Por Thais Farias Lassali
A ausência de feminilidade no heroísmo faz com que, de uma maneira geral, personagens com muitas características femininas não sejam vistas como possíveis heróis ou como personagens que possam, de fato, solucionar o problema proposto pela narrativa. Nesse sentido se explica com mais espessura as heroínas: para elas serem aceitáveis como dignas do mínimo de heroicidade, elas precisam ser neutralizadas.
Se existe algo que a ficção científica (a estadunidense, pelo menos) nos ensina, a cada novo filme, é a perene desconfiança em relação à forma. É plenamente possível nos depararmos com alguém aparentemente humano que se mostra, no fim, maquínico de algum modo. Da mesma maneira, podemos encontrar humanidade nos circuitos elétricos de computadores e nas engrenagens biomecânicas de androides.
Um clássico exemplo está em 2001: uma odisseia no espaço, obra de Stanley Kubrick em que vemos astronautas inegavelmente humanos em seu aspecto físico, mas que agem de maneira insensível, quase como máquinas executando cálculos. Em contraposição a eles temos HAL 9000, um computador que não tem corpo e, ainda assim, acaba sendo representado de maneira intimamente humana, demonstrando sentimentos como orgulho, ansiedade e medo. A exterioridade, de fato, nos engana.
Dessa lição que a ficção científica nos dá, é possível concluir que esse gênero cinematográfico tem como característica a presença de personagens híbridos. Ou seja, criaturas que não se encaixam de maneira exata a “caixinhas” rígidas; como no caso de 2001, que se localizam no imenso espectro entre o que é ser humano e o que é ser máquina. Isso fica evidente quando tomamos a hibridez a partir da relação entre “espécies”, mas o que pode ser dito se nos virarmos para a espécie humana e sua diversidade? A forma também nos engana? Arrisco dizer que sim.
Um paradigma para a humanidade, o herói neutro
Historicamente, a ficção científica cinematográfica estadunidense tende a ser bastante inovadora quanto às técnicas de efeitos especiais, sendo reconhecida por desbravá-las e testá-las. Ao mesmo tempo, é bem diversa imageticamente, sem elementos pictóricos estritamente convencionados. Por outro lado, no geral, tende a ser bastante reticente em expor temáticas progressistas. Pelo contrário, em Hollywood, a ficção científica se apresenta de maneira a reafirmar, na maioria das vezes, as normas e hierarquias da sociedade norte-americana.
Vemos isso de maneira palpável quando se joga os holofotes sobre uma figura bastante característica desse tipo de filme, o herói. Se o elo entre pessoas e máquinas, e toda a confusão decorrente disso, nos mostra as fricções pelas quais pode passar a categoria humano, por meio do herói notamos qual é a versão modelo dessa categoria, qual é o padrão e a norma ao redor do comportamento humano. É possível observar isso de duas maneiras: por meio da caracterização do personagem e pela maneira como ele se desenvolve no decorrer da narrativa.
Em relação à caracterização, a figura heroica é inicialmente representada como alguém absolutamente comum, genérico, que não se destaca por nenhuma excepcionalidade, até ser surpreendido por algum tipo de crise a partir da qual o roteiro se desenrola, momento no qual podemos ver qualidades como a racionalidade e a coragem, essenciais para que ele cumpra seu objetivo de salvar o dia, o planeta ou a humanidade de seja qual for a ameaça. É possível argumentar que os protagonistas da ficção científica são personagens premeditadamente rasos para facilitar a identificação da audiência com eles. Ainda que isso faça sentido, é preciso ir além da aparência.
A especialista em cinema estadunidense e teórica de mídia Vivian Sobchack argumenta no artigo “The virginity of astronauts” que existe uma recorrência no herói de ficção científica: ele é, via de regra, um homem não-sexualizado, virginal. Isso significa dizer que as funções sexuais, corriqueiras da experiência humanas, são excluídas da ideia de heroísmo da ficção científica. Mesmo quando surge algum interesse amoroso no desenrolar da história, isso se dá, em geral, a partir da presunção da heterossexualidade da figura em questão e se realiza no máximo com um beijo, raramente de maneira carnal e libidinosa.
Nos estudos de gênero é bastante comum assumir, assim como o fez Michel Foucault em História da sexualidade, que a ciência toma a sexualidade humana como um local de cuidado, de controle e de intervenção. E, mais ainda, entender a ciência como um espaço que privilegia o ponto de vista masculino, que se volta para controlar e intervir, dentre outras coisas, a sexualidade das mulheres. Dessa maneira, associar a ideia de herói, o paradigma da humanidade, com a não-sexualidade, coincide com a maneira pela qual as ciências enxergam o sexo, algo a ser analisado, dissecado e controlado, localizado no corpo e, portanto, fora da racionalidade. Ao mesmo tempo, é possível dizer que estamos falando de um gênero cinematográfico que caracteriza seu principal personagem a partir de uma perspectiva masculina.
Não apenas porque a maior parte de seus heróis são homens, mas porque elege como heroicas e essenciais para a resolução da narrativa características socialmente consideradas como masculinas, e, ao mesmo tempo, as torna sexual (e narrativamente) neutras. O que é socialmente entendido como diferença, na ficção científica é transformado em neutralidade, como se a diferença e, principalmente, a desigualdade, não existissem. Citando Sobchack, vemos como a “masculinidade, em sua versão precisa como assexualidade, é visualmente codificada como uma linha de montagem de igualdade”[1].
Um processo parecido ocorre em relação ao desenvolvimento da narrativa. É muito recorrente na ficção científica hollywoodiana a construção da estrutura narrativa ao redor da jornada do herói, inspirada naquela discutida pelo estudioso de mitologia Joseph Campbell no livro O herói de mil faces, de 1949. Essa é uma referência admitida por George Lucas para criar a série Star wars e, desde então, foi instrumentalizada por outros produtores e diretores em diversos filmes. A ideia de viagem para um lugar desconhecido que transforma uma pessoa comum em herói também se baseia em “práticas espaciais por muito tempo associadas com experiências e virtudes masculinas”[2].
“Por muito tempo” desde, pelo menos, a expansão colonialista europeia. As pinturas, os desenhos e os diários de viagem do período são um exemplo disso. Eles estão cheios de figuras masculinas heroicas envoltas de figuras animalescas ou femininas representando os perigos do tal “Novo Mundo”. Assim, quando a ficção científica mostra jovens desbravando o desconhecido, partindo em aventuras eletrizantes para salvar o planeta ou a espécie humana, ela está, de alguma maneira, se colocando em diálogo com esse imaginário intimamente masculino do desbravador-colonizador.
Evidentemente não defendo que exista algo como um ponto de vista narrativo masculino ou branco em essência, mas argumento que algumas escolhas ou estruturas narrativas bastante recorrentes ao longo da história do gênero de ficção científica, podem, sim, partir de uma perspectiva específica. É notório que tais estruturas não são fixas e são passíveis de mudança, dessa maneira, se torna interessante compreender como as personagens heroicas femininas são representadas.
As heroínas neutras
De que maneira a ficção científica lida com gênero das heroínas? Como é transposta a pretensa neutralidade do herói nas personagens mulheres? Um caso bastante útil, tanto pela sua nitidez, quanto pela maneira como é paradigmático, pode ser encontrado em Alien, o oitavo passageiro, de 1979. A personagem principal, uma das primeiras mulheres representadas de maneira heroica no cinema estadunidense, é a tenente Ellen Ripley. Ela alia características socialmente entendidas como masculinas àquelas consideradas femininas.
Se, por um lado, demonstra frieza e racionalidade, características heroicas necessárias para tomar decisões essenciais ao desenrolar do filme, por outro, arrisca a vida por um gato, o que pode soar frívolo. A personagem tem treinamento militar, conhecimento técnico e suas roupas são idênticas às dos outros tripulantes. Mesmo quando, na cena final, ela se despe a ponto de ficar seminua, isso ocorre como se ela estivesse tirando suas armaduras depois de uma árdua batalha, sem que seu corpo seja reduzido a um mero objeto de apreciação.
Entretanto, Ripley, antes de vir ao mundo nas telas, nem sempre fora pensada como uma mulher. Foi apenas durante a fase de seleção de atores que os produtores tomaram essa decisão. Nas primeiras versões do roteiro de Alien, os personagens tinham nomes neutros em gênero, o que os fez acabar sendo entendidos, claro, como masculinos, e assim desenvolvidos no início da produção. Segundo Sigourney Weaver, em entrevista para o American Film Institute, Ellen Ripley, “antes de mais nada, era um personagem que foi escrito como um homem, então ela foi feita de uma maneira muito honesta. Ela era uma pessoa direta, que não tinha essas cenas em que de repente ela estava vulnerável, jogava suas mãos para cima e esperava alguém salvá-la. Ela era uma criatura pensante, em movimento, decidida”.
Exatamente por isso ela é, em Alien, o oitavo passageiro, a heroína que se torna paradigma de humanidade. Ainda que a tenente tenha uma forma visualmente identificável como feminina, existe um esforço do filme em representá-la como pretensamente neutra, sustentada por um emaranhado de representações ao mesmo tempo femininas (sensibilidade, instintos) e masculinas (frieza, racionalidade). O que é importante apontar disso é que ainda que a personagem seja em certa instância feminina, para que seja heroica, ela precisa ser “neutralizada”, ou seja, masculinizada – associada com ideias socialmente consideradas como masculinas – em certa medida.
A ausência de feminilidade no heroísmo faz com que, de uma maneira geral, personagens com muitas características femininas não sejam vistas como possíveis heróis ou como personagens que possam, de fato, solucionar o problema proposto pela narrativa. Nesse sentido se explica com mais espessura as heroínas: para elas serem aceitáveis como dignas do mínimo de heroicidade, elas precisam ser neutralizadas.
Diversas outras heroínas da ficção científica passaram por esse mesmo processo de Ripley, como a princesa Leia da primeira trilogia de Star wars e Sarah Connor dos dois primeiros O exterminador do futuro, comprovando que esse é um recurso narrativo bastante recorrente.
Tem ganhado bastante atenção da mídia e das redes sociais a chamada representatividade, a partir da qual as pessoas pedem por maior diversidade nos personagens dos mais diversos produtos culturais, e muitas vezes tais personagens são usadas como exemplos de boa representação. Ainda que elas sejam de fato figuras importantes para a história da ficção científica, consideradas inspiradoras e até, para usar um termo atualmente corrente, empoderadoras, é importante ressaltar que o heroísmo delas é construído a partir do ideal social de masculinidade. Entendê-las como exemplo de representatividade é justamente cair na armadilha da forma feminina e ignorar o conteúdo pretensamente neutro, mas evidentemente masculino delas.
[1] Sobchack, V. The virginity of astronauts, p. 108.
[2] Clifford, J. Notes on theory and travel, p. 182.
Thais Farias Lassali é graduada em ciências sociais na Unicamp. Mestre e, atualmente, doutoranda em antropologia social na Unicamp. thaislassali@gmail.com