Sobre as ‘lives’, para ler ouvindo ‘Fala’, dos Secos & Molhados

Ou ouvindo ‘Fala tu que eu tô cansado’, por Jovelina Pérola Negra, composição de Edésio Só

 Por Ricardo Muniz

A pandemia da covid-19 espalhou também o vírus das lives, os debates online ao vivo com duas, três horas ou mais de duração para discutir os mais variados assuntos em uma competição de “produtividade” e por atenção que se intensificou à medida que avançavam os meses. Calhando de ser um tema do seu interesse, ou você separa esse tempo na data marcada ou assiste depois, enquanto lava louça. Mas abandone a esperança de que poderá pular trechos e ouvir o conteúdo que procura, pois isso é impossível. A tendência é que a busca seja sempre sequencial e torturante e nunca, jamais, randômica, a menos que tenha muita sorte, um dedo abençoado para a minutagem exata.

É a versão vídeo do publique ou pereça[1]: fale muito ou desapareça. Novo normal.

Luis Felipe Miguel, cientista político da UnB e assíduo colaborador da revista ComCiência, postou recentemente em sua página no Facebook o seguinte desabafo: “A palavra escrita é, de longe, a maneira mais eficiente, mais cordial, mais civilizada de passar informação. Vi elogios a uma análise de conjuntura feita por um colega. Fui atrás. Era um vídeo no Youtube. Durava mais de uma hora. Se fosse um texto, em cinco minutos eu rastreava o que me interessava e lia. No Youtube, não gastei minuto nenhum, porque desisti de assistir”.

“Não é só a lentidão ‘natural’ do audiovisual e a dificuldade de rastrear a informação relevante. É que a monetização dos conteúdos – a remuneração que a plataforma paga aos canais – depende de quanto tempo as pessoas gastam assistindo. Ir direto ao ponto não compensa. O mundo online é organizado como uma disputa pela atenção. Para os usuários, isto se traduz numa enorme perda de tempo”, conclui[2].

Uma refutação legítima seria: melhor isso do que nada. Mas a prova dos 9 seria a que segue: quantas lives foram acompanhadas jornalisticamente e se transformaram em reportagens contextualizando falas e indicando links úteis, ou ao menos relatos completos do que foi discutido? Já respondo: raras. Talvez, na maioria dos casos, essa tão útil peneira jornalística teria demonstrado que se tratou de mais um surto de palavras ao vento (ainda que bem intencionadas). Melhor nada do que isso. Cacofonia não é silêncio, mas pode servir como ferramenta de silenciamento (ainda que não intencional).

O que me faz lembrar do “Mister Live”, apelido jocoso para personagem real de uma redação de universidade pública que para toda e qualquer demanda de cobertura respondia com um invariável “vamos fazer uma live”. Novo normal.

O outro lado, o lado bom
Para usar um bom exemplo da casa, a Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp em Limeira vem realizando as Quartas Interdisciplinares (tudo online, claro, em decorrência da covid-19; eu participei de uma). “Seria impossível durante a pandemia fazer de outro jeito. Boa parte dos estudantes gostou da experiência. Houve aliás mesas redondas apresentadas só por estudantes, o que traz um outro aspecto dessa questão: é necessária a democratização real dos debates”, me diz o físico Peter Schulz, também assíduo colaborador da revista ComCiência, que foi diretor da FCA e secretário de comunicação da Unicamp.

A professora Lúcia Helena Oliveira Silva, que coordena o curso de História da  Faculdade de Ciências e Letras (Assis) da Unesp , me deu o seguinte depoimento em julho deste ano:

“Se por um lado houve a limitação da possibilidade de obter esclarecimentos e fazer contribuições no momento em que ocorre a aula presencial e do prazer da ida à biblioteca, por outro lado os eventos transmitidos online cresceram na qualidade e na quantidade de participantes, já que não havia mais a barreira do deslocamento para ter acesso aos conteúdos. Assim, o novo desafio representado pelo distanciamento social acabou trazendo a possibilidade de que futuramente algumas iniciativas possam ser configuradas de forma remota.”

Ou seja, nada do que escrevo tem a intenção de desmerecer lives como um todo, mas indicar que a avalanche de conteúdos de todo tipo (a cacofonia) soterra os bons conteúdos. E a questão, digamos, metodológica (ou arqueológica) é: e agora, como identificar os bons conteúdos se o fenômeno consiste em falar e falar, transmitir e transmitir e rapidamente passar para a próxima?

Indicações e referências
Para um panorama sobre o que penso e serve como pano de fundo a este pequeno texto, indico esta live. E esta outra. Diante da evidente contradição de indicar lives neste breve artigo, defendo-me indicando que quase tudo o que eu disse nas duas lives supra mencionadas está baseado, concorda, se inspira ou subscreve escritos que podem ser acessados aqui [i], aqui [ii] e aqui[iii].

Além disso, uma entrevista (“Passamos dos meios de massa para a massa de meios”) que pode complementar essa breve reflexão é a de Rosental Calmon Alves, diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, concedida ao jornal Valor Econômico e publicada nos idos de 31 de julho de 2013. Ele comenta o trabalho da Mídia Ninja, que ficou conhecida por cobrir os protestos de rua daquele ano em lives intermináveis.

Ricardo Muniz é jornalista (Cásper Líbero, 2004), bacharel em direito (USP, 1993) e mestre em sociologia da religião (Metodista de São Paulo, 2000). Trabalhou em ONG internacional (comunicação e viagens de campo), na Exame.com (repórter de economia), no jornal O Estado de S. Paulo (subeditor de ciência, saúde, educação e ambiente) e no portal G1 (editor coordenador de ciência e saúde). Editou entre 2011 e 2017 a revista Ensino Superior (Centro de Estudos Avançados) e o site Inovação (2011-2013) da Unicamp. É coeditor executivo da revista digital ComCiência (parceria do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp com a SBPC). Foi professor da especialização em jornalismo científico do Labjor (2017-2020).


[i] “A universidade calada”, 4 de abril de 2018, ComCiência dossiê 197 (Divulgação Científica) https://www.comciencia.br/a-universidade-calada/

[ii] “Jornalismo e ciência sofrem de doenças degenerativas similares”, com Carlos Orsi, 28 de abril de 2015, Ensino Superior Unicamp nº 13 – abril-junho https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/jornalismo-e-ciencia-sofrem-de-doencas-degenerativas-similares

[iii] “Medo e delírio na comunicação da ciência”, Carlos Orsi, Revista Questão de Ciência, 21 de novembro de 2021, https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/apocalipse-now/2021/11/21/medo-e-delirio-na-comunicacao-da-ciencia

[1] Recomendo enfaticamente a leitura do que Peter Schulz vem escrevendo a respeito. O artigo mais recente publicado no Jornal da Unicamp, “Ciência: um crescente mal-estar e a necessidade de mudanças”, está aqui: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/ciencia-um-crescente-mal-estar-e-necessidade-das-mudancas [acessado em 9 de dezembro de 2021], com 12 indicações de ricas leituras adicionais

[2] A monetização não chega a ser a principal questão nos meios acadêmicos, mas em alguns casos de empreendimentos paralelos à academia, sim, é! Tanto a busca de remuneração direta, a via plataforma, quanto o acúmulo de “capital simbólico” como comentarista autorizado(a), em busca do status de “influencer”. Este trecho de artigo de Rafael Evangelista, membro do comitê editorial da revista ComCiência, é esclarecedor: “As redes sociais fizeram da comunicação um palco em que seus agentes se personalizaram e ganharam status de celebridades. Ao novo comunicador não basta fazer seu trabalho com qualidade […], ele(a) precisa ser uma estrela que atrai cliques apenas pela menção do nome. Não por culpa ou necessariamente vaidade dos sujeitos pegos nesse processo, mas porque isso é da natureza da nova estrutura do mercado de informação. Antes a produção da informação aparecia como um processo mais coletivo, com os veículos ganhando a linha de frente no imaginário público. Comprava-se o jornal, não o YouTuber. Hoje a fragmentação dos canais levou a uma disputa que reforça a personalização e a exposição de si“.