Por Fernanda Gallo
O debate sobre as relações de aproximação e distanciamento entre a escrita ficcional e a escrita histórica aparece, no mínimo, desde o caderno de anotações de Aristóteles intitulado “Poética”e escrito entre os anos 334 a.C. e 330 a.C., no qual o historiador é designado como um relator do que aconteceu e o poeta do que poderia acontecer, segundo a “verosimilhança e a necessidade” vigente naquele presente momento. De todo modo, ao menos até o séc. XVIII – período em que se desenvolveu uma concepção de história enquanto progresso contínuo – o fazer literário e o histórico eram entendidos como práticas narrativas próximas, sendo a disciplinarização da ciência no século XIX (e a delimitação entre o fato e a ficção num contexto de formação dos Estados-nação europeus e da ascensão da burguesia enquanto classe dominante) o marco de separação entre as duas formas de narrar.
A partir de então, vigorou um modelo historiográfico preocupado com a construção de histórias oficiais de grandes eventos, momento em que parte dos romances históricos auxiliaram na consolidação dos projetos nacionais calcados na ideia de um passado comum que identificasse os habitantes de uma determinada nação. Ao mesmo tempo, com o imperialismo chancelado pela Conferência de Berlim (1885) que resultou na invasão territorial no continente africano, o desenvolvimento de uma literatura de cunho colonial (juntamente como os estudos antropológicos e historiográficos embasados nas teorias raciais e eugenistas em voga) contribuíram para o projeto ideológico de exploração dos povos, ao descrevê-los de forma exótica e primitiva, num esforço de justificar as ações ditas civilizatórias. Um dos mais conhecidos exemplos nesse sentido seria o romance Heart of darkness de Joseph Conrad (1857-1924), publicado originalmente em 1899.
Importa lembrar que ao seguir uma visão histórica hegeliana sobre o continente africano, a produção literária colonial parece ter desconsiderado a presença e a circulação da escrita alfabética em África que, aliás, é muito anterior à presença europeia e se desenvolveu a partir da disseminação do islã e da língua árabe desde o século VIII. Além disso, uma série de fontes documentais indicam que os europeus se correspondiam com autoridades locais em línguas eurófonas – conforme evidencia a troca de correspondências em português entre o manicongo Nzinga Mbembe (1456-1542/1543), batizado como Afonso I e os reis portugueses no século XV – ou em alfabeto árabe, a exemplo da carta do “rei” de Quiloa anexada a um ofício em 17 de maio de 1794 e endereçada ao português Diogo de Souza, então capitão-mor e governador de Moçambique. A carta analisada por Matheus Servá e Roquinaldo Roque (2023) está escrita em língua kiswahili e nela o rei de Quiloa alega o descumprimento de direitos acordados com o governador português anterior. A reinvindicação escrita teria sido acatada pelo governador que mandou destravar as alfândegas na Ilha de Moçambique e fazer passar as embarcações da maior autoridade de Quíloa.
O exemplo serve para mostrar que embora houvesse fontes documentais dessa natureza (e de tantas outras), a ideologia colonial permeou a escrita literária (e a histórica) ao menos até meados do século XX, produzindo uma imaginação reducionista sobre os povos e territórios africanos como desprovidos de história. Ou seja, podemos perceber que tanto a produção literária quanto a histórica estão sujeitas aos paradigmas científicos e as noções de tempo disseminadas no seu próprio contexto. Embora reclamando diferentes status de autoridade, ambas seriam formas de narração atreladas a seus próprios “regimes de verdade”, conforme destacou Michel Foucault (1977).
Mas os regimes de verdade de ambos os registros são constantemente postos em causa e, portanto, se as línguas coloniais como o francês, o inglês e o português foram empregadas na prática colonizadora como forma de separar os categorizados africanos assimilados à cultura europeia dos indígenas e seus “usos e costumes”, as mesmas línguas foram estrategicamente aproveitadas por escritores africanos para reivindicar uma estética local e para lutar pela autodeterminação de seus territórios. O movimento literário da negritude, proposto pelo senegalês Léopold Sédar Segnhor, pelo martinicano Aimé Césaire e pelo franco-guianense Léon-Gontran Damas nos anos 1930, é uma iniciativa pioneira ao reposicionar o termo pejorativo négre enquanto um valor positivo de identificação cultural entre os povos negros.
Ao mesmo tempo, e de forma gradativa, o modelo historiográfico positivista que buscou registrar a “história tal como aconteceu” foi sendo questionado, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando a ideia de progresso histórico é colocada em xeque e a “história a contrapelo”, como definiu Walter Benjamim, passa a ser perseguida. Soma-se a isso, a produção historiográfica feita por africanos como, por exemplo, Cheik Anta Diop em seus estudos sobre o Egito que contribuiu para o definitivo questionamento da teoria histórica de Hegel sobre a inexistência da história no continente africano.
Nos anos 1970, o estatuto de “verdade” cultivado pela escrita histórica se desmancha e o teor estético da linguagem usada pelo historiador no ato da escrita passa a ser encarado como passível de subjetividade. Com isso, os limites entre realidade e ficção são rasurados e a história e a literatura passam a ser pensadas enquanto elaborações narrativas de experiências vividas e/ou imaginadas. Contudo, é válido ressaltar que as convenções da escrita empregada na literatura – com seus diálogos, monólogos, discurso indireto, experimentação linguística e descompromisso com a verdade etc., – são diferentes da historiografia, pautada pela necessidade de indicar as fontes e o compromisso com a verdade dos fatos, além de textos geralmente escritos em terceira pessoa com linguagem científica repleta de referências e rodapés (Schurmans e Wieser, 2022).
Partindo desse cenário de mudança de paradigma, aqui muito brevemente descrito, a escrita da história no romance africano pós-colonial pode ser encarada como, nas palavras de Elena Brugioni: “um dispositivo estético, político e conceitual capaz de redefinir a relação entre espaço, história, imaginação e política” (Brugioni, 2019, p.29). De fato, podemos observar o modo pelo qual diversos textos ficcionais de autoria africana vêm contribuindo para tensionar as narrativas históricas de natureza diversa sobre a complexa condicional pós-colonial. Para tanto, destaco dois acontecimentos do passado que são abordados através da literatura de autoria africana e nos oferecem uma pluralidade de perspectivas sobre sua dimensão histórica desafiando, portanto, a historiografia hegemônica elaborada em torno deles.
O primeiro dos eventos é a Primeira Guerra Mundial cujo imaginário é fortemente atrelado ao contexto europeu, ainda que o conflito tenha se desenrolado em diferentes geografias. Para se ter ideia, estima-se que cerca de um milhão de soldados africanos participaram das operações militares e que um número ainda maior de homens, mulheres e crianças foi recrutado para servirem como transportadores e carregadores no conflito que abarcou as colônias da então África Oriental Alemã e seus vizinhos, conforme destacado no romance O olho de Hertzog (2009) do moçambicano João Paulo Borges Coelho. Vencedor do prêmio Leya (2009), o romance amplia a geopolítica sobre o conflito, incluindo na trama personagens reais e ficcionais que transitam entre territórios como a então União Sul-Africana (no contexto de ascensão do Partido Nacional Afrikaner) a então Tanganyka (com destaque para a atuação do general alemão Lettow-Vorbeck e sua passagem pelo norte de Moçambique); a então Lourenço Marques (seu cosmopolitismo, por um lado, e a denúncia da exploração do trabalho indígena, por outro, mediados pelo jornalista João Albasini) além de passagens que evocam a Rússia revolucionária, a Alemanha totalitarista e até mesmo a efervescência artística na Áustria, por meio de personagens como Valerie Neuzil, musa do pintor Egon Schiele.
Evocando uma geografia diversificada, o autor sugere uma espécie de historiografia transnacional e alternativa da grande guerra que ao se descentrar da Europa engloba as tramas políticas locais e regionais como parte importante da história mundial. Além disso, os personagens que dizem meias verdades, apresentam nomes falsos e trajetórias duplas, oferecem ao leitor mais perguntas do que respostas absolutas. Nesse ponto, a “metaficção historiográfica” discutida por Linda Hutcheon (1991) nos ajuda a pensar o modo pelo qual o discurso histórico é pensado em relação ao literário através da intertextualidade e das estratégias narrativas como o uso de ironia, metáforas, sátira, para tornar problemático aquilo que era dado como certeza tanto pelo historiografia quanto pela literatura.
O jogo de verossimilhança entre o referente e o real no contexto de profundas mudanças históricas como as independências nacionais também estão presentes na obra de diferentes autores africanos. Portanto, o segundo exemplo se refere a obras que questionam a construção do projeto nacional no pós-independência e que, em geral, é apoiado numa narrativa heroica que se pretende única. Nesse caso, podemos citar o projeto literário do angolano Pepetela desde obras como a conhecida Mayombe, escrita durante o processo de luta de libertação nos anos 1970 e publicada apenas em 1981. Focando na interação entre os participantes da luta nas matas de mayombe, a obra discorre sobre a esperança e aponta as tensões de várias ordens, incluindo as clivagens no seio do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), sugerindo ao leitor algumas dúvidas sobre a utopia libertária.
Já o romance Geração da utopia, publicado originalmente em 1992, como o título indica, faz uma crítica frontal ao projeto nacional elaborado pela MPLA, desde a euforia dos intelectuais na Casa dos Estudantes do Império passando pela luta de libertação até à guerra civil e ao capitalismo predatório cujo tema será aprofundado na obra Os predadores do mesmo autor. Tais obras se inserem no campo de batalha entre a história oficial e a memória pública lançando um instigante debate sobre a ideia de nação. Também apontam o desencanto com as promessas da independência e os desafios da democratização, da justiça social e do futuro que se apresenta como incerto. Com isso, personagens e tramas parecem diluir o passado no presente e a ficção na realidade, fazendo da literatura um espaço acolhedor para testemunhos e memórias ignoradas pelos atuais projetos de poder.
Em suma, podemos afirmar que a produção literária de autoria africana contribui, e muito, para alargarmos o debate sobre temas silenciados – a guerra do Biafra (1967-1970) abordado por Chimamanda Adichie em Meio Sol Amarelo (2017) é exemplar nesse sentido – e para nos aproximarmos de forma crítica e consistente dos temas que integram a complexa situação pós-colonial, experenciada tanto pelos países africanos quanto por outras periferias e semi-periferias do sistema-mundial.
Fernanda Bianca Gonçalves Gallo possui bacharelado e licenciatura em História (UDESC), é mestre em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) e doutora em Antropologia Social (Unicamp). Tem estágio de pós-doutorado em Teoria e História Literária (Unicamp) onde desenvolveu pesquisa sobre os escritores moçambicanos Ungulani Ba Ka Khosa e João Paulo Borges Coelho. Realizou estágio de pesquisa no exterior, junto ao Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento (CEsA / Universidade de Lisboa, 2022). Integra o Kaliban – Centro de Pesquisa em Estudos Pós-Coloniais e Literatura Mundial (Unicamp) e a Associação Brasileira de Estudos Africanos (Abe-África). É organizadora do livro Breve Dicionário das Literaturas Africanas (2022) e co-organizadora do livro A obra literária de João Paulo Borges Coelho: Panorama crítico (2022).
Referências
ADICHIE, Chimamanda. Meio Sol Amarelo. São Paulo: Companhia das letras, 2017.
ARISTÓTELES. Poética. 3. ed. Trad. e notas Ana Maria Valente. Lisboa, Fundação Gulbekian, 2008.
BORGES COELHO, Joao Paulo. O olho de Hertzog. Maputo, Ndjira, 2009.
BRUGIONI, Elena. Literaturas africanas comparadas: paradigmas críticos e representações em contraponto. Campinas, Editora da Unicamp, 2019.
CONRAD, Joseph. Coração das trevas. Trad. Ricardo Giassetti. São Paulo, Sesc/ Instituto Mojo, 2019 [1899] E-book.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos VII: Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
SCHURMANS, Fabrice e WIESER, Doris. História e ficção nas literaturas da África Subsaariana: Uma introdução crítica aos seus regimes de verdade. Mulemba, Rio de Janeiro: UFRJ, v.14, n. 26, pp.13 -30, jan.-jun. 2022.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro, Imago, 1991.
PEREIRA, Matheus Serva e ROQUE, Ricardo. Arquivo, literacia e resistência: notas sobre manuscritos “nativos” na série Moçambique do fundo do Conselho Ultramarino do Arquivo Histórico Ultramarino. ABE África – Revista da Associação Brasileira de Estudos Africanos, v.7, n.7, 2022, pp.65-97.
PEPETELA. Mayombe. Lisboa: Dom Quixote, 2009
PEPETELA. A geração da utopia. São Paulo: LeYa, 2013.