Por Miguel Tayar Galante, Pablo Sebastián Fernandez, Raphael Nagao e Claudia Longo
Por que (e para que) converter CO2 em outras moléculas?
O dióxido de carbono (CO2) tem estado sob os holofotes nas últimas décadas!
Por um lado, o gás carbônico tem sido considerado o principal vilão responsável pelas mudanças climáticas. Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) correlacionam o crescente aumento da temperatura na Terra com o aumento da concentração deste gás de efeito estufa na atmosfera, que coincide também com o aumento da sua emissão em decorrência da ação antropogênica pela atividade industrial e uso de combustíveis fósseis[i]. O aumento na concentração de CO2 na atmosfera também provoca outros problemas ambientais, como a alteração do pH dos oceanos – o que poderia prejudicar todo o ecossistema marinho de maneira irreversível.
Por outro lado, essa pequena molécula linear constituída por carbono e oxigênio pode ser considerada um interessante “bloco de construção” para produção de álcoois, hidrocarbonetos e outras moléculas mais complexas de interesse industrial. Na Natureza, plantas e bactérias convertem o CO2 em estruturas sofisticadas por meio da fotossíntese; como cientistas, nosso sonho de consumo também inclui obter produtos de maior valor agregado a partir de CO2 e energia solar, uma fonte de energia limpa e abundante. Como as moléculas produzidas armazenam a energia solar através de ligações químicas, podemos então denominá-las “combustíveis solares”. A utilização do CO2 como matéria-prima para produção de substâncias químicas, além de diminuir sua emissão para a atmosfera, significaria também criar uma economia circular, constituindo um ciclo sustentável de produção industrial que não interferiria de maneira prejudicial no ciclo natural do carbono (Figura 1).
Figura 1. Economia circular carbono-neutra baseada na captura e conversão do CO2.
A ideia de uma tecnologia tão disruptiva certamente soará improvável para o leitor, já que a Natureza nos mostra cotidianamente que tudo aquilo que é orgânico espontaneamente tende a se transformar em gás carbônico (e não o contrário). O alimento que ingerimos sendo transformado em CO2 para nos fornecer energia, bem como o combustível sendo queimado em um motor, são classificados como “processos espontâneos” pela Termodinâmica[1]. Então, de fato, considerar isoladamente apenas a transformação de gás carbônico em moléculas mais complexas parece não concordar com os princípios da Termodinâmica, mas pode ser viabilizado quando associado a outros processos. Assim, o esforço de cientistas do mundo todo tem possibilitado concretizar o sonho de viabilizar a reação de redução de CO2 (em Inglês “CO2 reduction reaction”, CO2RR) utilizando diferentes estratégias, como a produção de biomassa pela criação de algas, processos termoquímicos, ou ainda a conversão eletroquímica/fotoeletroquímica. Essa última alternativa apresenta uma série de vantagens em relação às demais, por possibilitar atingir alta seletividade para um determinado produto da CO2RR, além de ser um processo limpo, seguro e possível de ser inteiramente propulsionado por energia renovável.
Redução eletroquímica de CO2
No processo de conversão eletroquímica do CO2 utiliza-se um eletrolisador, uma célula eletroquímica com um conjunto de eletrodos imersos em uma solução (o eletrólito). Aplica-se então uma diferença de potencial elétrico entre o ânodo e o cátodo, que supere a energia necessária para realizar o processo, resultando na passagem de corrente elétrica. Como ilustrado na Figura 2, a CO2RR ocorre na superfície do cátodo, que deve conter um eletrocatalisador (um material eletroativo para essa reação). Simultaneamente, uma reação de oxidação deve ocorrer no ânodo; em solução aquosa, ocorrerá a reação de quebra da molécula de H2O, com desprendimento de gás oxigênio (processo conhecido por OER – Oxygen Evolution Reaction). Porém, cabe aqui mencionar as limitações relacionadas com a baixa solubilidade do CO2 em água, e ainda, a quebra da molécula de água com desprendimento do gás hidrogênio (Hydrogen Evolution Reaction, HER) que pode ocorrer no catodo competindo com a CO2RR. Portanto, a etapa fundamental no processo de conversão do gás carbônico é a transferência de elétrons para a molécula de CO2 e sua eficiência depende de todos os processos mencionados. Porém, além desses fatores, em muitos casos os materiais eletroativos não suportam altas densidades de corrente por um período prolongado, o que resulta em problemas de estabilidade dos eletrodos.
Figura 2. Esquema ilustrativo de um eletrolisador para realização da CO2RR.
Para que essa tecnologia possa substituir as fontes fósseis e de fato contribua para uma sociedade mais sustentável, é necessário que a eficiência da produção dos “combustíveis” em eletrolisadores atinja níveis similares às tecnologias convencionais atualmente utilizadas na matriz fóssil de energia. Deve-se observar ainda que a CO2RR eletroquímica exige “gasto” de energia elétrica, que pode ser fornecida por uma bateria ou até mesmo pela rede de distribuição de energia elétrica. Na prática, isso significa muitas vezes que a energia necessária para que o processo ocorra é excessiva, tornando o uso da tecnologia economicamente inviável.
Redução fotoeletroquímica do CO2
Como poderíamos então converter CO2 a moléculas de interesse utilizando a energia solar, que é limpa, abundante e livre de tributação?!
Em uma primeira abordagem poderíamos nos inspirar na Natureza. Ao observar o crescimento de uma planta iluminada pela luz do Sol e irrigada pela água da chuva, podemos correlacionar o processo de fotossíntese que ocorre em algumas de suas células com nosso eletrolisador para conversão de CO2. Em um processo químico extremamente complexo, a energia solar é utilizada para consumir moléculas de água, gerando gás oxigênio e elétrons. E esses elétrons, combinados com o gás carbônico absorvido pelas folhas, resultam na formação de glicose, com posterior formação das mais variadas e complexas estruturas vegetais, como fibras de celulose e lignina, flores, frutos e sementes (Figura 3a). Podemos então nos inspirar na Natureza para promover a CO2RR por processos induzidos pela luz, i.e., fotoeletroquímicos. Porém, a Natureza não precisa atender a escalas e velocidades industriais; algumas espécies vegetais produzem apenas uma flor ao longo de toda a vida. Evidentemente, como os requisitos de “viabilidade econômica” da Natureza também diferem dos nossos, não nos parece interessante tentar reproduzir o maquinário biomolecular das espécies vegetais em um dispositivo compatível com nossas demandas socioeconômicas.
Uma outra abordagem para obter a redução fotoeletroquimica de CO2 consiste em utilizar eletrodos de materiais semicondutores em uma célula fotoeletroquímica (Photoelectrochemical cell – PEC). Embora os materiais semicondutores estejam muito presentes em painéis fotovoltaicos e em calculadoras propulsionadas por células solares, dispositivos envolvendo PEC ainda são pouco usuais em nossa vida cotidiana.
Quando um eletrodo semicondutor absorve a radiação solar ocorre um processo fotoinduzido de separação das cargas. Em um eletrodo semicondutor tipo-n[2], os elétrons migram para o circuito externo e “buracos” de carga positiva migram para a superfície do eletrodo, onde podem promover reações de oxidação, como a OER. Em eletrodos semicondutores tipo-p, porém, como são os elétrons que migram para superfície, são utilizados como fotocatodos para promover reações de redução, como a CO2RR. O desenvolvimento de semicondutores eficientes e estáveis no longo prazo ainda é o principal desafio para tornar a CO2RR fotoeletroquímica uma realidade, e exige um trabalho de pesquisa multidisciplinar no qual sejam somadas as competências de químicos, físicos e engenheiros. Ainda que o fotocatodo consiga gerar elétrons simplesmente através da absorção de luz solar, a energia luminosa supre apenas parcialmente a energia necessária para a ocorrência da CO2RR de maneira eficiente. Portanto, ainda se faz necessária a aplicação de uma diferença de potencial elétrico entre os eletrodos (ainda que em menor intensidade). Uma célula solar pode então executar rigorosamente a mesma função de uma bateria ou de um terminal de eletricidade, fornecendo energia elétrica para o funcionamento do dispositivo. Um esquema resumido desse conceito é mostrado na Figura 3b, onde o eletrolisador é constituído de uma célula solar, um fotoanodo e um fotocatodo. Assim, poderíamos promover a CO2RR de maneira totalmente sustentável, inteiramente baseada em energia solar!
Figura 3. Esquema ilustrativo do processo de fotossíntese em uma planta, resultando na formação de glicose e oxigênio a partir de gás carbônico e água (a) e sistema fotoeletroquímico inteiramente alimentado por energia solar, para conversão de gás carbônico via uma reação de redução (b).
Todos os conceitos envolvidos no funcionamento desse tipo de tecnologia já são relativamente bem compreendidos, porém, em uma situação real, há uma série de fatores complicadores. Entretanto, a proposta de um sistema capaz de transformar o gás carbônico em combustíveis, integralmente impulsionado pela energia solar, é extremamente inspirador. Consideramos que, como cientistas, estamos contribuindo para a construção um mundo mais sustentável e ambientalmente amigável, inspirados pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pelas Nações Unidas.[ii]
Nossos esforços e outras iniciativas de sucesso para conversão de CO2 em produtos químicos
Somos integrantes da Divisão de Portadores Densos de Energia (“Dense Energy Carriers – DEC) do Centro para Inovações em Novas Energias (CINE), um Centro de Pesquisa em Engenharias financiado pela Fapesp e Shell[iii]. A missão do CINE consiste em gerar conhecimento na área de energias renováveis e transferir tecnologias para o setor de negócios. Em nossas pesquisas, nos dedicamos a investigar materiais que possam atuar como fotocatalisadores, bem como os mecanismos envolvidos nas reações, para contribuir no entendimento e no desenvolvimento de processos sustentáveis para obtenção de combustíveis solares a partir de CO2 e H2O.
Outras iniciativas dedicadas a investigar maneiras sustentáveis para conversão de gás carbônico em combustíveis podem ser consultadas na lista de homepages a seguir. Algumas dessas iniciativas já atingiram escala piloto e estão próximas de lançarem tecnologias economicamente viáveis para a produção industrial de insumos químicos.
- https://solarhub.unc.edu/
- https://www.tudelft.nl/e-refinery/
- https://solarfuelshub.org/
- https://technology.nasa.gov/patent/TOP2-160#:~:text=NASA%20has%20developed%20a%20new,is%20powered%20by%20solar%20energy.
Miguel Tayar Galante é pesquisador de pós-doutorado no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE), vinculado ao Instituto de Química da Unicamp. Possui graduação, mestrado e doutorado em Química pela mesma universidade.
Pablo Sebastián Fernandez é professor da UNICAMP, onde lidera o Grupo de Eletroquímica de Campinas. Tem bacharelado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade de La Plata (Argentina). Também fez pós-doutorado na USP e na Universidade de Leiden (Holanda). Participa como pesquisador no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE).
Raphael Nagao é professor do Instituto de Química da Unicamp, onde coordena o Laboratório de Dinâmica Eletroquímica e Conversão de Energia. É secretário da divisão brasileira na The Electrochemical Society (ECS). Participa como pesquisador no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE).
Claudia Longo é professora associada no Instituto de Química da Unicamp, onde coordena o Grupo de Fotoeletroquímica e Conversão de Energia, liderando pesquisas sobre fotocatalisadores para aproveitamento da energia solar e aplicação na descontaminação da água e produção de combustíveis solares através da redução de CO2. Atua como pesquisadora no Centro de Inovação em Novas Energias (CINE).
Agradecimento
Os autores agradecem o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, processo número 2017/11986-5), a Shell e a importância estratégica do apoio da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), por meio do regulamento da Taxa de P&D.
[1] A Termodinâmica é o ramo da Ciência que discute aspectos de espontaneidade, reversibilidade e irreversibilidade em transformações da matéria e energia.
[2] Em semicondutores tipo-n, elétrons são os portadores de carga majoritários; em semicondutores tipo-p, os portadores majoritários são os buracos (carga positiva).
[i] Rafael Revadam, Júlia Ramos de Lima e Adriele Eunice da Silva “O que dizem os cientistas sobre mudanças climáticas”, Dossiê 212 – Crise Climática (Novembro de 2019). https://www.comciencia.br/o-que-dizem-os-cientistas-sobre-as-mudancas-climaticas/
[ii] Objetivos de desenvolvimento sustentável, Dossiê 208 (Junho de 2019). https://www.comciencia.br/o-que-e-agenda-2030-das-nacoes-unidas-e-quais-sao-os-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel/