Sanções econômicas: punição ou “humanitarização das intervenções”?

Por Alcides Eduardo dos Reis Peron

Agindo mais como um mecanismo punitivo sobre as sociedades do que um dispositivo de coação política, as sanções colocam a população civil em estado de vulnerabilidade e estimulam diversas partes a um potencial conflito.

Introdução

Com o término da Guerra Fria, e das tensões entre Estados Unidos e União Soviética, é notável que as relações internacionais – enquanto disciplina e enquanto dimensão de ação internacional dos Estados – tornam-se otimistas quanto à possibilidade de ocorrência de grandes conflitos. Em geral, é patente que nesse período ainda se temia a proliferação de dispositivos nucleares e outras armas de destruição em massa, no entanto, o grande foco de ameaças internacionais parecia ser a emergência do terrorismo e a profusão de conflitos de baixa intensidade[1] em “Estados falidos” na periferia do sistema.

Diante desse contexto, o então novo governo Clinton revê as estratégias de segurança internacional dos EUA, incorporando o “espírito do tempo” ao lidar com essas questões a partir de uma dimensão liberal-institucional. Em outras palavras, as novas estratégias de segurança dos EUA irão lidar com a profusão dessas ameaças a partir de uma política de engajamento em foros multilaterais e o alargamento do sistema liberal-democrático a partir dessas instituições e organizações. De acordo com essa perspectiva, a expansão do liberalismo e da democracia sobre os “Estados falidos”, através de organizações internacionais que irão auxiliar no desenvolvimento e maturação de instituições democráticas, tem o potencial de trazer transparência para as relações políticas, desestimulando pretensões autoritárias, políticas protecionistas e, consequentemente, a emergência de conflitos que poderiam desestabilizar a região e o próprio Estado.

Influenciada por esse contexto do período Clinton, as Nações Unidas irão lançar a chamada “agenda para a paz”, em 1992, sob a secretaria de Boutros Boutros-Ghali. Nesse documento, que será o pontapé inicial para a formulação das “operações de paz” e os debates acerca das “intervenções humanitárias”, são conceituados os mecanismos de “diplomacia preventiva”, “peace keeping”, “peace making” e “peace building”, os quais versariam respectivamente pela capacidade dessa organização e de ação conjunta dos Estados em prevenir, transformar, administrar os processos conflituosos e, posteriormente, restaurar a paz entre agentes conflitantes (Estados e grupos armados etc). Mais adiante, em 1994, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), irá ainda conceituar a ideia de “segurança humana”, em que o indivíduo, e não os Estados, são foco das políticas de segurança internacional, sendo este último tão somente o garantidor do bem-estar, liberdade e cidadania da sociedade. Nesse mesmo documento “Informes Sobre o Desenvolvimento Humano”, o PNUD irá descrever que os objetivos da segurança humana são, “manter as pessoas a salvo de ameaças crônicas como a fome, as doenças, a repressão (freedom from want) e protegê-las de mudanças súbitas e nocivas nos padrões da vida cotidiana, por exemplo, das guerras, dos genocídios e das limpezas étnicas (freedom from fear)” (Oliveira, 2009).

É exatamente diante de todo esse movimento político internacional dos anos 1990 e 2000, e produção de consensos acerca da melhor forma de se agir sobre os Estados, prevenindo e transformando os conflitos internacionais, que se verifica um aumento generalizado do recurso a sanções políticas e econômicas pela ONU e seus países membros, contra Estados pária – que, além de desafiar a ordem internacional, são responsáveis por práticas genocidas, negligentes ou autoritárias em seu território. Há aqui um aprofundamento da ideia de que os Estados e a ONU teriam uma coletiva “responsabilidade de proteger” essas populações em risco, diante da falência e omissão dos respectivos Estados. De acordo com a ONU, e os membros do conselho de segurança dessa organização, ainda que a intervenção militar esteja prevista entre os dispositivos de ação “humanitária”, as formas mais brandas e efetivas seriam a promoção de sanções políticas e econômicas contra esses Estados.

Isso porque se acreditava não apenas em uma maior “humanidade” e consciência das intervenções por meio de sanções, mas sempre se sustentava no conselho de segurança que essas medidas seriam capazes de agir diretamente sobre as preferências políticas dos líderes dos Estados alvo, reduzindo o seu apoio internacional, o que os fragilizaria política e economicamente. Passados quase 30 anos desde que as Nações Unidas e os Estados centrais vêm adotando as sanções como forma de intervenção, é possível afirmar que elas têm obtido êxito? Buscaremos, neste breve texto, debater algumas problemáticas relativas ao emprego de sanções econômicas, buscando discutir em que medida esse instrumento tem apresentado pouca capacidade de coação política, do que de fragilização e atenuação de condições sócio-políticas das populações dos “Estados pária”.

O que são e como se caracterizam as sanções internacionais

É possível se afirmar que essa perspectiva desenvolvida pelos EUA e pela ONU, liberal-institucionalismo, paz democrática e segurança humana, derivam da maturação dos ideais da escola dos “estudos para a paz”. Em meados dos anos 1960, profundamente estimulada pelo contexto político efusivo desse período, e ainda marcado pelas perspectivas teóricas da escola de Frankfurt – mais precisamente sobre o pensamento “freud-marxiano” de Hebert Marcuse – os estudos para a paz se caracterizarão, conforme afirma Pureza (2009), como uma teoria holística e normativa para a paz, se contrapondo aos métodos, perspectivas e categorias analíticas do realismo e do neorrealismo  – as correntes hegemônicas das relações internacionais até então. Nesse momento, um dos maiores pensadores desse campo, responsável pela fundação da revista Peace Research, é Johan Galtung, cujas categorias analíticas irão tumultuar, até os dias de hoje, os alicerces do pensamento realista.

De acordo com Galtung, o pensamento hegemônico tende a enxergar a paz a partir da mera ausência de conflitos, entre Estados e mesmo entre outros atores subnacionais, o que categorizaria a chamada “paz negativa” – em que os únicos elementos motrizes para ocorrência de um conflito seriam as formas de violência direta, como a agressão física e mesmo mental promovidas pelos meios tradicionais. Isso faz com que um amplo espectro do exercício da violência seja encoberto, não se levando em consideração aquilo que ele irá denominar enquanto violência indireta, ou seja, formas de desigualdade socioeconômicas, marginalização social, culturas opressivas e formas de exclusão social e política, que tendem a estimular e fortalecer novos e mais nocivos conflitos interestatais e internacionais. Assim, Galtung irá sustentar que a única forma de se desenvolver uma “paz positiva”, seria através da ação política e institucional sobre as formas de violência indireta, que matizam econômica e socialmente os países, impossibilitando um desenvolvimento sustentável.

Assim, essa perspectiva será determinante para que a ONU e os Estados centrais deem preferência ao uso de sanções econômicas, diversificando o seu conteúdo e seu método de aplicação contra os Estados. Diversos países têm sido alvos dessas sanções ao longo dos anos 1990 e 2000, como o Iraque, o Kuwait, a ex-Iuguslávia, a Somália, a Líbia, o Haiti, Angola, Ruanda, Serra Leoa, Sudão, Rússia, Síria e Irã, ou por cometerem e permitirem atos genocidas em seu território, ou por realizarem “afrontas” à ordem internacional, como no caso da Rússia, que recentemente levou adiante a anexação da região da Criméia, na Ucrânia.

Existem diversos tipos de sanções internacionais, que variam desde medidas políticas e diplomáticas, como condenações, protestos, limitação da escala diplomática, medidas comunicacionais e culturais, cancelamento de intercâmbios culturais, restrição de privilégios de vistos, privilégios de voo e pouso, até medidas mais duras, como medidas financeiras, cancelamento de assistências econômicas e militares, congelamento e confisco de bens internacionais de governos, membros de governo ou de outros civis, e, por fim, as medidas comerciais e técnicas, restringir ou embargar importações ou exportações, banir exportação de tecnologia, suspender acordos comerciais, dentre outros.

Em geral, como propõe Moret (2014), principalmente no que tange às medidas financeiras e comerciais, é possível agrupá-las em dois grandes grupos, as compreensivas e as direcionadas (Targeted). As sanções compreensivas se caracterizam por terem um escopo amplo, abarcando governos e sociedades como um todo, sendo conhecidas como instrumento de “punição e sofrimento coletivo” (Moret, 2014: 02). Isso porque geralmente ela se direciona a afetar os setores mais vulneráveis da sociedade, mulheres, crianças, idosos, trabalhadores etc, reduzindo renda, acesso a determinados bens alimentícios, e ligados à saúde, como remédios e tratamentos, levando à Weiss (1997) sugerir que seus impactos seriam mais punitivos do que os de uma força militar. Por sua vez, as sanções direcionadas centram-se em ações e atores individuais como, por exemplo, um grupo terrorista, ou redes criminosas, envolvendo a redução de trocas comerciais, embargos, com o objetivo de eliminar o acesso a recursos vitais. Nesse sentido, é importante notar que, desde 1990, a ONU opta por sanções compreensivas, sendo que em meados dos anos 2000 é que algumas sanções direcionadas começaram a ser aplicadas.

As sanções compreensivas, diferentemente das direcionadas podem ser consideradas uma melhor opção do ponto de vista dos países membros da ONU, por um lado, por produzirem um isolamento geral do Estado alvo do comércio global, por outro, por serem muito menos custosas do que intervenções militares, o que produz desgastes de diversas ordens aos interventores, e relativamente menos custosas do que as direcionadas, pois não requerem um esforço investigativo sobre grupos criminosos e terroristas, fontes de recursos etc.

Os efeitos humanitários das sanções econômicas

Até o momento, diversos estudos têm sido realizados para compreender a efetividade política das sanções econômicas e políticas sobre a ação política dos Estados, mas fundamentalmente os impactos humanitários dessas sanções. Isso porque, desde o final dos anos 1990, muita dúvida tem sido lançada por parte de diplomatas e especialistas da área quanto à capacidade desses instrumentos em atingir o seu objetivo político, em detrimento do sofrimento de diversas camadas da população.

Em uma entrevista ao jornalista John Pilger, em seu documentário A guerra que você não vê, de 2010, o ex-secretário geral assistente da ONU, Dennis Halliday afirma que as sanções multilaterais impostas ao Iraque desde 1990 podem ser responsáveis não por arrefecimento da postura de Saddam Hussein, mas pela morte de aproximadamente 500 mil crianças de até 5 anos, por privar o país de medicamentos essenciais ao combate à mortalidade infantil. Segundo o ex-secretário:

“As próprias provisões da carta da Declaração dos Direitos Humanos foram deixadas de lado. E nós estamos travando uma guerra através da ONU contra as crianças e o povo do Iraque, com resultados incríveis. Resultados que você não esperaria ver em uma guerra sob a Convenção de Genebra. Nós estamos alvejando civis, ou pior, nós estamos alvejando crianças. (…) É uma situação monstruosa para as Nações Unidas, para o mundo ocidental, para todos nós que fazemos parte de algum sistema democrático, que somos de fato responsáveis pelas políticas de nossos governos e a implementação de sanções econômicas.” (Pilger, 2009).

No mesmo documentário, Pilger irá entrevistar um diplomata do alto escalão da chancelaria britânica entre 1989 e 2004, Carne Ross, um dos principais responsáveis pela administração de sanções sobre o governo iraquiano no período. Algumas das revelações de Ross são chocantes, pois escarnam a ineficiência dessas sanções e os métodos estadunidenses e britânicos para livrarem-se das consequências dessas políticas. Segundo ele:

“O peso das evidências claramente indicam que as sanções causaram sofrimento humano em massa entre iraquianos comuns, em especial, crianças. Nós, o governo dos EUA e do Reino Unido somos os principais arquitetos e violadores das sanções, e estávamos bastante cientes dessas evidências na época. Mas nós ignoramos amplamente ou pusemos a culpa desses efeitos no governo de Saddam. As sanções efetivamente negam a toda a população os meios para viver” (Pilger, 2009).

Em diversas iniciativas, pesquisadores de diferentes áreas vêm debatendo os impactos de sanções sobre países recentemente. O Instituto Dinamarquês de Estudos Internacionais (Lyne 2012, apud Moret, 2014) sugere que sanções implementadas, principalmente pela União Europeia sobre a Síria, teêm contribuído profundamente para a degradação socioeconômica do bem-estar nesse país, principalmente na área da saúde. O estudo demonstra que as sanções foram responsáveis pela duplicação do desemprego, queda de salário entre membros de governo e grupos de refugiados, subida do preço de commodities básicas, cortes em direitos sociais, e sistemas de microcrédito, dificuldade na importação de remédios, e redução na produção interna de medicamentos, aumentos nos índices de depressão, suicídio e violência doméstica etc.

A partir de então, uma série de diferentes estudos tem buscado observar os efeitos políticos diversos das sanções econômicas e políticas. Em estudos realizados por Miyagawa (1992), as sanções econômicas podem ser utilizadas pelos líderes como forma de estender a sua legitimidade, justificando a repressão contra movimentos contrários aos regimes, algo verificado, por exemplo, em Cuba, quando Fidel Castro conecta as sanções a um discurso anti-imperialista durante os anos 1970 (Peksen, 2009). De acordo com Hufbauer & Oegg (2003), as sanções, ao isolarem os países da economia global e da ação política multilateral, tendem a intensificar a deterioração dos direitos humanos, uma vez que desencoraja movimentos de capital estrangeiro capazes de alavancar a economia.

Por fim, como Peksen (2009) irá demonstrar a partir de seu estudo empírico, as sanções econômicas tendem a fortalecer as capacidades repressivas do regime alvo, permitindo-o empregar métodos violentos contra a população, além de proteger uma determinada elite geralmente apoiadora do regime – em detrimento da população em geral. Isso é demonstrado a partir de uma série de modelos construídos pelo autor, o que o leva a concluir que as sanções econômicas, principalmente aquelas aplicadas de modo multilateral, são eminentemente contra-produtivas, provocando a fragilização dos direitos humanos e incrementando o poder dos regimes ditatoriais alvo.

Notas conclusivas

Como pudemos observar, o recurso às sanções econômicas, apesar de se demonstrar viável e menos danoso às populações do que uma intervenção militar, tende a provocar problemas estruturais nas economias locais e regionais. Isso é amplamente demonstrado por diversos autores, explicitando o modo como a população civil acaba se tornando o principal alvo desses tipos de medidas, com liberdades civis e sociais restringidas, ampliando o custo humanitário dessas medidas. Mais do que isso, as sanções compreensivas parecem produzir os efeitos inversos do esperado, pois, ao invés de agirem nas estruturas de preferências desses líderes – que muitas vezes não foram eleitos democraticamente e, portanto, não respondem a pleitos eleitorais normais, não possuindo um “cálculo eleitoral” em sua dinâmica de ação –, acabam por reforçar o poder de regimes autoritários.

De certa forma, as sanções acabam por reforçar um contexto de violência indireta e estrutural sobre a população, ao estimular desigualdades, exclusões, privar acessos e desmobilizar instituições capazes de estimular algum processo cíclico de fortalecimento de vínculos sociais e solidariedade. Agindo mais como um mecanismo punitivo sobre as sociedades do que um dispositivo de coação política, as sanções partem contra um ideal político de segurança humana e de diplomacia preventiva, pois colocam a população civil em estado de vulnerabilidade e estimulam diversas partes a um potencial conflito.

Alcides Eduardo dos Reis Peron é doutor em política científica e tecnológica pela Unicamp. Pesquisador do GAPI-Unicamp e professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo.

Referências

Hufbauer, G. & Oegg, B..  “The impact of economic sanctions on US trade: Andrew Rose’s gravity model”. International Economics Policy Briefs, PB03–4, Institute for International Economics (http://www.iie.com/publications/pb/pb03–4.pdf ). 2003

Miyawa, M., 1992. Do economic sanctions work? New York: St. Martin’s.

Moret, E. S. Humanitarian impacts of economic sanctions on Iran and Syria. European Security. 2014.

Peksen, D..  “Better or worse? The effect of economic sanctions on human rights”. Journal of Peace Research. 46 (1). 2009.

Pilger, John. The War you Don’t See. Dartmouth Films. 2010.

Pureza, J. M.. “Segurança humana: Vinho novo em odres velhos?”.  In: Nasser, R. (org.). Os conflitos internacionais em múltiplas dimensões. São Paulo: Editora Unesp: Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação, 2009.

Weiss, T.G. et al.. Political gain and civilian pain: humanitarian impacts of economic sanctions. Lanham, MD: Rowman & Littlefield. 1997.

[1] Esses conflitos seriam entendidos por Mary Kaldor (1999) como “novas guerras”, que evoluem principalmente no cenário posterior à Guerra Fria, com o desmantelamento das zonas de influência norte-americana e soviética, e em grande medida se caracterizariam por conflitos motivados por interesses privados, em grande medida influenciados pelas políticas de globalização, tendo ainda como alvo a população civil.