Por Claudio Eduardo Rubin
Autor aborda um viés ao qual a psicanálise dedica, desde seus primórdios, uma particular atenção. Ao sediar impulsos moralmente censuráveis num âmbito diferente da consciência, Freud colocava o primeiro degrau para uma explicação da autopunição.
“Somos pecadores não só por ter experimentado da árvore da ciência, senão por não ter experimentado ainda da árvore da vida. A condição em que nos encontramos é pecaminosa, e isso, independentemente de toda culpa.” (Franz Kafka)
Nossa breve genealogia dessa forma de punição, que tem como agente e objeto o próprio indivíduo, nos remontará a um período em que a psicanálise ainda não estava nomeada como tal, e no qual Sigmund Freud tateava um terreno – o dos fenômenos e da natureza do psíquico. Era uma espécie de “continente negro” inexpugnável pelas vias de acesso tradicionais – a neurologia, a medicina, a anatomia cerebral – e que parecia demandar um dispositivo particular para seu entendimento. Dessa época é o trecho da carta a Wilhelm Fliess, que citamos a continuação:
Existem quatro tipos e muitas formas dessas |neuroses|. Posso apenas traçar uma comparação entre a histeria, a neurose obsessiva e uma forma de paranoia. Elas têm diversas coisas em comum. São aberrações patológicas de estados afetivos psíquicos normais; do conflito (histeria), da autorrecriminação (neurose obsessiva), da mortificação (paranoia) e do luto (amência alucinatória aguda). Diferem desses afetos no sentido de não levarem à resolução de coisa alguma, e sim a um dano permanente do eu. (Freud, 01/01/1896).
Notamos que o estado típico que Freud concede à neurose obsessiva refere-se à autorrecriminação. O indivíduo apresenta, durante o tratamento, receio ou até remorso de ter cometido uma falta, mas esse estado afetivo se apresenta, à primeira vista, difuso, embaralhado, dificultado de delinear, com certeza, em relação ao motivo de dita aflição.
Os mais conflitivos impulsos hostis contra os semelhantes parecem provir da época da infância, motivo de diversas derivações psicopatológicas, e, em primeira instância, teriam sido referidos às figuras parentais, tal como o trecho de uma carta a Fliess:
Os impulsos hostis contra os pais (o desejo que morram) são também elementos integrantes das neuroses. Eles vêm à luz, conscientemente, como ideias obsessivas. Na paranoia, o pior aspecto dos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas) corresponde a esses impulsos hostis contra os pais. Esses impulsos são recalcados nos períodos em que desperta a compaixão pelos pais – nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto recriminar-se pela morte deles (a chamada melancolia) ou punir-se histericamente por meio da ideia da retaliação, com os mesmos estados |de doença| que eles tiveram. (Freud, 31/05/97).
Na época da redação da carta, Freud não se encontrava ainda de posse da ideia do inconsciente como instância autônoma em relação à consciência. Na medida em que essa localidade do aparelho psíquico foi adquirindo seu estatuto, a ideia da autorrecriminação encontrou um panorama mais amplo na qual ser inserida.
No caso do neurótico obsessivo, o horizonte foi a noção de pai desenvolvida por Freud. Tomemos como exemplo um sonho do próprio Freud, contemporâneo da carta a Fliess que destacamos, e também trecho de uma carta ao mesmo correspondente, na noite posterior ao enterro de Jakob Freud, pai de Sigmund, quando o sonho foi relatado pela primeira vez:
Eu estava num lugar onde li uma placa: “Pede-se que você feche os olhos”. Reconheci imediatamente o local como sendo a barbearia onde vou todos os dias. No dia do funeral, fiquei esperando minha vez e, por isso, cheguei um pouco atrasado ao velório. Na ocasião, minha família estava descontente comigo por ter tomado providências para que o funeral fosse discreto e simples, o que depois concordaram ter sido muito justificado. Estavam também um pouco ofendidos com meu atraso. A frase na placa tem um sentido duplo: cada um deve cumprir seu dever para com os mortos (um pedido de desculpas, como se eu não tivesse feito ou estivesse precisando de clemência), e o dever real em si mesmo. O sonho, portanto, provém da tendência à autorrecriminação que costuma instalar-se entre os que permanecem vivos. (Freud, 02/11/1896).
Nessa primeira versão do sonho, a obrigação e a indulgência (a desculpa) se confrontam, sem conseguir uma resolução. O sonho expõe ambas vertentes, e é esse o conflito moral que fica retratado. A obrigação de prestar a devida homenagem ao pai morto, e a impressão de não ter estado à altura do acontecimento.
Uma segunda versão veio à tona, com leve modificação em Interpretação dos sonhos, em que o relato detalhado de Freud acrescenta uma nuança: no cartaz do sonho parecia estar escrito “Pede-se fechar os olhos” ou bem “Pede-se fechar um olho”.
Nessa oportunidade, a interpretação de Freud se estende além da obrigação e da homenagem, adentrando-se na função de um pai, se pensado em relação a ele o texto ambíguo do cartaz: os dois olhos fechados podem ser entendidos como sinal de indulgência para com o filho, ao tempo que um olho aberto poderia ser entendido como vigilância ou desaprovação do pai pelos atos do filho, um olho que julga moralmente os atos do filho, desde uma situação peculiar, já que não dorme/descansa/morre de forma definitiva.
Essas especulações avançaram ao incluir, Freud, dois clássicos da literatura universal: a tragédia de Édipo de Tebas, de Sófocles, e Hamlet, de William Shakespeare. Em outras das cartas endereçadas a seu correspondente Fliess, Freud se refere a ambas, na tentativa de balizar os impulsos hostis contra as figuras parentais que os pacientes expressavam na clínica. Assim, comenta sobre Édipo:
(…) mas a lenda grega capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência em si mesmo. Cada pessoa da plateia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada uma recua, horrorizada, diante da realização do sonho ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado atual. (Freud, 31/10/1897).
A introdução, tal como feita por Freud, da tragédia de Édipo, abriu um leque extenso de considerações, a partir de então, no seio das elaborações psicanalíticas. A localização de uma trama configurada por diversos impulsos – extraído do bojo do âmago da peça de Sófocles, interpretado por Freud, a morte de Laio (impulso parricida) e o casamento com Jocasta (impulso incestuoso) seriam os alicerces passionais presentes em cada criança[1].
Esses impulsos, ao sofrerem um efeito normativo (via complexo de Édipo e de castração), tornam-se desejos inconscientes, afastados da consciência, mas com capacidade de retornar a ela, por via dos fenômenos ligados ao inconsciente (sonhos, sintomas, lapsos, e outros).
Ao sediar esses impulsos moralmente censuráveis num âmbito diferente da consciência, Freud colocava o primeiro degrau para uma explicação da autopunição, podendo ser considerado que o motivo da autorrecriminação que Freud apontara na neurose obsessiva não precisava ter um motivo consciente e a disposição, de forma imediata, por parte do indivíduo, devendo ser procurado por via do dispositivo de tratamento, elaborado por Freud.
Uma outra questão posta na introdução nas elaborações freudianas da tragédia edípica teve uma extensão considerável no pensamento freudiano. Refere-se à insistência, de geração em geração, de uma espécie de configuração distribuída entre os diferentes lugares – mãe, pai, filho – que estabelecem e estendem o modelo de civilização perpetuado desde tempos remotos. Em textos de décadas posteriores, Freud aludiria a uma espécie de memória filogênica, que perpassaria o indivíduo e se plasmaria no social. Essa seria uma outra vertente para pensar em uma autorrecriminação que excederia a vida particular do indivíduo, o qual assumiria uma parcela de culpa, que enlaçaria sua experiência pessoal de vida com algo que viria ecoando do fundo dos tempos.
Já com Hamlet, a direção das elaborações parece voltar nas pegadas da tragédia edípica, invertendo os papéis. No drama que Shakespeare nos apresenta, trata-se do filho que se vê atormentado pelo espectro do seu pai. Freud escreve a respeito na mesma carta em que fazia referência a Édipo:
Passou-me fugazmente pela cabeça a ideia de que a mesma coisa estaria também na base de Hamlet. Não estou pensando na intenção consciente de Shakespeare, mas creio, ao contrário, que um acontecimento real tenha estimulado o poeta a criar sua representação, no sentido de que seu inconsciente compreendeu o inconsciente de seu herói. Como é que Hamlet, histérico, justifica suas palavras: “E assim a consciência nos torna a todos covardes”? Como explica sua hesitação em vingar o pai através do assassinato do tio – ele, o mesmo homem que manda seus cortesões para a morte sem nenhum escrúpulo e que é positivamente precipitado ao assassinar Laertes? (Freud, 31/10/1897).
O fantasma do pai de Hamlet demandando que o filho o vingasse nos permite aproximá-lo à figura do pai com um olho aberto, no caso, aquele que não se resigna a morrer e retorna clamando vingança. A evidente inoperância de Hamlet para levar adiante a exigência paterna nos remete aos impulsos parricidas que Freud percebera no Édipo. Hamlet recusa exercer a vingança com seu tio – assassino do seu pai – por se encontrar identificado com quem pôde realizar o que, na sua fantasia infantil, teria tido a forma de um desejo. Sobre ambos, Édipo e Hamlet, Freud escreve na Interpretação dos sonhos:
Em Édipo, como no sonho, a fantasia do desejo infantil subterrâneo é trazida à luz e realizada; em Hamlet permanece reprimida, e só indagamos sua existência – as coisas se encadeiam aqui como em uma neurose por suas consequências inibitórias. A peça se constrói ao redor da vacilação de Hamlet em cumprir a vingança que lhe está deparada. (…) Que o inibe, então, no cumprimento da tarefa que lhe encarregou o espectro do seu pai? Aqui se nos oferece de novo a conjetura: é a particular índole dessa tarefa. Hamlet pode tudo menos vingar-se do homem que eliminou seu pai e usurpou a este o lugar junto a sua mãe, do homem que lhe mostra a realização dos seus desejos infantis reprimidos. (Freud, 1900).
Édipo, ciente das duas transgressões moralmente execráveis que cometeu, arranca seus olhos, enquanto Hamlet morre de maneira confusa em um duelo. As questões que tanto Édipo como Hamlet incitaram em Freud confluíram, alguns anos mais tarde, articuladas em um terceiro relato, nesse caso, de caráter mítico, retratado em Totem e tabu.
Freud retoma um relato mítico – de impronta darwiniana – para retratar o surgimento da humanidade e de algumas de suas instituições principais, a partir da descrição de um bando de macacos organizados na forma de uma horda, cujo líder teria sido o macho mais forte e de mais idade do grupo. Este macaco usufruía do acesso sexual a todas as fêmeas do bando, impedindo, de forma violenta, o acesso aos machos jovens. Revoltados com a situação, os macacos jovens teriam se conjurado, matando o líder, e, segundo costumes da espécie, devorado o seu corpo.
No que poderia se considerar à primeira vista como uma vinheta zoológica, aos olhos de Freud permitiu uma extensa especulação psicanalítica. Entre as consequências do ato do assassinato do chefe da horda encontra-se o eco das elaborações freudianas que enumeramos anteriormente. De forma sintética, aludiremos às mais destacadas: se, em vida, o macho líder provocava ira e temor, sua violenta morte teria produzido um fato inédito até então, traduzido em uma espécie de consciência do ato, o que teria inaugurado o que conhecemos como consciência moral, uma distinção inexistente antes e que tornara a morte um crime.
A expressão mais eloquente da consciência moral teria surgido como sentimento de culpa e arrependimento pelo feito. Na sequência do sentimento de culpa, seguindo o roteiro freudiano, impulsos afetuosos destinados ao líder morto teriam emergido, surgindo a ideia do amor. Para Freud, a humanidade compartilharia essa origem comum, que teria se iniciado com uma transgressão. A instituição da religião – e sua correspondente ideia de Deus – assim como a ideia da lei e do regulamento da moral, teriam surgido naquele momento.
Em vida, o macho líder interditava o acesso dos machos jovens às fêmeas do bando; uma vez morto (e seu corpo devorado, no que pode ser considerada a primeira festa da humanidade, a refeição totêmica) sua carne se incorporou, uma vez digerido, ao corpo de cada um dos seus filhos, tornando-os irmãos.
Os irmãos se obrigaram, então, a não aceder às fêmeas do bando, surgindo, dessa maneira, a exogamia, ao ter que procurar as fêmeas em outros bandos semelhantes. Essa proibição se perpetuou sob a forma de proibição do incesto. Uma segunda interdição foi assumida pelos irmãos do bando, no sentido de proibir-se a si mesmos ocupar o lugar do pai. Encontra-se aqui o argumento inicial para a proibição do parricídio, ao tempo que, se o lugar do pai ficara vacante, a noção de Deus podia vir a preencher esse vazio.
Proibição de incesto e parricídio foram, para Freud, os alicerces da lei para a humanidade. Nessa perspectiva, o que ficara gravado na memória filogênica da humanidade encontraria suas maneiras de ser representado culturalmente através do tempo, daí a importância de Édipo rei, e seu eco se encontraria presente na história particular de cada indivíduo, ao atravessar o processo edípico.
Os sentimentos de culpa que poderiam promover a autopunição teriam sua origem na conjunção do social e do individual. Sentimento de culpa que Freud considerava como sendo de natureza inconsciente, e cuja constituição excederia, por muito, as vicissitudes pontuais da experiência do indivíduo, encontrando seu leito rochoso no próprio surgimento da consciência moral.
Claudio Eduardo Rubin é psicanalista. Psicólogo pela Universidad de cuBuenos Aires, especialista em psicologia clínica, mestre em filosofia e doutor em filosofia pela PUCPR.
Referências bibliográficas
Freud, S. La interpretación de los sueños (1900 [1899]). Obras completas, volume IV e V. Amorrortu Editores, 2003.
Freud, S. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904. Imago Editora, 1986
Freud, S. Totem e tabu (1913 [1912-1913]). Obras completas, volume XIII. Amorrortu Editores, 2003.
[1] Aqui Freud vislumbra de forma mais organizada o acontecido com o menino, tendo demorado algumas décadas para aproximar o processo acontecido com a menina durante a infância.