Um debate do tipo e-books versus livros de papel, mas na Roma antiga

Por Keith Houston

Quando surgiu o “códice” como uma evolução do papiro, houve até propaganda de um poeta, Marcial (85 d.C.), em favor da novidade: “Você que deseja que meus pequenos livros o acompanhem em todos os lugares, compre estes livros. Uma mão só já basta para me segurar”. Mas a maioria pagã de Roma e a população judia do mundo antigo preferia a forma familiar do rolo. Foi a comunidade cristã que produziu com entusiasmo códices contendo os evangelhos e comentários.

Publicado originalmente em 22 de agosto de 2016 na BBC

O livro está mudando. Os livros eletrônicos, ou e-books, são mais portáteis do que os impressos, podendo ser carregados às centenas em um único leitor ou tablet. Outros milhares de livros estão à distância de um clique. Pode-se argumentar que os e-books são mais robustos do que os livros de papel: um aparelho leitor de e-books pode ser roubado ou derrubado na banheira, mas os livros contidos nele estão armazenados em segurança na nuvem, aguardando para serem baixados em um novo dispositivo. Não é exagero dizer que os livros e a leitura estão em meio a um processo de revolução. 

Nem todos estão contentes com isso. Os amantes de livros, editoras e livrarias estão observando a batalha de vendas de livros versus e-books com grande interesse. Quando Tom Tivnan, do site The Bookseller, reportou que as vendas de e-books haviam caído pela primeira vez, parecia quase aliviado: “Para aqueles que previram a morte do livro físico, com o livro digital dominando o mercado até o fim desta década,  os números das vendas de livros impressos e digitais […] para 2015 podem nos forçar a fazer uma reavaliação.” Os livros físicos podem ter a preferência por enquanto, mas o debate está longe de ser resolvido.

O estranho é que a atual ansiedade em relação à mudança no aspecto do livro repete um episódio surpreendentemente semelhante na história. Há dois mil anos, um novo e pouco ortodoxo tipo de livro ameaçou revolucionar a ordem estabelecida, para a decepção dos leitores da época.

A Roma do século I d.C. estava inundada com a palavra escrita. Estátuas, monumentos e lápides estavam inscritas com majestosas letras maiúsculas; os cidadãos tomavam nota e enviavam mensagens em tábuas de madeira recobertas de cera; as bibliotecas dos ricos estavam cheias de livros de história, filosofia e artes. Mas não se tratava de livros como os conhecemos – eram feitos de folhas de papiro egípcio prensadas em rolos de 4 a 16 metros de comprimento. Apesar de toda a sua ubiquidade, tinham seus defeitos.

Em primeiro lugar, era preciso usar as duas mãos para ler um rolo de papiro corretamente. A menos que o leitor estivesse sentado em uma escrivaninha (na qual pesos de papel ou pregadores de madeira podiam ser usados para segurar o papiro, que tendia a enrolar), a única maneira de ler o rolo era desenrolando-o com cuidado, passando-o da mão direita para a esquerda para tornar a enrolá-lo. Os escritores e copistas geralmente escreviam em colunas com espaçamento de algumas polegadas, de forma que grande parte do papiro frágil no rolo pudesse ser mantido enrolado. Mesmo assim, os arqueólogos encontraram rolos gastos na parte inferior onde roçavam na roupa do leitor.

Então esse foi o segundo grande problema com os rolos: o papiro não é, inerentemente, um material que dure muito, especialmente se retirado de sua zona de conforto quente e seca do Mediterrâneo. Tendo começado a apreciar um historiador homônimo seu, Tácito, imperador romano de 275 até 276, tinha que distribuir cópias novas das obras do historiador a cada ano para substituir as que haviam estragado na Gália e na Germânia. O papiro também se parte e rasga se for dobrado com muita frequência, levando naturalmente ao formato ligeiramente curvo do próprio rolo – e também havia a desvantagem que a maioria dos rolos só exibia escrita em um lado. Somente se o texto na frente de um rolo não era mais necessário, o escriba o virava e usava o verso; um rolo de dois lados era simplesmente difícil demais de ler de outra maneira.

Envolto em mistério
Em algum momento no século I d.C., ou antes dele, um novo tipo de livro apareceu prometendo enfrentar as deficiências do papiro. As provas são esparsas, mas reveladoras: os arqueólogos descobriram alguns importantes pedaços de papiro cujo texto inesperadamente continua da frente para o verso, e cujas margens perfeitas se poderia esperar de um livro com páginas. E é exatamente isso o que eram esses fragmentos: folhas dos primeiros livros com páginas que o mundo havia visto. Sabemos que os romanos chamavam esse novo tipo de livro de códice (de caudex ou tronco de árvore, por causa de sua semelhança com as tábuas de madeira para escrever), mas a maneira como o primeiro códice surgiu está envolta em mistério. A primeira menção por escrito aparece nas palavras de um poeta romano chamado Marcial, que encorajava seus leitores a comprar seus livros nesse novo formato com páginas:

“Você que deseja que meus pequenos livros o acompanhem em todos os lugares e quer ter companheiros para uma longa jornada, compre estes livros que o pergaminho contém dentro de pequenas páginas: dê seus estojos de pergaminho aos grandes autores – uma mão só basta para me segurar.”

Escrito entre 84 e 86 d.C., o discurso de marketing de Marcial nos conta que não somente os livros com páginas eram conhecidos no século I d.C., mas também que ao menos alguns deles eram feitos de um novo material chamado pergaminho. Essa alternativa ao papiro, inventada em uma cidade-estado grega alguns séculos antes, era feita a partir de peles de animais limpas, estiradas através de um processo sangrento e trabalhoso, mas sua maciez e resistência o tornavam um material ideal para escrever. Desde então, os arqueólogos confirmaram as alegações de Marcial através de fragmentos de códices de pergaminho datados do século I – e, no entanto, exceto por essas poucas descobertas intrigantes, ainda sabemos bem pouco sobre onde ou por que o códice foi inventado, ou quem poderia tê-lo inventado. Até mesmo a dúvida se os primeiros códices eram feitos de papiro ou de pergaminho nunca foi satisfatoriamente resolvida.

Seja qual for a verdade, o livro com páginas foi um considerável passo à frente desde o rolo de papiro. Os códices se prestavam a ser unidos entre capas de madeira ou “papelão” (folhas de resíduos de papiro ou de pergaminho coladas juntas), que os protegiam de leitores descuidados. Suas páginas eram fáceis de folhear e, com o acréscimo de números de página, prepararam o caminho para índices e tabelas de conteúdo. Além disso, economizavam espaço, contendo mais informações do que os rolos de papiro de tamanho comparável: referindo-se às obras do prolífico escritor Tito Lívio, Marcial exultava que “espremido em poucas peles, [pergaminho] está o volumoso Lívio, que minha biblioteca não contém inteiro”. Robusto, eficiente e acessível, o códice era literalmente o formato das coisas do futuro.

Modelo de um códice ‘Nag Hammadi’ feito ao estilo de um estojo de livros do Século IV encontrado no Egito em 1945. Créditos: Irina Gorstein (modelo de livro) e Adam Kellie (fotografia), conforme atribuições publicadas na reportagem original da BBC

 

No entanto o povo de Roma e das terras adjacentes estava dividido sobre os méritos do códice. A maioria pagã de Roma, junto com a população judia do mundo antigo, preferia a forma familiar do rolo; a comunidade cristã que crescia rapidamente, por outro lado, produzia com entusiasmo livros contendo evangelhos, comentários e sabedoria devocional. Logicamente, sabemos como essa história termina: até o século VI, tanto o paganismo como o rolo de papiro estavam à beira da extinção e o judaísmo havia sido firmemente eclipsado por seu irmão mais jovem, o cristianismo. Trazido com o despertar da igreja cristã, o livro com páginas encontrou seu lugar na história e na sociedade.

O e-book do século XXI pode não ter um prosseguimento tão devoto quanto o códice do mundo antigo, mas inspira opiniões fortes mesmo assim. Será que destronará o livro impresso por sua vez, ou será que é ele que seguirá o caminho do rolo de papiro? O tempo e as margens de lucro das livrarias vão dizer.