Tempo e poesia

Por Carlos Vogt

Passa o tempo
o tempo passa
enquanto
o tempo não passa
vou fazendo
passatempo

Uma apostila do tempo em poemas escritos e publicados ao longo do tempo!

Lição de geometria
O que me espanta
no tempo
é
a tranquilidade dolorosa
dos corpos
o enternecimento horizontal
do entardecer
(1982)

Brevidade
O tempo é breve
para consumi-lo
séculos de consumação
(1984)

Segunda lição de geometria
Deontológico
Espanta-me o tempo
no compromisso que ele tem comigo:
em mim
a obrigação do espanto
no tempo
o que há de ser
perdido
(1984)

Tautologia
Para Carlos Rodrigues Brandão

Feito de ausências
no contato último do corpo que as queima
e destila
o poema carrega entre aspas as coisas
que estão entre palavras
palavras coisas poema escorrem no tempo
que corre no inverno
do dizer que é longo
o mostrar que é curto
o tempo
animal ferido mas vingativo
nega no próprio destino a consumação vegetal
do fato:
apodrecer num prato

o intestino das palavras
(sendo as coisas fora de si)
recobre a pele das formas
(sendo as palavras dentro de mim)
todas as coisas comungam no ponto de
modificar-se
estáticas
na ogiva inchada das promessas de explosão
os limites de qualquer mudança
dados pelas fronteiras desta imobilidade
ancestral e futura:
a da morte
por isso tudo está em tudo como cada coisa
em si mesma
caminha para a recusa dessa objetivação
simplificadora
recuos e projeções atualizam-se em diferenças
simultâneas

no homem
estando em seu corpo na forma do outro
dosada no tempo das coisas na história
a palavra é o outro do homem nas coisas
o poema é atento às coisas no tempo
e o tempo é o tempo é o tempo é o tempo
(1984)

Os caçadores de vagalumes
Eu nunca cacei cometas,
nunca nenhum saci cavalgou na garupa dos cavalos em que nunca viajei,
jamais dobrei a noite das esquinas de Sales Oliveira, sem que tivesse medo de topar
com a ausência brusca da cabeça escura da mula-sem-cabeça.
Eu fui, isso sim, um grande caçador de vagalumes,
com vidros cheios de lanternas vivas, iscas de tiques e estalos de pescoço,
com tições em brasa riscando a escuridão do Triângulo,
que abastecia de lenha as máquinas da Mogiana.
Ali, onde meu pai, menino, jura ter visto aparições temíveis,
vi apenas o meu e o medo de outros meninos com medo das aparições.
Mas o cometa Halley, este sim, eu vi, quando era menino,
cortar de silêncio e espetáculo o poente do céu da infância de meu velho pai;
vi também muitas outras coisas com os olhos adultos e as mãos atentas de seleiro,
que cortavam o couro e teciam arreios para os colonos e fazendeiros dos cafezais,
com estes olhos e aquelas mãos que cortavam o couro e teciam enredos.

Por Sales Oliveira, passaram muitos cometas,
desses mais triviais que o tempo deixou sem uso e superstição,
cometas-vendedores, de roupas, de joias, de supérfluos, de bijouterias,
que pousavam na pensão de Dona Itália;
mais frequentes que os do céu, mais transitórios na terra,
fortes, contudo, na regularidade e cíclicos na invenção,
cheios de histórias e fantasias, de mundos estrangeiros, de prosopopeias,
feitos não só de silêncios luminosos, mas de lâminas sonoras de persuasão.

Quando o cometa Halley aparecer de novo e meu pai tiver completos seus oitenta [anos,
já não serei eu mesmo, sem ter sido outro,
não estarei em Sales, tampouco a selaria, a Mogiana, os colonos, os cafezais,
não haverá cometas, desses sem uso de compra e venda, por desusados;
juntos estaremos a olhar as terras que olham retas o risco branco que corta a noite,
a mesma noite em que, meninos, seremos velhos, perto e distantes na solidão.
(1985)

Afresco
No banco de jardim
da praça Santa Rita de Cássia
em Sales Oliveira
sentados meu pai e eu
– ambos ausentes: um pela morte
outro pela vida –
resolvemos lembrar
as velhas sombras
que abrigam
os esquecidos
(1991)

Sofisma
O tempo nos perderá a todos!
Não que isto seja uma verdade comum
a todas as idades,
mas que nos perderemos no tempo,
isso é verdade
(1991)

Jardins
Em frente à minha casa tem um pequeno jardim de rosas;
é o jardim da casa, mas antes o jardim de meu velho pai,
e sendo dele, porque ele o fez com zelo,
tem em cada flor a nostalgia de suas mãos de pai e de artesão.

No que me cabe é meu, por ser da casa,
que por ser minha na circunstância casual da posse e da ansiedade,
me deixa estar ali sentado nessa varanda de luz, ocaso e generosidade
a ruminarmos juntos e desdentados – velho um, outro criança –
a lembrança neutra de vegetais no vaso.
(1991)

Verdades
O fato é que o tempo
embora linear
se repete em círculos
se é de fato assim
que o circo pode desenhar o tempo
(1991)

Fogos e artifícios
Áspera quando as chuvas de setembro
caem chuvas de verão
lânguida quando as terras rasas dos cafezais
queimam no horizonte o nexo das paisagens
de que lembro
nos olhos na mente no coração
nos dedos que não as tocam
no ventre

Perdi a fogueira de São João na Fazenda Resfriado
por um jogo de futebol no campo da Associação Atlética Salense
Nem era eu que jogava por iniciativa minha própria
era o entusiasmo o time o folguedo a amizade
o companheirismo era meu irmão
que calculou mal o tempo da passagem do Ford Bigode
que não nos levou
o Ford passou a fogueira queimou o tempo passou

Quando cheguei no dia seguinte de charrete
cedo só
as cinzas quentes da alegria de ontem
menino fiquei parado olhando a lembrança
que tenho do que perco
fiz xixi no que sobrou da festa
e fui brincar com os filhos do campeiro no curral de vacas
e bezerros obedientes à sua e à minha solidão
(1997)

Segundo domingo depois do primeiro
Sabedoria cristalizada de provérbio:
domingo sem missa
segunda sem preguiça
não há

Em Sales Oliveira
de segunda à segunda sem solução de continuidade
o comércio abria para o descanso trabalhoso
dos colonos nas trocas nas compras nas vendas
nos sábados antecipados de monotonia
na escuridão silenciosa e trôpega dos caminhos
de volta às fazendas

Dia do Senhor
domingo de todos os santos
sexta da paixão quinta-feira santa
sábado de aleluia
domingo de ilusão

Visto da selaria onde meu pai e meu tio
– depois de meu avô –
atazanavam o couro e a ferrugem
a efemeridade férrea dos arreios
o domingo era hoje nos olhos do menino
o tempo domador do poeta adulto
a fera vida do poeta moço
o padrasto aflito do escritor astuto

Porque é domingo novo
– e não de novo sábado segunda quinta
sábado outra vez –
touros elegantes estilhaçam aquários de metáforas
cheios de marfins

Ninguém atende se o telefone toca
e se não toca
fica a hipótese de que seja bom e natural assim:
a simplicidade da vida
a vida simples patética
num átimo
complexa
(1997)

Eco-diálogos
Como aprofundar conselhos?
Pelos, pelos, pelos!

Como conseguir a volta?
Toca, toca, toca!

Como revirar o oco?
Pouco, pouco, pouco!

Como suspender o pêndulo?
Êmulo, êmulo, êmulo!

Como dirimir as dúvidas?
Uvas, uvas, uvas!

Como costurar o vácuo?
Árduo, árduo, árduo!

Como triturar a mágoa?
Água, água, água!

Como cozinhar o tempo?
Lento, lento, lento!
(2002)

Milênio
Passa 2000
passam dois mil e mais
no passatempo do passa-passa
passa quem passa e quem fica
passa só quem não passa quem
não fica atrás.
(2002)

Brejos das almas
O passado não é virtual,
não tem segunda via,
é maduro de indiferença
salvo no lero-lero da prosa
e na vertigem mentirosa da poesia.
Aí sim é sempre igual:
Ainda bem, cantam os sapos no alagado,
e outros, no raso seco da monotonia,
ainda mal, ainda mal, ainda mal.

A não ser nas fotos retocadas por Stalin,
como aquela em que Trotsky some
do palanque de Lenin, ou esta outra em
que o acompanhante é tragado pela paisagem aquática
do cenário e desaparece.
Diz-se, assim, que Stalin reinventava o
passado, por impropriedade, é claro do
dizer melhor seria que ele
inventava o passado simplesmente
porque o passado não pode ser inventado.
(2002)

Cantos
A natureza em si, ou a natureza
para a consciência que se tem dela,
O movimento na substância das coisas,
As coisas no movimento substantivo das formas,
As formas da consciência na percepção do fenômeno observável,
O observador como parte da observação, no observado,
O conhecimento aos saltos
luminosos de massas e energias indesnudáveis,
Mas nuas no experimento fundador,
A orquestração de fórmulas perfeitas, acabadas, consistentes,
Belas em sua verdade abstratamente imperativa,
Sensivelmente intangível, empiricamente indemonstrável,
Dualidade de mundos, multiplicação de universos,
Dobraduras do tempo e do espaço,
Rugas infinitas do espaço-tempo!
(2002)

A medida do tempo
Em Salamanca do rio
Tormes
donde Lazarillo anônimo
Unamuno na universalidade do mundo
da universidade na Calle de la Compañia
de Fray Luiz de Léon
uma exposição ininterrupta desde 2002
anuncia
A Medida do Tempo

Relógios de épocas diversas para as diversas
épocas que tiveram relógios
um holandês do século XIX
quadro-retrato de casal flamengo
olhos mecânicos
pupilas negras mexem no compasso do pêndulo
batida-ritmo
pra lá pra cá pra cá pra lá
pra cá pra lá pra cá pra lá
pra cá

Narram
interminável
com desconfiança o movimento
inerte da sala suspensa
no tempo
que avança, repete, remói
a indiferença contínua das máquinas
à curiosidade dos que passam para vê-lo passar
e por aí passam
na monotonia da mudança e da permanência.
(2007)

Moto-contínuo
O tempo ele próprio
não foge
na fuga do tempo

Calmo e estudado
aguarda
na tocaia das horas
o tempo de matar
o tempo
(2007)

Reverso
As folhas no tempo
amarelecem
murcham
secam no abrigo
também
o tempo nas folhas
guardado
em branco disfarça
a constância de passar
sem ter passado
(2007)

Pontuação
O tempo não sobra
nas dobras do tempo
como um fidalgo
em exclamação andante
percorre o texto do
destino de Sancho
montado em burro
mas rocinante
(2007)

Aniversário
A gente
e tudo que é vivo
mesmo com a vivacidade
de empréstimo
lunar
mesmo que a vida seja
mineral na terra
ou água corrente
presa
em lagos continente
afora
a gente bicho da Terra
de seus opostos
complementos
a gente nasce pequenininho e grande
para no espaço de sua curvatura
cumpre os anos que a gente quer compridos
segue no tempo como se fosse reto
o caminho torto que o desenrola em curvas
(2007)

Bandeirolas
Não conte, porque sentirá saudade,
não do contado,
mas das pessoas, eventos, coisas, acontecimentos
que, mesmo não acontecidos,
passam a ter sido,
como se fato.

Não conte, ou se contar ficará magoado
pelo que amamos, desamamos,
gratos ou feridos no desejo
de voltar à casa à que não há retorno,
dela sair a cada dia novo,
e entrar na noite sem sair do dia.

Não conte o tempo com a unidade de medida
do desencantamento,
nem se preocupe pelos vazios
no contínuo da plenitude adentro.

O tempo corre contra e a favor do tempo,
tecendo cedo e tarde como se um prenúncio
fizesse desaparecer do encontro,
que deve acontecer no tempo,
aqueles que se encontrariam para confirmar
que, se nada é novo se senão pelo esquecimento,
o tempo em si sempre rejuvenesce
fora de si não muda, mas no que muda
ele envelhece,
folga estendido como lençóis de chuva
secando ao vento nos varais do tempo.
(2016)

Eras
Um dia
todos
nós
seremos
pós
(2016)

Lembrete
As coisas simples
são assim simples
porque simplesmente
passam
por isso são simples
ao passar
e bastam
(2016)

Registro
O tempo
torce
retorce
distorce
a realidade
da lembrança
move-se
(2016)

Linear
A datação do tempo
é igual e diferente
segundo o passado
terceiro o futuro
primeiro o presente
nesta ou noutra ordem
não necessariamente
(2016)

Afinação
Preste atenção no compasso
na batida do sentimento
acerte a cadência do passo
com a vertigem cadente do tempo
(2016)

Figuração do tempo
Deitada na rede
a imagem presente
depõe no repouso
o passado e o ausente
(2016)

Dernier Cri
O tempo tem também
esta propriedade
de nos impor a ilusão
de que somos o que sempre
fomos
o que estamos sendo
em última mão
(2016)

Permanência
Passado a limpo
o tempo resta
com duas datas
a da chegada
e a da partida
todos os outros dias
pertencem à felicidade
de estar entre elas
como a própria vida
(2018)

Ingratidão
O tempo voa
a esmo
não perdoa
os que com ele vão
mesmo
numa boa
(2018)

Vinheta
Mães
batiam no
futuro para
corrigir o
desconhecido
(2018)