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Pesquisadores estudam uso da cannabis medicinal para alívio da dor crônica

Por Eliane Comoli

Imagem: Manuel Alvarez/Pixabay
 

Dores crônicas são terrivelmente debilitantes. De acordo com a Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (SBED) 37% da população brasileira, cerca de 60 milhões de pessoas, relatam sentir dor de forma crônica. Um dos tratamentos promissores é o uso de cannabis medicinal. Neste mês o plenário da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que libera o cultivo da cannabis para fins medicinais e industriais.

A Organização das Nações Unidas (ONU) retirou a Cannabis sativa da lista de drogas mais perigosas em dezembro de 2020, reconhecendo seus efeitos terapêuticos. Atualmente a substância é usada como tratamento em várias patologias neurodegenerativas e dor crônica, com aprovação da Organização Mundial da Saúde (OMS). “A mudança de classificação foi um importante passo para novas possibilidades de pesquisas controladas em universidades e grupos multicêntricos para que a cannabis seja mais utilizada e beneficie pacientes”, diz Maria Teresa Jacob, médica anestesiologista, especialista em cannabis medicinal para dor crônica pela Universidade do Colorado e membro da International Association for Cannabinoid Medicines (IACM) e da Sociedade Internacional para Estudo da Dor (IASP).

Os mecanismos moleculares e os efeitos analgésicos do canabidiol – um dos componentes da cannabis – em dores crônicas e aplicações clínicas estão descritos em publicação recente da revista International Journal of Molecular Science. Além disso, os efeitos da cannabis na dor de cabeça e enxaqueca foram publicados na revista The Journal of Pain também há pouco tempo.

“Cerca de 5% da população mundial sofre de dor crônica. Além de ser uma questão de saúde pública, é uma questão econômica porque tira a pessoa do trabalho”, comenta Guilherme de Araújo Lucas, neurofisiologista da dor do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FMRP-USP). Outra doença crônica muito frequente na população, afetando cerca de 20-25% das mulheres, é a enxaqueca. “Sem dúvida a enxaqueca é bem debilitante e incapacitante, perde-se muito a qualidade de vida, compromete a atividade profissional, o lazer, os estudos, e os relacionamentos social e familiar”, comenta José Geraldo Speciali, neurologista especialista em cefaleia e enxaqueca, professor aposentado do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP-USP.

Dor é uma sensação que surge quando há ameaça de dano aos tecidos. Senti-la é fundamental para manter a integridade do organismo. É, portanto, algo bom, embora a sensação seja desagradável. “A dor aguda é um sistema construído para avisar que algo está errado e que alguma providência deve ser tomada para não danificar o organismo naquele momento. É um sistema que se liga e desliga, para não sentir dor o tempo inteiro”, explica Guilherme. Quando esse sistema se mantém ligado por horas, dias ou meses nas doenças inflamatórias, provoca dor crônica. “Doenças que lesionam direta e exclusivamente o sistema nervoso fazem com que o sistema de dor fique continuamente ativo – o que chamamos de dor neuropática. A doença inicial é curada e a dor crônica passa a ser uma doença”, diz.

A dor não é apenas uma experiência sensorial. É também emocional e social, dependente de contexto e de natureza multidimensional. Pode ser influenciada por idade, gênero, cultura, etnia, condição socioeconômica, aprendizado e memória, função cognitiva e estados emocionais. “A sensação da dor é um componente sensorial que permite ao cérebro identificar a qualidade, localização e duração dela. A percepção é um componente afetivo emocional que permite a interpretação que cada um dá para aquele estímulo doloroso, o quão desagradável é – e que pode ser diferente para cada um”, comenta o pesquisador. Áreas cerebrais responsáveis pelo componente afetivo emocional interagem com circuitos de memória e de avaliação emocional e isso faz com que a dor seja reconhecida como mais ou menos intensa.

Cannabis medicinal no tratamento de dor crônica

A dor crônica prejudica a qualidade de vida e é muito difícil de ser tratada. Mesmo com o uso de antidepressivos e anticonvulsivantes, o tratamento não oferece uma resposta adequada. “A cannabis medicinal ajuda muito no tratamento porque controla melhor os estímulos neuropáticos, já que os receptores canabinóides estão amplamente distribuídos no corpo – por isso gera uma resposta muito boa na dor crônica”, explica Maria Teresa. 

Estudos mostram a presença de receptores canabinóides no sistema límbico (regulador das emoções), no hipocampo (relacionado às memórias) e na medula espinhal. A cannabis tem ação direta no mecanismo central de dor, bem como ação na parte emocional – o que ajuda muito. “A cannabis tira a parte emocional do sofrimento relacionado à dor”, esclarece Maria Teresa. 

O enorme preconceito e tabu em relação à substância está associado à maconha fumada em uso recreativo. Porém, na versão medicinal, a própria cepa da planta é diferente. As dosagens dos componentes são bem mais baixas, dentro de limites seguros, principalmente do THC, que é o composto psicoativo. A cannabis tem cerca de 500 substâncias ativas, como os canabinóides, terpenos e flavonoides, que funcionam como potencializadores do canabidiol e THC, o tetrahidrocanabinol, que foi o primeiro princípio ativo descoberto, na década de 1950.

A cannabis medicinal oferece menos efeitos adversos e pode ser usada com outros medicamentos para tratamento de dor crônica, aumentando a eficácia e, em alguns casos, diminuindo as doses desses outros fármacos, com consequente melhoria da qualidade de vida do paciente. “Não existe nenhuma contraindicação, nenhum caso de adição descrito e nenhuma complicação fatal. É uma medicação segura para usar em idosos com mais de 90 anos e crianças, inclusive”, argumenta Maria Teresa. Entretanto, é imprescindível que o médico conheça a interação da cannabis com outros remédios, pois ela pode potencializar ou inibir a ação deles quando em associação.

Dosagens específicas são recomendadas conforme a necessidade, os antecedentes e o perfil de cada paciente. As opções disponíveis no Brasil são via oral, tópica e íntima, adquiridas por importação com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mediante prescrição médica. “Os produtos importados apresentam análises bem detalhadas da concentração às substâncias presentes. É uma segurança muito grande para a prescrição”, finaliza Maria Teresa. 

Eliane Comoli é bióloga, mestre e doutora em neurociência pela USP, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e cursou especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.