Por José Moura Gonçalves Filho
Idiotia vem do grego clássico ίδιον (ídion), quando empregado para designar o que é próprio em oposição ao que é estrangeiro: daí que idiotia caracterize a incapacidade de viver o que não seja familiar e conhecido, caracteriza uma concentração de mim no que sou eu e meu grupo, caracteriza a ignorância de tudo que supera o meu grupo privado. Os idiotas só suportam a cidade enquanto for possível privatizá-la, ligá-la aos interesses e negócios da família ou do grupo com que estejam familiarizados.
Vivemos um momento exacerbado de invasão do espaço público por um tipo de mentalidade e um tipo de conduta que são defensivos e violentos: o Estado Brasileiro parece tomado por atores cujas motivações são banais e que tem estúpido medo de tudo que nos retira da banalidade.
Viver para o consumo, para a saúde, para o dinheiro, num sentido egótico ou gregário, eis a banalização da vida cotidiana: viver para o consumo e só o consumo que interessa ao eu ou a um eu ampliado (eu e meus filhos, minha família, meu grupo de condomínio, meus sócios); viver para a saúde e só a saúde que interessa ao eu ou ao eu ampliado; viver para o dinheiro e só o dinheiro que interessa ao eu ou ao eu ampliado. Era isso que os antigos atenienses já acusavam como idiotia: incapacidade de viver para o outro; apego ao eu ou ao eu familiar e abjeção pelo que é estranho. Idiotia vem do grego clássico ίδιον (ídion), quando empregado para designar o que é próprio em oposição ao que é estrangeiro: daí que idiotia caracterize a incapacidade de viver o que não seja familiar e conhecido, caracteriza uma concentração de mim no que sou eu e meu grupo, caracteriza a ignorância de tudo que supera o meu grupo privado. Os idiotas só suportam a cidade enquanto for possível privatizá-la, ligá-la aos interesses e negócios da família ou do grupo com que estejam familiarizados.
A idiotia representa um golpe contra as causas públicas: os idiotas tornam-se cúmplices no medo, no desprezo e na destruição de tudo que nos retira de nós mesmos e de casa, a arte por exemplo ou os serviços públicos. A arte supera os interesses de consumir ou usar e nos põe comovidos por obras ou desempenhos que não são feitos para comer ou gastar e que, pelo contrário, inclinam corpos e almas para o que é exterior, bonito e significativo. As obras de pintores, escultores e escritores ou os desempenhos de dançarinos, músicos e atores não são coisas ou ações que assimilamos, aprovando ou reprovando segundo nossas preferências ou caprichos, mas são coisas ou ações que testemunhamos à distância, capazes de alentar tanto quanto de instigar; não são para mim, mas retiram-me de mim mesmo, enriquecendo-me do que não sou eu. Os serviços públicos são ações que, ao superar operações comandadas por interesse privado, aparecem como ações por excelência: são iniciativas que brotam de agentes capazes de atinar com tudo aquilo de que os cidadãos precisam, homens e mulheres familiares e também estranhos. Os servidores públicos, no sentido profundo da palavra, são cidadãos capazes de trabalhar para a cidade, colaborar com outros cidadãos, praticando uma comunidade política: praticando a reunião de igual para igual entre pessoas muito diversas e de diversas competências, todas no mesmo direito de falar e tomar iniciativas, cada qual contribuindo segundo sua originalidade e segundo suas habilidades adquiridas.[1]
Como a arte e a comunidade, o que chamamos direitos humanos depende também de senso público e práticas de sentido público. Simone Weil, num texto seu que vale como uma verdadeira carta de direitos humanos, O enraizamento, afirma que a noção de dever é mais radical e determinante do que a noção de direito. A noção de dever é a noção primeira, de que então deriva secundariamente a noção de direito. Os humanos só têm direitos quando antes sentimos os direitos dos outros como um dever nosso. O dever é a obrigação sentida por uma pessoa a respeito de outra pessoa. E estar obrigado a alguém depende de sentir alguém como alguém. Isto pede liberdade e fica impedido na dominação: ninguém se sente obrigado aos subordinados; e os subordinados sentem-se forçados ao serviço dos seus patrões.
O dever ou a obrigação, princípio dos direitos humanos, é sentimento do outro como alguém e é realização de algum gesto de alguém para alguém. Por exemplo, dá-se de comer a quem tem fome. Mas não basta que esteja com fome para que sejamos inclinados a dar-lhe o que comer. Não é simplesmente porque está com fome que lhe trazemos o que comer: é alguém com fome. E trazer-lhe alimento é contato de alguém com alguém, uma conexão moral. Isto corresponde à mesma coisa que ao respeito. E o respeito, dizia Hannah Arendt, é uma forma de amizade que não depende de intimidade.
Quanto mais estranha a pessoa que ganhe nosso respeito, mais evidente o respeito. Lembro agora o que ouvimos de Emmanuel Lévinas. Ninguém é por força obrigado a respeitar ninguém. E o respeito motivado por parentesco ou por interesse de classe só pode ser uma forma muito superficial de respeito. O respeito profundo é desinteressado, não é vendido. O respeito é leve, não depende de esforço. O respeito não é uma conquista minha: é uma conquista do outro em mim. E sequer depende de esforço da pessoa respeitada: a pessoa respeitada não depende de comprar respeito pelo seu trabalho, competência, talentos ou virtudes; bastou surgir para já admitir respeito e ganhá-lo de graça.
Direitos humanos. Conceito tão controvertido, este, o de humanidade. Em que sentido o empregamos aqui? A humanidade dos humanos consiste num tipo de capacidade. Talvez nem se devesse chamá-la uma capacidade, uma vez que, menos que uma atividade, a humanidade, como o dever ou a obrigação ou o respeito, é também um sentimento sem esforço. Mais ainda: o dever, a obrigação, o respeito, são sinais mesmos de humanidade. A humanidade, tal como a entendemos com Lévinas, é precisamente o sentimento do outro como alguém e é o gesto de cumprimentar alguém, não deixando ninguém sem algum sinal de reconhecimento moral.
Vivemos sob modos diferentes dos modos de uma coisa mecânica ou de um organismo faminto e reprodutor. Vejamos.
A coisa mecânica não sente nada, não percebe e nem é afetada por nada senão pelo que parece empurrá-la como uma força, ao que ela reage com força contrária, automaticamente, sem que nenhuma reação tenha dependido de liberdade.
Já os organismos sentem tudo. E respondem ao que sentem. Os organismos não reagem simplesmente: são diferentes de coisa inerte e respondem ao outro segundo o modo como o outro é sentido. Os organismos sentem tudo, entretanto, tais como os pensamos aqui, tudo que sentem é sentido segundo os valores do que pode ser consumido como alimento, evitado ou recusado como perigo, visado como parceiro de reprodução. Um organismo aparece para comer e excretar, aparece para afirmar-se ou multiplicar-se. Não afirma o outro: a consideração dos outros pelo organismo é regulada pela necessidade que o organismo tem do outro para a subsistência e repetição do próprio organismo.
O que chamamos coisas nem sempre aparecem como coisas mecânicas. Os bichos, estes divergem ainda mais da figura de coisas mecânicas. E o que chamamos bichos, por sua vez, nem sempre aparecem como organismos. Ocorre que os humanos, estes divergem mais do que todos da figura de coisas mecânicas e de organismos. E o que mais caracteriza a humanidade dos humanos é sua disponibilidade para a superação de mecanismos e de metabolismos em favor de um contato centrífugo com o outro, um contato que fura a introversão e entrega-nos ao que é fora de nós e nos enriquece, enriquecendo-nos do que não somos e nunca seremos.
Os seres humanos têm necessidade de experiências centrífugas, comandadas não pela força, pelo consumo ou pelo interesse, e sim continuamente atraídas pelo que não sou eu e não somos nós. Estas experiências só vingam com a parceria de outros humanos e são indispensáveis para que a humanidade dos humanos ganhe realidade e sentido. Entre estas experiências, devemos assinalar: o desejo; a beleza; o rosto e a nudez; o riso; a brincadeira; a percepção das coisas como signos e não como coisas isoladas; a linguagem e a conversa; o tempo; o trabalho e a arte, a ação e a política, o dom e as trocas, o enraizamento na natureza e na cultura, a solidão e a loucura, o conhecimento objetivo. O direito a estas experiências não pode faltar na pauta dos direitos humanos.
Finalmente, uma última nota, muito brevemente. Simone Weil julgava que as necessidades humanas, protegidas por direitos humanos, apresentam-se aos pares: uma necessidade comunica‑se sempre com sua antagonista. Por exemplo, temos necessidade do nacional, mas também do internacional; necessidade de segurança, mas também de risco; ordem, mas também liberdade; propriedade privada e propriedade coletiva; diversidade e igualdade; passado e futuro; assim sucessivamente. E eis o ponto: dizia ela que uma necessidade humana só estará bem resolvida quando o seu atendimento não implicar condenação da necessidade oposta. Um caso: a diversidade e a igualdade de que temos necessidade são compatíveis quando a diversidade aparece como diversidade cultural e quando a igualdade aparece como igualdade política, contrariando o caso da diversidade confundida com a diferença entre superiores e inferiores (desigualdade política), o que implica também contrariar o caso da igualdade confundida com nivelamento de comportamentos e opiniões (limpeza étnica e censura).
A pesquisa a que me dedico desde 1988 tem como alvo o problema da humilhação social, uma modalidade de angústia ligada aos gestos ou palavras que indivíduos de um grupo dirigem a pessoas de um segundo grupo politicamente subordinado ao primeiro. Isto representa uma falta contra direitos humanos. Os apontamentos aqui feitos quiseram indicar uma oposição psicológica entre a atitude dos dominadores e a atitude dos cidadãos.
José Moura Gonçalves Filho é doutor em psicologia social pela USP (1999), onde é professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Seu tema persistente de investigação corresponde ao que tem designado como humilhação social ou humilhação política, que pode ser definida, entre outras formulações do pesquisador, como “persistente mal-estar público; o amargo sentimento de bens públicos como bens expulsivos; o pressentimento de ofensas; o embotamento do rosto; a invisibilidade pública ou a superexposição reificante; a perda de fiadores humanos no círculo do reconhecimento”. E-mail zecam@usp.br
Referências bibliográficas
Arendt, H. The human condition. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.
Weil, S. L’ enracinement: prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain. Paris: Gallimard, 1990.
Lévinas, E. Humanisme de l’autre homme. Paris: Le Livre de Poche, 1990.
[1] O pouco que dissemos sobre a arte e os serviços públicos poderíamos, em espírito semelhante, também dizer sobre as ciências e as religiões: estes fenômenos, como aqueles, são polarizados pelo outro. As ciências, quando perdem seu caráter desinteressado e comutam-se em instrumentos de Estado, Fábrica ou Mercado, tornam-se medíocres e perdem gradualmente sua objetividade ou veracidade. As religiões, quando introvertidas, a serviço da prosperidade dos devotos e nada além, tornam-se mesquinhas e sectárias, comutam-se paradoxalmente em religiões sem transcendência, sem deuses que nos superem, sem irmãos senão os de confraria e espelho.