Saúde mental na esfera digital

Por Nara Helena Lopes

O excesso de exposição digital e a diminuição do contato interpessoal afeta a capacidade empática, a possibilidade de se colocar em perspectiva com o outro e com seus sentimentos, uma das habilidades mais essenciais do ser humano.

[crédito da imagem: Federico Morando]

Crianças e adultos prologam a cada dia o tempo de uso da internet. O excesso de exposição ao mundo digital tem afetado tanto a saúde física quanto a emocional, nas diferentes fases da vida.

As crianças com menos tempo ao ar livre e às interações sociais e intergeracionais apresentam problemas de ergonomia, mudanças nos hábitos alimentares, dificuldades socioemocionais, ansiedade, intolerância a frustrações e redução da qualidade do sono. Além disso, estão mais propensas a receberem conteúdos inadequados à idade, a comportamentos prejudiciais e de risco ou potencialmente traumatizantes. São exemplos brincadeiras que estimulam autolesões ou a banalização do próprio corpo ou do corpo do outro, exposição publicitária e sem controle parental, violências digitais, além da adolescência precoce, decorrente de estilos, comportamentos ou modos de ser de crianças influenciadas pela cultura digital, antes das transformações orgânicas propriamente acontecerem.

Os adultos, por sua vez, referem cansaço excessivo, esgotamento mental, mudanças de humor, desatenção, dificuldade de foco e de concentração. Nem sempre relacionam tais sentimentos ao uso excessivo da internet e por vezes acreditam que as telas são a solução para o descanso necessário. Em geral, os adultos têm privilegiado e legitimado seu tempo de descanso conectando-se ao mundo digital. Por outro lado, têm também confiado seus filhos às interações tecnológicas, de maneira a diminuir as trocas intergeracionais, extremamente importantes para o desenvolvimento biopsicossocial.

Empatia
O excesso de exposição digital e a diminuição do contato interpessoal afeta a nossa capacidade empática. A empatia é a possibilidade de se colocar em perspectiva com o outro e com seus sentimentos. É uma das habilidades mais essenciais do ser humano, pois possibilita partilhar as experiências e modificar as visões parciais sobre o mundo, transformando, enriquecendo e revisando nossa autocompreensão. Além da exposição às telas reduzirem as oportunidades de leitura das emoções, também dificulta o sentir junto. Em especial, reduz o enfrentamento à frustração e a maturação socioemocional, o reconhecimento dos sentimentos do outro, dos limites de si, do corpo, das consequências de seus comportamentos e escolhas e o comprometimento com vínculos profundos.

O aprendizado de habilidades sociais e a leitura corporal são essenciais para o amadurecimento da empatia no decorrer da vida. Entretanto, o excesso de vida digital pode diminuir a capacidade de compreender expressões faciais e corporais, interferindo no treino socioemocional e nas interações. É através do corpo que expressamos a maior parte dos sentimentos, sendo fundamental o contato físico para a identificação, leitura, aprendizado e interpretação dos sinais não verbais. A expressão corporal é fundamental para extrair o significado dos acontecimentos e apreensão da comunicação integral, aprendizado de regras e convívio social da cultura e territórios locais.

Vida híbrida
Embora os dispositivos digitais conectados aparentem ser apenas um objeto tecnológico sofisticado, têm sido cada vez mais aprimorados para influenciar profundamente o ser humano, em níveis psíquico, físico e cultural. É um fenômeno que modifica a cultura, com transformações estruturais na comunicação, no desenvolvimento socioemocional, nas formas de se relacionar com o mundo, com as pessoas e com si mesmo.

O ambiente digital é um ambiente de vida, imersivo, onde as pessoas podem assumir simultâneas e múltiplas identidades, em diferentes regiões do mundo, conhecer hábitos e costumes, recebendo influências culturais e individuais que ultrapassam o território geográfico. Diante da vastidão de possibilidades, é também uma forma de se distanciar da vida concreta e pausar a percepção de tempo e de espaço do cotidiano. É um convite contínuo para imersões, onde é possível, inclusive, fazer uma ruptura com a própria identidade.

Entretanto, as inovações digitais são velozes, o que torna quase impossível o desenvolvimento imediato de diagnósticos no campo da saúde. Falta, certamente, uma conscientização sobre os reflexos da evolução tecnológica no desenvolvimento socioemocional nas diferentes fases da vida. Os profissionais de saúde mental se encontram diante de desafios inéditos porém centrais para o futuro.

Dependência de internet
Os dispositivos digitais atuais são como próteses do nosso corpo, unindo-se e sustentando nossos movimentos, em especial nossas escolhas. A vida on-line é uma extensão do mundo e do entorno, com forte presença no modo de estar, de viver e de escolher, influenciando o desenvolvimento pessoal e coletivo. Ao mesmo tempo que fornece uma ampla gama de possibilidades de lazer, entretenimento, compras, relacionamentos, cultura e acessibilidade, pode também promover um contexto de alienação dos acontecimentos da vida.

Pouco se fala sobre o consumo diário de internet e sofrimento psicológico, talvez porque por infindáveis motivos estamos todos dependentes. O diagnóstico de dependência tecnológica ainda é limitado, pois é tênue o limite entre uso patológico e normal, exatamente porque são diversos os motivos e justificativas para estar on-line. Isso pode ocultar o comportamento dependente e dificultar uma avaliação precisa de prejuízos psicológicos.

Em geral, quando se instauram comportamentos de dependência de internet, observam-se perda da autonomia na vida e do controle do uso, irritabilidade, abstinência provocando alterações de humor, impaciência, inquietude, tristeza, agitação ou agressividade, obsessão para se conectar, falta de motivação e conflitos em relacionamento próximos, descuido de si mesmo e das responsabilidades, falta de sentido e de motivação para atividades diárias.

Psicoeducação digital
A tecnologia é abertura para o mundo, à criatividade e curiosidade, além de proporcionar conexão com pessoas próximas e distantes. As crianças e adolescentes acessam com mais destreza, mas somente na capacidade de execução. Esta fase da vida é marcada pela impulsividade, quando a formação cognitiva ainda está em desenvolvimento. Precisam de direcionamento para viverem seguros na esfera on-line, pois não conhecem os fundamentos, as regras e riscos do mundo digital.

Nesse sentido, é importante um trabalho de psicoeducação digital para todas as gerações: orientar sobre a saúde mental no ambiente digital, conversar como as tecnologias afetam os sentimentos e emoções. Os adultos precisam conhecer a cultura digital, buscar informações e criar regras oportunas para o uso. Ter uma consciência real dos riscos, pessoais ou legais, dos conteúdos da internet, considerar as problemáticas legais da violação da privacidade e de comportamentos prejudiciais.

A internet conhece mais coisas íntimas do que o melhor amigo ou familiares. Nenhum tipo de dispositivo tecnológico da história – nem mesmo o cérebro – foi capaz de armazenar tanta informação global da humanidade. O celular sabe da nossa intimidade, de interesses de compras, passeios e viagens, senhas, dados sensíveis, biometria, contatos de pessoas queridas ou bloqueadas, toda cronologia das conversas, agenda e rotina, e isso por anos. Será que sabemos disso e escolhemos viver assim?

Por último, o exemplo dos adultos é primordial, uma criança que vê o adulto usar constantemente a internet e publicar imagens de si mesmo e da família sem refletir sobre as possíveis consequências, não terá apenas um exemplo de como interagir no mundo on-line, mas, ainda, terá que se confrontar com a sua imagem digital no futuro, a relação com outras e novas pessoas em seu cotidiano. E possivelmente, publicará informações pessoais suas também.

Bem-estar psicológico e digital
O bem-estar psicológico, social e emocional é a capacidade de saber apreciar a vida, de ter relacionamentos positivos, de agir de modo autêntico, de desenvolver a resiliência necessária para enfrentar desafios. Significa estar bem, viver bem. Segundo a OMS é o estado emocional, mental, físico, social e espiritual de bem-estar que permite às pessoas atingir e manter seus potenciais pessoais na sociedade. A atual vida híbrida exige formação e manutenção de competências cognitivas (como penso), emocionais (como me sinto), sociais (como me relaciono com os outros), um senso de valores consolidados (no que acredito) e de identidade: como penso, como me sinto, como me relaciono e no que acredito enquanto estou imerso no on-line? Como isso afeta meu bem-estar emocional?

Ter e transmitir aos próximos um adequado nível de autoestima, capacidade de compreender e gerenciar pensamentos e sentimentos, construir relacionamentos saudáveis e identificar e agir diante de circunstâncias estressantes ou aversivas de modo a favorecer o bem-estar em todas as dimensões. Nesse sentido, é importante conversar sobre o uso de tecnologias, como me sinto, como forma de apoio e suporte social, diminuindo a solidão e reaproximando pessoas intimas e intergerações.

Por fim, as experiências humanas se pautam a partir da necessidade de reconhecimento: dizer algo para o mundo, ter uma história de vida coerente e significativa. Nesse sentido, o eixo central para uma vida híbrida saudável é o regate do propósito da vida, da família, dos amigos e da sociedade. Cuidar de si e comprometer-se também pela vida digital das pessoas íntimas e das novas gerações, com uma atitude positiva e construtiva diante das tecnologias e do bem-estar digital. Muitos adultos estão entregues às próprias bolhas digitais, esquecem de transmitir suas experiências aos próximos, como por exemplo, a manutenção da própria vida, autocuidado, nutrição qualificada, saúde, tempo de desconexão, lazer e hobbies. Todos estamos imersos em um modo de vida hiperconectado, sendo relevante reafirmar e reconhecer o valor e legitimidade das experiências não digitais.

Nara Helena Lopes é psicóloga clínica e realiza pós doutorado em psicologia da experiência digital pelo Instituto de Psicologia da USP. Site www.animapsique.com.br