Por Marco Centurion
O documentário Saving the Dark destaca que a poluição luminosa é uma questão que ainda não recebe a atenção que merece. Em pouco menos de 1 hora, o cineasta Sriram Murali guia o espectador por diversos aspectos ligados ao tema, ouvindo pesquisadores de áreas distintas, de luminotécnicos a astrônomos – a ênfase, porém, é nos Estados Unidos, onde foi produzido.
Logo de início, o astrônomo Gerald McKeegan, do observatório de Chabot, em Oakland, explica que muitas pessoas se deslocam até o observatório para contemplar a Via Láctea, atividade que vem se tornando difícil devido ao aumento da iluminação pública nos arredores. O pesquisador ressalta que uma das únicas maneiras de ver as estrelas é em locais muito escuros e distantes ou visitando um planetário para realizar observações artificiais. Junto de uma sequência de belas imagens do espaço, o astrônomo Tyler Nordgren fala da observação direta de corpos celestes, numa tentativa de levantar um apelo pedagógico acerca da importância de preservar os céus escuros.
A iniciativa International Dark Sky Association (IDA), que possui célula no Brasil e é uma das fomentadoras do documentário, busca promover a proteção desses ambientes afastados de grandes centros urbanos, passando por diversos personagens que conduzem a narrativa em direção à compreensão da dificuldade de encontrar, atualmente, um local com a visibilidade do céu preservada.
Tyler Nordgen conduz uma regressão aos céus dos primeiros astrônomos e como foram utilizados para desenvolver a ciência nos moldes atuais. Enquanto o astrônomo explica sobre como se guiar pelas estrelas, é mostrado um grupo – escoteiros, talvez – em atividade com crianças demonstrando como encontrar uma estrela por meio de painéis impressos. Tyler segue colocando como um exemplo o céu no centro de Los Angeles, que mesmo em uma noite sem nuvens é possível contar somente 11 estrelas, concluindo que o ato de olhar para cima se torna sem sentido. E, uma vez que não há estímulos vindo dos céus, é de supor também que haverá perda de interesse na pesquisa do espaço sideral – já que o mundo de toda uma nova geração se limita à atmosfera. Uma analogia perturbadora seria imaginar uma criança que crescesse sem nunca ter visto uma árvore.
De volta ao observatório de Chabot, Gerald fala sobre o telescópio de refletor de cerca de pouco mais de 900mm de abertura, que é parte de uma rede mundial de observatórios, os quais realizam o trabalho de rastreio de asteroides próximos da Terra. A esta altura as falas variam entre Tyler e Gerald sobre a dificuldade de realizar esse monitoramento, por não conseguirem observar o céu. Assim, um asteroide com magnitude 20, ou seja, por volta de milhões de vezes menos brilhante que a estrela menos brilhante visível a olho nu, potencialmente perigoso, pode estar à espreita. Rastrear até os grandes asteroides pode ser um problema, uma vez que quanto mais longe, mais difícil é seu rastreio, e com o aumento da poluição luminosa isso se torna cada vez mais difícil.
O desconhecimento e até mesmo o estranhamento ao ouvir sobre a poluição luminosa é um grande contribuinte para o desperdício de eletricidade. A sequência do documentário entra então em aspectos tecnológicos envolvendo o uso de luzes sem sensores, colaborando para o gasto energético não planejado e aumento da pegada de carbono. Estima-se que, nos EUA, 40% da luz é desperdiçada. Michael Siminovitch, diretor do centro de tecnologia em iluminação da Califórnia fala sobre o uso indiscriminado de luzes à noite. Segundo ele, o fato de a eletricidade ser muito barata torna as luzes noturnas quase naturais.
A naturalização da iluminação noturna é também estratégia de marketing. Segundo Pete Strasser, associado da IDA, postos de gasolina utilizam a propensão humana de voltar as atenções para lugares mais iluminados para atrair clientes. O enredo desenvolve o assunto então em direção aos índices de criminalidade, relacionando-os à iluminação pública. É narrada uma situação hipotética acerca de uma loja de conveniência que sofre um atentado criminoso, e a reação das pessoas no sentido de aumentar a iluminação local, afinal “com mais luz há maior sensação de segurança”. Contudo o direcionamento dessas luzes é feito de forma impensada. De forma a simplificar o contexto, Pete Strasser indica que esta questão poderia ser mitigada ao direcionar as luzes nestes locais para o chão. Esta propriedade geométrica do direcionamento da luz é ainda confirmado pela fala de Tyler sobre a não necessidade de iluminar acima dos postes de luz, afinal não há ameaças vindo do espaço. Da forma como é posta a informação, passa-se a imagem que a criminalidade é similar em diferentes localidades. Contudo, diferentes regiões implicam em diferentes realidades, o que levaria a diferentes variáveis de se considerar os índices de criminalidade. As distinções de realidade de países do norte e sul global, apresentam discrepâncias que dificilmente poderiam ser reduzidas a somente o controle da iluminação artificial para melhoria da segurança urbana.
Segundo as pesquisas de Maurice Ohayon no Instituto de Epidemiologia do Sono da Universidade de Stanford, as pessoas enxergam melhor quando expostas à luz azul, dizem se sentir mais seguras – mas não mais felizes. Ele cita um estudo sobre a tentativa de medir o impacto das luzes das ruas na qualidade do sono. Os resultados mostram que a quantidade de exposição à luz à noite tem correlação com a quantidade de sono. Dormir somente após a meia noite, com maior exposição à luz, gera atraso da secreção de melatonina pelo corpo.
E essas luzes impactam negativamente também a vida selvagem. Insetos, pássaros e morcegos são atraídos para as cidades. Todo o ecossistema sofre com a interferência das luzes artificiais. Como forma de chamar a atenção dos espectadores às estatísticas, uma sequência de imagens de espécies animais sofrendo consequências negativas é exibida.
Dados de 2012 a 2016 são mostrados expondo que o brilho artificial do planeta aumentou 9% e que cerca de 80% do mundo e mais de 99% da população estadunidense e europeia vivem sob poluição luminosa. Como na exposição dos problemas sofridos pelos animais, o documentário exibe imagens de diversos grandes centros, mostrando o crescimento da poluição luminosa ao longo dos anos. Com tom esperançoso, porém, os pesquisadores dizem que é um problema passível de solução – ao contrário de outras formas de poluição.
Encaminhando para a conclusão do filme, como em uma ode à astronomia, os pesquisadores falam da importância deste campo de estudos e de ambientes não-formais para educar as próximas gerações. Outro associado da IDA, Scott Feierabend diz que a missão da associação é criar um mundo sem poluição lumiosa, e salienta ainda que há uma certificação internacional para assegurar que espaços com bons céus sejam mantidos protegidos. No momento do lançamento do documentário eram 85 espaços no mundo, e hoje este número está acima de 200. No Brasil o único certificado está no Parque Estadual do Desengano, no Rio de Janeiro.
Em 1958, Flagstaff, no Arizona, adotou a primeira portaria de iluminação do mundo e se mantém como uma das cidades mais escuras dos EUA. Em 2001 se tornou a primeira cidade reconhecida pelo IDA. Tucson, também no Arizona, adotou portarias progressivas que impedem o crescimento da poluição luminosa na cidade, o que a mantém como um refúgio escuro sem sacrificar a segurança dos habitantes. A cidade ainda abriga um observatório nacional de pesquisas em astronomia, o que não é a realidade em diversas outras localidades, dificultando assim uma justificativa para criação de legislações desta natureza.
Os diversos pesquisadores ressaltam que a Dark Sky Association não prega o apagamento das luzes, mas a utilização da iluminação artificial de forma racional, mantendo visível a Via Láctea e também o solo. Apesar dos inegáveis benefícios expostos pelo enredo, países de diferentes níveis econômicos apresentam níveis estruturais diversos, e isso pode se tornar outro empecilho para conter o avanço da poluição luminosa, desde a malha elétrica urbana, investimento em tecnologias de iluminação até a estrutura de ensino voltada para a conscientização deste problema na educação básica. O documentário traz diversos aspectos interessantes a serem considerados, mas o enfrentamento do problema deve ser posto em conjunto com as realidades dos países – só assim será possível atingir o ponto de mínimo impacto, respeitando traços culturais locais.
Marco Centurion é físico (Ufscar) e cursa especialização em jornalismo científico e cultural (Labjor/Unicamp)