Sofrimento na criação e no abate de animais ainda é grande no Brasil

Mesmo sendo um dos maiores produtores mundiais de carne, o país ainda tem muito a melhorar em relação ao bem-estar animal

Por Caroline Marques Maia

Imagem: Pixabay

Consumidores de carnes, laticínios e outros produtos de origem animal estão cada vez mais exigentes quanto ao bem-estar dos animais de produção. Estudo realizado pelo instituto Ipsos aponta que 72% dos entrevistados acham que o consumidor deve ser informado sobre o sofrimento dos animais de produção, enquanto 57% afirma que os estabelecimentos nem deveriam disponibilizar produtos originados com base em sofrimento animal. Mesmo assim, práticas cruéis como castração sem anestesia, marcação a ferro e debicagem são ainda comuns no país. O fato de o Brasil ser o maior produtor de carne bovina (além de terceiro e quarto maior produtor de carne de frango e suína) torna esse fato ainda mais alarmante.

Antes da década de 1960, pouco se falava sobre as condições de criação e abate dos animais de produção. A publicação do livro Animal machines, de Ruth Harrison, denunciou práticas que ignoravam o sofrimento animal e trouxe luz ao tema. “Se o consumidor come carne, deveria se preocupar com as condições de vida do animal, que tem sensibilidade e sofre da mesma forma que um ser humano”, destaca Stelio Luna, professor da Unesp que coordena um grupo de pesquisas sobre dor e qualidade de vida em animais.

“No passado, o bem-estar animal não era um tema abordado pela mídia, mas a percepção mudou nos últimos cinco anos. Em 2004, em três revistas do agronegócio (Globo rural, Dinheiro rural e DBO), o termo “bem-estar animal” foi citado em apenas cinco textos. Já em 2018 foram 70 textos jornalísticos nessas revistas que se referiram ao tema”, comenta Flávia Tonin, jornalista no agronegócio que fez mestrado em cobertura da mídia sobre o bem-estar animal.

Bovinos, aves e porcos

Em 2004, o Brasil assumiu a liderança das exportações de carne bovina, atingindo 1,17 milhões de toneladas (contra 1,16 dos Estados Unidos), de acordo com a Associação dos criadores de Nelore do Brasil (ACNB). Como os bovinos frequentemente são criados em sistemas extensivos, em pasto, as condições desses animais muitas vezes são um pouco melhores, mas ainda assim eles sofrem. De acordo com Stelio, a castração dos bovinos normalmente é feita sem anestesia, mesmo não sendo uma prática recomendada pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária. “Fora isso, há a marcação a ferro e doenças que esses animais têm no decorrer da vida”, destaca Stelio.

Com relação à produção de carne de frango e suína, o Brasil também não fica atrás. De acordo com dados da Embrapa, o país é o terceiro maior produtor de frangos de corte, com mais de 13,5 mil toneladas produzidas em 2019, além de ser o primeiro exportador da carne de frango. Além disso, ano passado produziu quase 4 mil toneladas de carne suína, sendo o quarto maior produtor e exportador dessa carne no mundo.

Ao contrário dos bovinos, as condições de criação desses animais são frequentemente muito ruins, em espaços pequenos. “Entre 12 a 18 aves são mantidas por metro quadrado, enquanto as porcas vivem em uma gaiola parideira em que mal conseguem se virar para se coçar”, comenta Stelio.

Para piorar a situação, tanto aves quanto suínos passam por processos dolorosos ao longo da vida, que geram sofrimento. “Aves sofrem debicagem para evitar o canibalismo, que é o corte do bico, uma região de alta sensibilidade à dor, enquanto leitões normalmente passam por castração, corte dos dentes caninos e caudectomia num mesmo momento, sequencialmente, sem nenhuma anestesia”, pontua o pesquisador. Prevenir a dor em procedimentos como esses ajuda a manter uma melhor qualidade de vida para esses animais e também melhora a produção. “Há embasamento científico para afirmar que o controle da dor melhora a produtividade em todas as espécies”, destaca o docente.

Mesmo o Brasil sendo um dos maiores produtores e exportadores de carne suína no mundo, as condições de criação dos porcos são ainda muito ruins no país. Créditos: Unsplash

Abate

Para amenizar o sofrimento durante o abate é fundamental que os animais estejam inconscientes. “O chamado abate humanitário evita que os animais passem pelo sofrimento, a angústia e a agonia da morte de forma consciente. Isso é feito por meio do processo de insensibilização”, pontua Carla Molento, docente de bem-estar animal e coordenadora do Laboratório de Bem-estar Animal (Labea) na Universidade Federal do Paraná.

De acordo com o professor Mateus Paranhos, especialista em comportamento animal e professor da Unesp, o abate humanitário foi regulamentado há mais de 20 anos no Brasil pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa). Mas a regulamentação é apenas para os animais considerados de açougue, ou seja, bovídeos, equídeos, suínos, ovinos, caprinos, coelhos, aves domésticas e alguns animais silvestres. Aqueles que ficam de fora acabam sujeitos ao sofrimento na hora do abate. “Alguns animais são abatidos por sangria, asfixia prolongada ou até mesmo o início do processamento, como arrancar da pele e evisceração, enquanto ainda totalmente capazes de sentir. O grande exemplo de animais que passam por este processo são os peixes, cujo abate no Brasil ainda tem muito a avançar para se tornar humanitário”, enfatiza Carla.

Apesar da regulamentação sobre o abate humanitário no Brasil há mais de 20 anos, os peixes são animais que ainda sofrem muito ao serem abatidos. Créditos: Pixabay

Futuro

Conscientizar a população sobre as melhores práticas de manejo para evitar sofrimento é uma estratégia fundamental para conseguir melhorias, de acordo com Flávia. “Esclarecimentos sobre práticas que são arraigadas na cultura e que podem ser atualizadas são sempre necessários. Há um movimento sobre o fim da marcação a fogo em bovinos de corte, por exemplo, com pecuaristas que substituíram essa forma de identificação por brincos eletrônicos ou tatuagens”, destaca a jornalista.

Além disso, surgem opções que possam substituir a carne de origem animal no futuro. “Carnes alternativas, como por exemplo as vegetais, já no mercado brasileiro, e as carnes celulares, ainda em desenvolvimento, permitirão amplos horizontes para se avançar na questão”, pontua Carla.

Também é importante aumentar a transparência entre a indústria de alimentos de origem animal e a sociedade, segundo Carla. “A presença cada vez maior de produtos com certificação para bem-estar animal nas prateleiras dos mercados indica que há demanda por parte do consumidor”, pontua a pesquisadora. No Brasil, o instituto sem fins lucrativos Certified Humane Brasil, criado em 2016, desenvolve um programa de certificação e rotulagem, acessível para os produtores. “Ainda estamos no início de uma real conscientização, pois a mudança precisará ser muito mais profunda. A mudança essencial é repensar o próprio consumo”, finaliza a pesquisadora.

Caroline Marques Maia é bióloga e doutora em zoologia (Unesp). É gestora-diretora do Clube Ciência do Instituto GilsonVolpato de Educação Científica, e comanda o blog ConsCIÊNCIA Animal. Cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.