dos mais complexos, mas apenas ser diferente do de Instagram, TikTok, X e YouTube faz com que comunicá-lo seja tarefas das mais difíceis.
Outro é vencer a força gravitacional do chamado “efeito de rede”, que diz que uma plataforma se torna mais útil à medida que mais gente participa dela. As comerciais, além da vantagem de existirem há mais tempo, investem muito em reduzir atritos e facilitar ao máximo o ingresso e o uso, mesmo que esse uso seja prejudicial às próprias pessoas — idosas e iletradas que caem em golpes veiculados via anúncios pagos no Facebook, por exemplo, não são bem um problema para a Meta.
Por fim, é preciso acostumar-se a um ritmo outro, mais lento, comum a projetos não viciantes. Como a geração de receita das grandes plataformas comerciais está ligada à quantidade de anúncios veiculados, elas são otimizadas para sempre terem algo “interessante” — é daí que vêm os virais que indignam, desinformam e espalham ódio.
Plataformas alternativas não necessariamente são lentas, mas costumam ser. O que não é ruim, se “preencher todo o vazio existencial da base de usuários” não for o objetivo delas.
Um dos maiores dilemas de quem se preocupa com esse assunto é permanecer ou não nas redes comerciais enquanto tenta se acostumar às abertas/descentralizadas.
Quando o Twitter trocou de mãos, em 2022, muitos tentaram o movimento preventivo de migrar para o Mastodon, prevendo (com razão, como nos mostrou o tempo) o processo de deterioração causado pelo então novo dono.
Poucos permanecem até lá. Houve ruído, choques culturais e algumas dificuldades genuínas.
Ainda acredito, porém, que o ActivityPub e protocolos abertos são a única chance de termos ambientes mais saudáveis na internet, que promovam trocas pelo seu valor intrínseco, e não — como fazem as plataformas comerciais — como pretexto para vender anúncios invasivos mantendo as pessoas grudadas em telas.
Saí e voltei das plataformas comerciais em um intervalo de quatro anos. Para a minha surpresa, senti um desgosto tamanho ao retornar a elas que passei a encarar o que achava ter sido um sacrifício como alívio.
Mentiria se dissesse que não sinto falta das amenidades e atualizações de pessoas que me são queridas. Por outro lado, notei que muito do que elas publicam, hoje, parece ser estimulado pelas dinâmicas das plataformas — a “trend” do Instagram, a polêmica vazia do X, o que quer que as pessoas ainda façam no Facebook. Em vez de conectarem pessoas, as plataformas sociais viraram um fim em si mesmas. O fim? Viciar e mostrar anúncios.
É possível. E não só no âmbito individual. O Manual do Usuário, blog de tecnologia que mantenho desde 2013, integrou o ActivityPub no início de 2024. Desde então, leitores podem acompanhar e interagir com o conteúdo do Manual a partir de seus perfis em outras aplicações compatíveis, como o Mastodon, sem sair delas.
Rodrigo Ghedin é jornalista, fundador e editor do Manual do Usuário.