Toda nudez será castigada? – Tecnologia, corpo e gênero na era das mídias digitais

Por Richard Miskolci

Aplicativos como o Grindr revelam-se não apenas tecnologias comunicacionais mas também de gênero, já que erotizam o homossexual que passa por hétero incentivando que seus usuários se apresentem de forma convencional. Assim, podem ser encarados como tecnologias contemporâneas de reprodução do gay másculo.

Há cerca de dez anos uma novidade tecnológica começaria a impactar nossas vidas: a câmera fotográfica passou a ser acoplada aos celulares. A possibilidade de fotografar o cotidiano, em poucos anos, se somaria à de compartilhar as imagens com amigos por mensagens ou com uma audiência mais ampla por meio da postagem em redes sociais. A câmera no celular logo se duplicou: uma atrás para fotografar aos outros e uma na frente para fotografar a si mesmo. Nascia a selfie, o retrato de nossa era.

O giro da câmera para si mesmo pode ser usado como marco para sintetizar a quebra da hegemonia das mídias de massa, que consolidou a disseminação da internet comercial iniciada em meados da década de 1990. Se na mídia de massa, marcada predominantemente pela comunicação vertical do broadcasting, os espectadores eram incitados a se identificarem com ídolos do cinema e da televisão, na em rede – moldada pela horizontalidade dos contatos e pelo que Manuel Castells define como a autocomunicação de massa – os usuários passaram a viver como protagonistas de suas próprias vidas.

Redes sociais como Facebook, Instagram ou YouTube incitaram seus usuários a aproximarem-se da experiência que anteriormente era disponível apenas a seus antigos ídolos. Por meio da criação e postagem de fotos e vídeos, as pessoas passam a performar a si mesmos para sua audiência particular, emulando no cotidiano as estratégias de publicidade de uma espécie de star system ampliado. Os motivos nas fotos, seus enquadramentos e poses não deixam dúvida sobre a inspiração cinematográfica, televisiva e até publicitária nas imagens que se multiplicaram exponencialmente em perfis e canais de usuários comuns.

O advento da internet não nos afastou das mídias de massa e talvez até tenha ampliado seu papel em nossas vidas. A principal diferença é que não somos mais apenas expostos ao cinema e à televisão, mas agora também nos expomos nas redes sociais incorporando subjetiva e corporalmente essas tecnologias. A expectativa de exposição midiática de si mesmo incita ao uso de filtros, ferramentas ou aplicativos que “melhoram” a imagem, permitindo apresentar pele mais lisa, sem marcas de cansaço, dentes mais brancos e olhos brilhantes. Também incentiva a adoção de diferentes técnicas corporais que vão das dietas aos exercícios, consumo de roupas, cosméticos e até cirurgias estéticas. Portanto, em rede nosso corpo ganhou evidência na mesma medida em que fomos convidados a trabalhá-lo para a exibição.

A disseminação das câmeras nos celulares não chegou sem reações contrárias: 2009 foi o ano de um verdadeiro pânico moral por causa da prática que os norte-americanos batizaram de sexting – o ato de enviar mensagens privadas com fotos íntimas – e que, recentemente, popularizou-se no Brasil com a expressão “manda nudes”. O pânico sexual americano tinha origens diversas, como o histórico temor dos pais perderem o controle sobre a sexualidade dos filhos, mas tudo indica que foi o medo das empresas produtoras de pornografia de serem destruídas pela criação e distribuição amadora que moldou a legislação californiana ainda vigente – e que impacta toda a rede mundo afora – sobre o que é possível mostrar e o que se deve esconder nas postagens online.

Longe de ser um terreno livre para a expressão sexual, a rede é regida por normas legais assim como por convenções culturais sobre sexualidade e gênero. O marco legal de 2009 foi ao encontro do interesse moral em manter a rede com uma fachada livre de nus, assim como dos interesses comerciais das lucrativas empresas que produzem a chamada “pornografia profissional”. A rede tendeu a manter convenções de gênero, especialmente nas plataformas de um de seus segmentos mais lucrativos, o voltado para a busca de parceiros amorosos e sexuais que tem no aplicativo Tinder sua expressão mais popular em nossos dias.

Sexualidade e gênero nos aplicativos de busca de parceiros
Homossexuais continuam a enfrentar mais obstáculos para a expressão do desejo no espaço público, daí terem sido os primeiros a fazerem uso da tecnologia em busca de parceiros sexuais ou amorosos. Entre eles, a disseminação das câmeras não apenas fez explodir a criação e distribuição de vídeos ou imagens íntimas produzidas pelos próprios usuários como também borrou a fronteira entre a vida sexual e a pornografia. Algo perceptível na forma como usuários de aplicativos de busca de parceiros do mesmo sexo como Grindr, Hornet ou Scruff são convidados a se autoidentificarem a partir de tribos que são, também, segmentos da pornografia profissional: ursos, musculosos, papais, jovens (twinkies), entre outros, definem – ao mesmo tempo – tipos corporais e expressões desejantes.

Nenhum segmento é mais abrangente e demandado do que o discreto, ou seja, o homossexual que não é reconhecido como tal no espaço público. Desde a revolução sexual que o homem másculo tornou-se o gay modelar, entre outras razões por permitir a circulação com maior segurança no espaço público. Em meio a experiências cotidianas de discriminação e violência não seria de se estranhar que homossexuais buscassem se apresentar socialmente de forma que não fossem reconhecidos como tais. Como mostrou Martin P. Levine em seu estudo clássico sobre o tema, o gay macho – ou o macho man cantado pelo grupo Village People na década de 1970 – revelou-se o clone gay do homem heterossexual.

Criados em centros metropolitanos da América do Norte como Los Angeles e São Francisco, os aplicativos de busca de parceiros do mesmo sexo funcionam como uma espécie contemporânea de radar gay. Permitem visualizar em sua interface os parceiros em potencial à volta do usuário, revelando o desejo homossexual invisibilizado estrategicamente por aqueles que – fugindo ao preconceito – mantêm-se em uma presumida heterossexualidade. Quem usa os aplicativos busca encontrar alguém no espaço público, portanto tende a priorizar o “discreto” para maximizar a segurança.

Dessa forma, os aplicativos revelam-se não apenas tecnologias comunicacionais mas também de gênero, já que erotizam o homossexual que passa por hétero incentivando que seus usuários se apresentem de forma convencional. Em outras palavras, os aplicativos podem ser encarados como tecnologias contemporâneas de clonagem ou reprodução do gay másculo. Ao criar um perfil em um aplicativo, o usuário é induzido pela estrutura da plataforma a se apresentar de forma desejável segundo as convenções de gênero historicamente sedimentadas em seu segmento sexual e disseminadas desde ao menos a década de 1970 por meio da publicidade, do cinema e, inclusive, da pornografia.

Desde o período mais mortal da epidemia de HIV/aids (1981-1996), ou seja, quando não havia tratamento adequado e eficiente, somou-se à demanda por discrição a de ser “fora do meio”. Em meio ao pânico sexual, acreditava-se que homossexuais que não frequentassem os locais de socialização gay teriam menor probabilidade de estarem contaminados pelo vírus. Assim, desde a disseminação comercial da internet em 1995, a busca online passou a ser regida pelo ideal do “discreto e fora do meio”, em geral corporificado no homem musculoso ou “sarado” (leia-se supostamente saudável ou sem aids).

Tecnologias comunicacionais contemporâneas trazem ao presente e disseminam os ideais vigentes nas comunidades homossexuais dos grandes centros urbanos, especialmente da pátria da produção midiática: os Estados Unidos da América. Dessa forma, os antigos bate-papos e sites de busca de parceiros, como os atuais aplicativos de busca de parceiros, revelam-se verdadeiras tecnologias de gênero assentadas em práticas como a musculação e esportes, o uso de suplementos, dietas e até cirurgias estéticas. Daí a popularidade das fotos de usuários em academias ou praticando esportes em boa parte dos perfis de homens nesses aplicativos.

O corpo em rede
Ao contrário das primeiras reflexões sobre a internet, estudos feitos na última década provaram que a rede é altamente corporificada. Ao criarem perfis para redes sociais ou aplicativos de busca de parceiros, as pessoas são levadas à autoperitagem, a uma verdadeira metrificação de si que leva da autodescrição à avaliação de sua relação peso-altura, tônus muscular e outros sinais de conformação/aproximação de padrões midiáticos de beleza. Trata-se menos de um convite à reflexividade e mais de um treinamento para a autoexposição, segundo valores socialmente dominantes.

Assim como já ocorria offline, online homens homossexuais e mulheres heterossexuais são mais incitados à apresentação modelar já que são historicamente mais expostos à avaliação de sua apresentação pública. Nos aplicativos de paquera homossexual, essa tendência levou os corpos dos usuários comuns a se aproximarem dos de profissionais do sexo de tal forma que já é usual fotos de torsos musculosos ostentarem a legenda “não sou garoto de programa”. A borragem entre vida sexual e pornografia estendeu-se para a fronteira entre o sexo comercial e o não-pago porque a linguagem comum nos aplicativos de paquera é a do mercado e, mais claramente, de um competitivo mercado sexual e amoroso moldado por imagens ideais.

Quanto mais modelares, mais os corpos tendem a ser expostos tanto em discretas fotos de perfil como em nudes enviados como mensagens privadas. A exposição dos corpos, portanto, realiza-se por graus e precede o encontro face a face. Nos termos de Eva Illouz, o sexual antecede as afinidades ou o amor. Muitos são os sociólogos a afirmarem que vivemos na era da sexualidade recreativa, o que deve ser ponderado como mais comum nas novas classes-médias profissionais e ainda mais disponível aos homens do que às mulheres.

Illouz afirma que a maior autonomia feminina gerou a reação masculina da adesão à sexualidade serial como estratégia de preservação de seu status dominador, frequentemente criando um descompasso entre as expectativas de mulheres e homens heterossexuais sobre a vida amorosa em nossos dias. Minhas pesquisas nos últimos anos mostram que o dilema entre o compromisso e a sexualidade serial também se estende às homossexualidades, porém frequentemente associado aos obstáculos históricos à aceitação das relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo.

Efeitos da revolução sexual como o aumento do número de parceiros e, sobretudo, do papel da sexualidade como medida do reconhecimento nas classes médias profissionais, abriram um terreno profícuo para a exploração comercial da paquera por meios contemporâneos como os aplicativos. Nessas plataformas vigora um regime de visibilidade que premia a juventude e os corpos em forma como os aptos ao amor e ao sexo. Nos limites do obsceno mantêm a idade avançada e a gordura corporal, mas também o gênero inadequado segundo ideais modelares frequentemente inatingíveis.

A despeito dos enquadramentos e modelos, pesquisas com diferentes segmentos sociais mostram que os usuários fazem uso criativo das tecnologias negociando suas diferenças no contínuo on/offline. O que leva as pessoas a usarem aplicativos origina-se, e tem como objetivo, a realização pessoal. Assim, mesmo no regime de visibilidade midiática das plataformas, encontram brechas em formas alternativas de nudez que não a dos corpos sexualizados por um mercado pornoficado dos afetos. Partem da paquera online almejando o encontro face a face, no qual, ao menos para alguns, a nudez dos olhos ainda pode ser mais excitante do que a do sexo.

Richard Miskolci é professor associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do CNPq. Coordena o Quereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Gênero e Sexualidade (www.ufscar.br/quereres) e é investigador associado ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp.