Por Sabine Pompeia e Lívia Mendes Pereira
A série Marte da National Geographic, criada por Bem Young Mason e Justin Wilkes, teve sua primeira temporada lançada em 2016 e a segunda dois anos mais tarde. Embora não seja atual e tenha recebido avaliações mistas do público em sites como Rotten Tomatoes, merece atenção por sua abordagem inovadora, que convida a reflexões éticas em muitas esferas. A série conta de maneira ousada a história da exploração de Marte, entrelaçando um enredo que se passa a partir de 2033 com um documentário que envolve personalidades não-ficcionais, incluindo muitos cientistas renomados. Este contraste visa apontar como os desafios vividos pela humanidade terão efeitos no futuro – o que já vem acontecendo.
Os aspectos ficcionais na série se desenvolvem com base em um bom roteiro sobre conflitos vividos por personagens interessantes e bem caracterizados. Apesar de narrativas semelhantes já terem sido exploradas em outras obras de ficção, o que há de novo em Marte é o formato, um documentário ficcional, e o cenário geral da série, que faz um contraponto entre interesses econômicos de empresas privadas, sua influência na política, avanços da ciência e da tecnologia e os desdobramentos da emergência climática.
Outro aspecto interessante é como seu enredo antecipou desenvolvimentos tecnológicos que atualmente são colocados em prática, como a possibilidade de levar humanos a Marte. Por exemplo, as empresas Mars One e SpaceX almejam viajar e estabelecer colônias no planeta até a década de 2030. Órgãos governamentais, por outro lado, não têm, oficialmente ao menos, planos tangíveis de fazer o mesmo em um futuro próximo. Esse fato mostra como interesses econômicos atuais têm influenciado na busca de conhecimentos espaciais, uma situação central presente no roteiro da série.
Os aspectos fictícios tratados na série, que ocorrem no futuro, e as entrevistas em estilo documentário com pessoas reais apresentadas como flashbacks, divergem na primeira e na segunda temporada.
A primeira temporada trata da chegada de uma pequena tripulação de cientistas a Marte, e os desafios técnicos e pessoais que enfrentam para fundar a base no planeta. Essa equipe é constantemente reforçada por expedições subsequentes, incluindo especialistas de diferentes áreas e nacionalidades, tendo sido a expedição financiada por uma iniciativa intergovernamental. A equipe inclui pessoas de gêneros e grupos étnicos distintos, mostrando preocupação dos produtores não só com a coerência ficcional, mas também com a representatividade.
Dentre os entrevistados da primeira temporada – que contrapõem a ficção que ocorre em Marte – constam Elon Musk, figura ainda não tão controversa na época da produção da série, e o engenheiro espacial Mark Zubrin, que discute a viabilidade tecnológica de explorações espaciais. Neil deGrasse Tyson (astrofísico e comunicador científico) também aparece em vários episódios. Ele é conhecido por debater, por exemplo, questões associadas a vantagens e desvantagens de projetos de terraformação. Trata-se da transformação do clima de Marte para se assemelhar ao da Terra, processo hipotético retratado em vários episódios e filmes da série Star Trek. Problemas de saúde mental e física decorrentes do isolamento social e do ambiente em Marte são também abordados, tanto do ponto de vista ficcional quanto baseados em resultados de experimentos reais, desenvolvidos por vários cientistas entrevistados.
Segunda temporada
A série volta com enfoque em acontecimentos após o estabelecimento da colônia de cientistas em Marte, quando já conseguiram assegurar a obtenção de água líquida, bem como uma fonte energética. Nessa temporada, aporta em Marte um foguete com funcionários de uma empresa privada. Seu objetivo, bem caracterizado pelo nome da companhia, Lukrun, é explorar o planeta comercialmente. Para apressar essa exploração, a empresa se vale de tratados internacionais da Terra, que dão à Lukrun o direito irrestrito de acesso a todos os limitados recursos dos colonos cientistas (água, energia), gerando graves consequências para todos. Essa negociação envolve compromissos complexos entre os controladores da expedição científica na Terra e os dirigentes dos diversos países financiadores. Inicialmente, esta coalizão de nações buscava alternativas de vida para a humanidade, porém isso se transfigura para a obtenção de lucros em curto prazo, impulsionado por pressão de corporações, de modo a comprometer o desenrolar do projeto inicial.
As entrevistas da segunda temporada mudam de tom em relação à primeira e focalizam as consequências do conflito entre a obtenção de conhecimento e os interesses econômicos, similares aos vivenciados pelos personagens ficcionais em Marte. Um exemplo é a consequência ambiental da exploração e uso excessivo de combustíveis fósseis. Um dos entrevistados, o ambientalista russo Vladimir Chuprov, narra como em 2016 sua equipe descobriu a morte de significativas quantidades de renas e também infecção de pessoas por antrax na Sibéria, acobertadas pelas autoridades locais. Isso aconteceu devido ao aquecimento do planeta, que levou ao derretimento do pergelissolo (permafrost, em inglês), que é o tipo de solo encontrado na região do Ártico, fazendo reavivar as bactérias causadoras da doença. Note que há evidência de muitos outros micro-organismos em inatividade sob o gelo desde tempos imemoriais, que podem também causar enfermidades, colocando a humanidade em risco. Isso também acontece na série com os personagens que estão em Marte, que enfrentam uma moléstia desconhecida. Podemos dizer que, nesse aspecto, a série Marte antecipou fatos como a da pandemia de COVID-19, que teve início um ano após o lançamento da segunda temporada.
É quase impossível dissociar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia dos interesses econômicos. Enquanto os especialistas em tecnologia, dirigentes de corporações e alguns cientistas entrevistados na série mostram entusiasmo pelo se pode atingir em explorações espaciais, um número crescente de pensadores adverte que interesses econômicos estão em vias de causar danos com alta probabilidade de serem irreversíveis sobre o meio ambiente, o que ameaça a continuidade da humanidade. Contudo, essa consciência é ainda incipiente em tratados sobre a inovação tecnológica. É justamente a rápida inovação da tecnociência, cooptada pelo desmedido poder global de grandes corporações, que tem acelerado a destruição ambiental, como é demonstrado de maneira eficaz na série. De certa forma, a obra demonstra que os mesmos problemas que estamos enfrentando na Terra serão transferidos para Marte.
Sabine Pompeia é doutora em psicobiologia (Unifesp) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp