Por Dimítria Coutinho
Nascido e criado na comunidade indígena Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália (BA), aprendiz de pajé e pesquisador no grupo Saúde Coletiva, Epistemologias do Sul e Interculturalidades, da Universidade Federal do Sul da Bahia, fala sobre o sentido do tratamento comunitário dos povos indígenas.
“É muito complicado quando você se acostuma com algo que não é bom”. A frase é de Ubiraci Pataxó, indígena e pesquisador em saúde coletiva na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), que comenta a respeito do luto quase constante que as comunidades indígenas enfrentam no Brasil. Nos últimos dez anos, de acordo com o Atlas da Violência 2021, a taxa de mortes violentas de indígenas aumentou 21,6% no Brasil, enquanto a taxa de assassinatos em geral caiu no país.
Em constante ameaça, os povos indígenas estão quase acostumados a “perderem pessoas no caminho”, afirma Ubiraci. “É como se a gente estivesse em uma constante guerra e a gente soubesse que uma bomba vai cair e matar alguns dos nossos”, diz.
Nascido e criado na comunidade indígena Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália (BA), onde vive até hoje, Ubiraci é aprendiz de pajé e também pesquisador no grupo Saúde Coletiva, Epistemologias do Sul e Interculturalidades, da UFSB. “Meu trabalho nesse grupo é principalmente relembrar que não se faz saúde coletiva falando só do individual. A minha inquietação é que, na comunidade, a família enfrenta dificuldades unida. Então, falar de saúde coletiva é olhar os diversos setores e vivências”, comenta.
Principalmente quando a saúde envolve um tema tão delicado quanto o luto, Ubiraci acredita na parceria entre ciência e saberes locais, cultura e religião. Para ele, é preciso que haja colaboração entre as partes para que os povos indígenas tenham acesso à melhor saúde possível: aquela que respeita seus conhecimentos e tradições.
Com rosto e corpo pintados e usando adereços da cultura indígena na cabeça e nos braços, o pesquisador conversou por chamada de vídeo com a reportagem da revista ComCiência por cerca de 40 minutos.
Ubiraci, você é aprendiz de pajé e pesquisador em uma universidade, e acredita que ciência e saberes locais devem andar juntos no cuidado da saúde de povos indígenas. Quando o assunto é o luto, como se dá essa parceria?
É uma violência quando se diz que o meu Deus não é tão bom quanto o seu, ou que o seu ensino é melhor do que todos os outros. A sociedade em que vivemos diz que, para trabalhar a espiritualidade, eu tenho que encontrar um pastor, um padre, um guru. Para cuidar da minha mente, eu tenho que ir para um profissional, seja ele psicólogo ou psiquiatra. Mas, nesse corpo aqui, está tudo junto. Para nós, indígenas, tomar um café é cuidar do corpo, mente e espírito; ir pescar é cuidar do corpo, mente e espírito; passear, caminhar, dançar, cantar, celebrar é cuidar do corpo, mente e espírito. Para nós indígenas, quanto mais juntos nós estamos, mais fortalecidos nós estaremos de corpo, mente e espírito. Por isso, defendo que haja um cuidado em conjunto. No grupo de pesquisa, meu trabalho é principalmente relembrar que não se faz saúde coletiva falando só do individual. Suponhamos que a ideia do programa de saúde da família é ter o dia da mulher, do homem, da criança. Aparentemente é para a família, mas a família vai lá de maneira picada, não é cuidada junta. A minha inquietação é que, na comunidade, a família enfrenta dificuldades unida. É muito difícil levar um indígena para o hospital, porque vai sobrinho, irmão, tia, mãe, vai todo mundo, porque todos querem saber da saúde. Então, falar de saúde coletiva é olhar os diversos setores e vivências. Minha participação nesse grupo é como a gente pode colocar essa medicina, com olhar acadêmico, mas sem colocar nesse quadradinho que o mundo acadêmico pede. A cultura indígena é muito diversa, então a saúde vem de diversos olhares, com sonhos, benzimentos, orações, cantos, toques, chás, banhos. Não tem como ser uma coisa só fechada, ela cuida de corpo, mente e espírito, então o meu papel nesse grupo é relembrá-los, principalmente, que a saúde coletiva deve ser muito diversa.
Então, quando há alguma morte em uma comunidade indígena, vocês passam pelo processo de luto em conjunto?
Eu sempre trago uma reflexão de que não é que não doa quando alguém falece. Mas nós entendemos que esse corpo tem uma missão. Esse espírito vem nessa terra para fazer uma missão, e essa missão pode ter dias ou 100 anos. Quando a gente pensa nisso, dói, porque a gente vai se despedir de alguém que não vai encontrar mais. Mas também tem um momento de felicidade de ter convivido com alguém, mesmo que por pouco tempo. Talvez as pessoas falem tanto de luto fora [das comunidades indígenas] porque estão nas ruas, nos trabalhos, buscando dar uma vida melhor para aqueles que ficaram em casa. É diferente do sentido de comunidade. Pessoas comuns vivendo em unidade: esse é o sentido de comunidade. Na comunidade, quando morre alguém, tem sempre muita gente, mas não tem choro. São três momentos ruins: quando o corpo chega, que tem aquela comoção; quando cada um chega para visitar, dar o último adeus, as bênçãos da família; e quando é enterrado. No restante, o velório é sempre um bate-papo, uma lembrança das coisas boas que essa pessoa fez. Tem muita comida, muita risada, muito canto, rezas, aconchego, aproximação e acolhimento. É diferente de você só ir para dar um adeus a um corpo que está sem alma.
O Brasil tem centenas de etnias indígenas. Esses rituais são parecidos entre elas ou há muitas particularidades?
Tem muitas particularidades, e seria desrespeitoso eu falar dos rituais de outras etnias porque eu não sei. No meu povo, há o espaço da gente se encontrar e celebrar a passagem de alguém que virou um encantado. Encantado é o espírito de uma pessoa boa que viveu neste mundo e que mudou para outro plano, e essa pessoa vai, no mundo espiritual, nos encaminhar, nos ajudar, para a gente não fazer besteira. Mas nós, indígenas, nos consideramos parentes de povos de todas as etnias porque somos filhos da mesma mãe, a mãe Terra.
Os povos indígenas estão sob constante ameaça no Brasil. Pensando nesse sentimento de parentesco entre os povos, as constantes mortes atingem a todos? É quase como viver um processo de luto contínuo?
É muito complicado quando você se acostuma com algo que não é bom. Nós já estamos nos acostumando a perder pessoas no caminho. É como se a gente estivesse em uma constante guerra e a gente soubesse que no meio do caminho uma bomba vai cair e matar alguns dos nossos. Ficamos indignados e floresce ainda mais o ser guerreiro e guerreira que tem em cada um de nós a continuar na luta. Se você tivesse o dom de perguntar a cada uma dessas pessoas que perderam suas vidas na luta de proteção a seus territórios, a seus povos, eles diriam que morreriam mil vezes. Pensando na mãe Terra, nós temos a obrigação de cuidar desse espaço, então nós temos a obrigação de continuar fazendo nosso trabalho, até o último de nós gritarmos. Cada indígena tem uma missão, e a nossa missão mínima é cuidar desse solo. Então, viver esse luto já está meio que comum, mas isso a gente transformou em dizer: vai nos dar força para estar na caminhada.
Outro ponto é que desde pequenos a gente aprende a ser guerreiros e guerreiras. E guerreiro não é o melhor arqueiro, estrategista. Guerreiro é aquele que faz o que é necessário fazer. Então, se precisa enfrentar armas, facas, agressões em prol daquilo que é mais sagrado para nós, que é a vida dos meus, o bem-estar e o bem-viver dos meus, assim eu farei. E eu tenho certeza que se eu perder a minha vida fazendo isso, o choro do luto de amanhã não vai ser de “ele se foi e a gente não vai ver”. Vai ser: “quão bom foi lutar junto com ele”. A depender de onde nós estamos e como foi, o pensamento é justamente esse: o parente morreu, ficou no meio do caminho buscando o que é melhor para o seu povo, então seu espírito vem me visitar de noite. Talvez eu só fique livre mesmo de todas as maldades e problemas quando alguém estiver vivendo o meu luto.
Voltando um pouco à questão dos rituais indígenas relacionados à morte, eles foram fortemente afetados pelas medidas sanitárias adotadas para conter a disseminação do novo coronavírus. A falta desses rituais afetou os processos de luto?
Com certeza afeta. Não só a nós indígenas. Afetou a todo mundo. Na cultura não-indígena, é necessário dar adeus a um corpo. Se a gente tem um ritual que promove esse cuidado, esse acolhimento, acaba sendo muito difícil [ficar sem os rituais]. Mas, nós entendemos que mesmo não praticando nosso luto, nossos rituais, estamos cuidando do que é mais sagrado para nós, que é a vida do outro. Então, praticar um ritual ou deixar de praticá-lo é o de menos quando a vida é nosso maior direito.
Você trabalha com a Terapia Comunitária Integrativa, uma das Práticas Integrativas e Complementares aceitas pelo Sistema Único de Saúde. Como ela funciona na prática, sobretudo pensando em pacientes que estão vivenciando o luto?
A Terapia Comunitária Integrativa é a única prática complementar que é reconhecida pelo SUS que é brasileira, o restante a gente ainda valoriza algo que vem de fora. É como se no Brasil não tivessem seus saberes, então hoje a gente está trabalhando em prol de que tenha medicina indígena, quilombola, caiçara, ribeirinha nessas práticas. A terapia comunitária trabalha, em grupos, as emoções. A emoção é que nos une. Pessoas tristes querem acolhimento, escuta, sorrisos, abraços. Talvez uma mãe que perdeu seu filho a gente não possa substituir, e ela vai ficar triste, amargurada, machucada, principalmente se for violência [a razão da perda]. Nós compreendemos que a terapia tem que ser feita junto, em família. E se não há família, eu posso ser essa família pelo menos por alguns minutos, então a terapia traz a cultura como berço principal. Pode fazer orações, benzimentos, pode trazer sua música, sua dança, e tudo está junto e misturado em prol do cuidado. Cuidado e acolhimento é o berço principal da terapia comunitária.
Dimítria Coutinho é formada em jornalismo (USP) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)