Por Carlos Vogt
Aldous Huxley (1894-1963) dividiu sua vida entre a Inglaterra, onde nasceu, a Itália que amou e onde conviveu intensamente com o amigo D. H. Lawrence ─ cuja Correspondência ele edita em 1932, mesmo ano do aparecimento de Admirável mundo novo − e os Estados Unidos para onde se transferiu em 1937 e onde morreu, no mesmo dia e ano do assassínio do presidente John F. Kennedy e do escritor C. S. Lewis, autor, entre outras obras, da série de livros infantis As crônicas de Nárnia.
De uma família de ilustres antepassados – como o poeta Matthew Arnold, pelo lado da mãe, e o biólogo, campeão da defesa da teoria evolucionista de Darwin, Thomas Henry Huxley, seu avô paterno, além do irmão Julien, também biólogo importante –, Aldous Huxley terá, sem dúvida, em sua obra as marcas de sua formação intelectual entre a ciência e a literatura.
Poeta, ensaísta, filósofo, romancista, roteirista, contista, Huxley é dono de uma vastíssima obra e autor de grande sucesso internacional que, se hoje não se mantém com a mesma intensidade, conserva-se, contudo, com duradoura constância. Isso, sem falar, é claro, do romance Admirável mundo novo, de 1932, que, ao lado de 1984, que George Orwell publicou em 1948, forma o par das grandes distopias do século XX motivadas pelas experiências totalitárias, à direita e à esquerda, que a civilização ocidental engendrou, conheceu, com que se horrorizou, e perdeu.
Autor lido e querido por diferentes gerações, Huxley, que esteve no Brasil em 1958, tem sido, como autor, uma presença constante entre nós, em particular pelas inúmeras reedições de Admirável mundo novo e também de outras obras do grande acervo de sua produção, entre elas As portas da percepção seguida, no mesmo volume, de Céu e inferno.
Este texto, que abre este número da revista ComCiência, é uma colagem de trechos do prefácio que escrevi para o romance O gênio e a deusa, de Aldous Huxley (São Paulo: Editora Globo, 2005. Edição original de 1955) e, principalmente, da citação de um longo trecho do ensaio As portas da percepção (São Paulo: Editora Globo, 2010), pela atualidade do que escreve o autor relativamente a temas que não cessam de ser atuais e que se escandem nas dobraduras da razão e da consciência: o dos paraísos artificiais e o do uso de substâncias alucinógenas para o reconforto de dores, penas e limitações de nosso corpo físico e de nosso entendimento intelectual.
Huxley, contudo, mesmo vindo da alta cultura, transformou-se, por esses dois ensaios, e pela experiência com a mescalina, que eles relatam, uma referência para a contracultura hippie da Califórnia nos anos 1970, chegando mesmo a inspirar o nome da banda The doors, que teve como líder Jim Morrison, cuja morte precoce, em Paris, provavelmente por overdose, criou um novo mito e um sacrário de peregrinações no cemitério Père Lachaise, onde seu corpo foi enterrado, e que, até hoje, de certa forma, persiste, atraindo e alimentando devoções.
Mas, como bem observa Manuel da Costa Pinto no “Prefácio” ao volume da Editora Globo,
“A alusão que Aldous Huxley faz ao poeta William Blake nos títulos de seus dois ensaios sobre as drogas alucinógenas não deve nos enganar: As portas da percepção (1954) e Céu e inferno (1956) são meditações escritas à luz radiosa da razão, relatos de experiências com a mescalina que não conduzem a uma adesão imediata aos paraísos artificiais, mas sim a uma ideia de alargamento da consciência que não elide seu elemento reflexivo.” (p.11)
É nesse sentido que transcrevo, a seguir, o trecho que acima mencionei e que pode, a meu juízo, contribuir, ao menos, para a contínua e necessária reflexão sobre o tema e para a tomada de decisões das sociedades contemporâneas em relação a um assunto de longa duração e de retorno permanente.
Aí vai, portanto:
“Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E há vida individual, para uso cotidiano, sempre houve drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos seres humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais da percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos – o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos.
A maior porte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados.
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida.
A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalista utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vivida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça.
Nossa era, entre outras coisas, é a idade do automóvel e da vertigem da velocidade. O álcool é incompatível com a segurança nas estradas; e sua produção, bem como a do tabaco, condena praticamente à esterilidade muitos milhões de hectares dos mais férteis solos. Os problemas criados pelo álcool e pelo tabaco não podem ser – e isto não admite contestação – resolvidos pela proibição. O impulso universal e permanente para a autotranscendência não pode ser dominado pelo simples fechar das solicitadas Portas na muralha. A única política razoável seria abrir outras portas melhores, na esperança de induzir os seres humanos a trocar seus velhos maus hábitos por práticas novas e menos prejudiciais. Algumas dessas novas portas seriam de natureza social e tecnológica, outras religiosas ou psicológicas, e outras mais seriam dietéticas, atléticas e educacionais. Mas é inevitável que perdure, apesar de tudo, a necessidade de frequentes excursões químicas para longe da intolerável personalidade e dos repulsivos arredores de cada um. Precisar-se-ia, pois, de uma nova droga que aliviasse e consolasse nossos semelhantes que sofrem, sem lhes causar dano maior, após um período prolongado de tempo, do que o bem que ela lhes pudesse proporcionar de imediato. Tal droga teria de ser eficaz em doses diminutas, e sintetizável. A ausência dessas características faria com que sua produção, tal qual a do vinho, da cerveja, das bebidas fortes a do tabaco, fosse interferir com a produção dos alimentos e das fibras essenciais. Teria de ser menos tóxica que o ópio ou a cocaína, menos propensa a produzir consequências sociais indesejáveis que o álcool ou os barbituratos, menos prejudicial ao coração e aos pulmões que o alcatrão e a nicotina dos cigarros. E, por suas características positivas, deveria produzir modificações mais interessantes na percepção, mais intrinsicamente proveitosas que a mera ação sedativa ou a propensão aos sonhos e às impressões de onipotência ou o escape às inibições.” (p. 66-68)
O debate continua aberto!