Por Ricardo Wesley M. Borges
“Qualquer mal que os caluniadores do mundo possam praticar, o mal que os bons praticam é o mal mais nocivo”
Friedrich Nietzsche
A desumanização do outro costuma estar presente na maldade que é infligida a alguém. A teóloga Fleming Rutledge toca nesse ponto quando menciona a familiar dinâmica humana “onde é prática comum desumanizar e até mesmo demonizar outros humanos que pretendemos excluir ou matar”. Com frequência, são justamente os que estão imbuídos de um senso de religiosidade, atrelado a uma autopercepção de superioridade moral, os que potencialmente podem provocar maior dano no mundo.
É a experiência da maldade no mundo real, e não somente a discussão abstrata a seu respeito, a que nos ajuda a tentar aproximações para alguma compreensão de sua existência e sobre como reagimos a ela. Em diferentes narrativas religiosas e filosóficas, encontramos essas tentativas de dar sentido à realidade do mal, ou de sua expressão concreta, a maldade. Por isso há abundância de palavras escritas sobre a origem do mal, suas causas, por que ele existe, de onde vem e como se manifesta.
Ainda assim, a questão mais antiga da humanidade em relação à maldade, e possivelmente a mais importante já expressada, talvez seja: “até quando?”, porque ela revela um clamor e uma indignação quanto ao que Henri Blocher chama a “injustificável realidade”[1] da maldade. A indignação diante do que não deveria estar acontecendo. Ela aparece diante de nós, ainda assim, nos indignamos com ela, e por isso mesmo a nomeamos, maldade.
Juan de Vere, o personagem e voz narradora da novela Assim começa o mal, de Javier Marías, nos recorda que a maldade está ao alcance de qualquer um, até do mais idiota: “o mais fácil do mundo é destruir e causar dano, para isso não se precisa de sagacidade nem de agudeza e menos ainda de inteligência (…) basta ter má índole, má-fé, má ideia; os mais brutos e mais tapados possuem tudo isso a rodo”[2]. Quando a abundância de maldade ainda nos choca, um possível benefício seria o de aprofundar a reflexão a seu respeito, elaborar alguma razão e compreensão, caso seja possível, e lidar com outra pergunta fundamental, sobre se seria possível eliminar, coibir, ou ao menos diminuir os efeitos da maldade no mundo.
Entre as muitas tentativas para se tentar explicar o problema do mal, ou para tentar lidar com ele, vemos na literatura fundacional da fé judaico-cristã, em especial no livro de Gênesis, várias histórias contadas que buscam dar conta da tormentosa questão. Entre elas, a do irmão assassino, Caim. Poderia a questão levantada por Caim para tentar evadir-se de seu crime e de sua responsabilidade – “acaso sou guardador do meu irmão?” (Gênesis 4:9) – ser exatamente o discurso que nos ajuda a entender a gravidade e o alcance do mal? Por que seria eu responsável pelo outro? Surpreendente que se trata da fala daquele que acabou de assassinar seu irmão de sangue. A ausência de empatia, do saber-se colocar no lugar do outro, do que lhe é diferente, aliada a uma busca egoísta e mesquinha por seus próprios interesses estaria na raiz da manifestação dessa maldade.
O teólogo croata Miroslav Volf, refletindo sobre o genocídio no excelente Exclusão e abraço, afirma que “a história de Caim e Abel é não apenas um exemplo de rivalidade entre dois irmãos, mas também narra a estrutura do encontro entre ‘eles’ e ‘nós’”[3]. Para Volf, cada ser humano é potencialmente Caim e Abel, de modo que somos afetados por nossas percepções das diferenças, pela inveja, pela raiva, levando à violência, à exclusão e à fuga das responsabilidades. Uma das ironias da narrativa é que ao final o Criador oferece um guardião àquele que não quis ser guardião, indicando que o assassino será protegido de mais violência, através de um sinal, antecipando alguns dos grandes e difíceis temas das escrituras cristãs, os do perdão, da reconciliação – apontando que os inimigos deverão ser protegidos para que se ponha um fim ao ciclo da maldade. Convém, porém, antes de avançar nesses caminhos de solução, refletir sobre a natureza e a dinâmica dos perpetradores da maldade.
A desumanização do outro costuma estar presente na maldade que é infligida a alguém. A teóloga Fleming Rutledge toca nesse ponto quando trata da “familiar dinâmica humana no mundo como o conhecemos, onde é prática comum desumanizar e até mesmo demonizar outros humanos que pretendemos excluir ou matar”[4]. Com frequência, são justamente os que estão imbuídos de um senso de religiosidade, atrelado a uma autopercepção de superioridade moral, os que potencialmente podem provocar maior dano no mundo. Algo na linha do que Nietzsche já afirmava, “qualquer mal que os caluniadores do mundo possam praticar, o mal que os bons praticam é o mal mais nocivo”[5]. Chico César já bem nos lembra, “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa”. Ou ainda, como Volf o expressa, “há demasiada injustiça na busca obstinada da verdade: há demasiada desonestidade na luta inflexível pela justiça”. Assim, reconhecer que a autoenganosa presunção moral costuma levar à soberba que não percebe que, em lugar de cidadãos “civilizados”, de moral elevada, na verdade são os “cidadãos de bem” que se tornam os bárbaros perversos. Ou deveríamos usar a primeira pessoa do plural, nos tornamos? Porque talvez a primeira tarefa seria essa, admitir que a exclusão do outro, o desejo pela “limpeza”, essa manifestação da maldade, elas se dão como uma expressão da barbárie que está em primeiro lugar dentro de cada um de nós.
Conhecer “o Outro”, nos recomenda Kapuściński[6], pode ser um caminho para evitar a barbárie do mal. Para ele, construir essas pontes de conhecimento entre “nós” e “os Outros” seria não apenas “um dever ético, mas também uma tarefa urgente para nosso tempo em um mundo onde tudo é tão frágil e onde há tanta demagogia, desorientação, fanatismo e má vontade”[7]. Se bem que ele mesmo reconhece que não é um esforço simples, nem automático, “mas envolve vontade e um esforço que nem todos estão sempre prontos para empreender”[8]. De todo modo, quando a indignação frente à maldade ainda vence o cansaço e a resignação, pode ser que alguns caminhos sejam encontrados para ao menos tentar diminuir os ciclos de maldade, seus alcances e efeitos.
Assim, volto ao clamor dos muitos poemas religiosos – “até quando?” –, esses que expressam um profundo desejo para que a maldade encontre o seu fim. Na tradição do campo religioso da fé cristã, é bom reconhecer que há diferentes caminhos propostos para a libertação e vitória sobre a maldade. Lamentavelmente, por vezes a Igreja, ou aqueles que se apropriaram indevidamente de sua legítima mensagem, optou pelas vias da dominação e opressão, do triunfo dos poderosos, na colonização ou exclusão dos que não se adequavam. Volto a admitir que a maldade é por vezes levada a cabo de maneira mais eficiente, sendo essa própria eficiência uma das expressões desse mal, quando implementada por quem julga estar realizando o bem. Os profetas bíblicos lutavam contra essa inversão do bem em mal, no que Blocher nomeia como uma “resistência teimosa à atração inebriante de reviravoltas paradoxais”[9], e alertavam para isso: “Que aflição espera os que chamam o mal de bem e o bem de mal, a escuridão de luz e a luz de escuridão, o amargo de doce e o doce de amargo!” (Isaías 5:20). Também reconheciam que essa maldade provinha dos que se criam melhores que os demais, ainda que o profeta guardasse a esperança de que lhes chegaria um justo juízo por essa soberba: “Que aflição espera os que são sábios aos próprios olhos e pensam ter entendimento!” (Isaías 5:20-21).
Nessa longa jornada esperando que o mal encontre o seu fim, os cristãos encontram na cruz brutal de Cristo a chave para buscar finalmente fazer sentido de toda a maldade na história e, ali, sobrepujá-la. Aquele que se entrega e se sacrifica pelos demais, vencendo a maldade em si mesmo, sofrendo-a, vencendo a morte ao submeter-se a ela, se transforma no marco máximo, ao menos nessa tradição cristã, da luta contra o poder do mal. Resta evidente que a cruz é, em muitos níveis e sentidos, inexplicável, um escândalo. Se o assassino Caim foi poupado, como fazer sentido a execução do inocente Cristo, o filho abandonado pelo pai (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”). Pergunta do Cristo ecoada na confissão de Drummond, “Por que me abandonaste, se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco”. Foi preciso um Cristo ressuscitado na estrada de Emaús[10], caminhando e conversando com discípulos que não o reconheciam, enquanto ele repassava com eles todos os acontecimentos narrados em suas escrituras para tentar entender o que havia acontecido no calvário. Mas seus olhos apenas se abriram quando à mesa ele voltou a partir o pão, e lho deu. A eucaristia, o voluntário sacrifício máximo para que o outro tenha vida, para que todos tenham vida, seria a vitória final sobre toda a maldade.
Claro que se poderia argumentar que tipo de vitória é essa quando a maldade seguiu avassaladora, e ainda o é até hoje. Diante dela, caso a indignação virtuosa ainda se sobreponha à resignação cínica, e não se inebrie em si mesma provocando ainda mais maldade a rodo, talvez se encontrem caminhos em um esforço contínuo para romper os ciclos do mal, para resisti-lo, para evitar a acomodação à maldade que nos levaria a ciclos intermináveis de violência e exclusão. Isso vale mesmo quando as expectativas são mais modestas ou realistas, dessas que esperam que tenhamos ao menos um “mundo mais tolerável”[11], nas palavras de Jacques Ellul, buscando reduzir o abismo entre a desordem e a justiça, para o benefício em especial dos mais vulneráveis, das vítimas da crueldade no mundo. Claro que as aspirações podem ser maiores. Cada um saberá dizer o que lhe move e que motor lhe impulsiona e traz esperança. De minha parte, creio que se aprendermos algo sobre ser melhores guardadores de nossos irmãos, em especial dos outros, dos que são diferentes, mais e melhores chances teremos para limitar a maldade e para ver florescer um bem comum, o bem de todos, nosso e das futuras gerações.
Ricardo Wesley M. Borges é teólogo formado em engenharia agronômica pela ESALQ/USP (1992), estudos bíblicos e culturais pelo All Nations Christian College (Reino Unido, 1998) e Master of Arts em Liderança pela Open University (Reino Unido, 2017). Trabalhou a partir de 1993 no movimento interdenominacional protestante Aliança Bíblica Universitária do Brasil, da qual foi secretário-geral, e trabalha desde 2007 na International Fellowship of Evangelical Students, atualmente na área de Scripture Engagement (estudo das Escrituras). É pastor da Igreja Metodista Livre em São Paulo desde 2014.
[1] Evil and the cross, Henri Blocher, IVP, Downers Grove, 1994, p. 11.
[2] Assim Começa o Mal, Javier Marías, Companhia das Letras, São Paulo, 2015, p. 66.
[3] Exclusão e abraço: uma reflexão teológica sobre identidade, alteridade e reconciliação, Miroslav Volf, Mundo Cristão, São Paulo, 2021, p. 126.
[4] The Battle for Middle-Earth, Fleming Rutledge, William B. Eerdmans, Grand Rapids, 2004, p. 58.
[5] Ecce Homo: How One Becomes What One Is, Penguin, London, 1979, p. 100.
[6] “As três possibilidades que mencionei sempre estiveram diante do homem cada vez que ele encontrou um Outro: ele poderia escolher a guerra, poderia proteger-se atrás de um muro, ou poderia iniciar um diálogo”[minha tradução], The Other, Ryszard Kapuściński, Verso, London, 2018, p. 82.
[7] The Other, Kapuściński, p. 49.
[8] The Other, Kapuściński, p. 31.
[9] Evil and the cross, Blocher, p. 86.
[10] Evangelho segundo Lucas, capítulo 24.
[11] The Presence of the Kingdom, Jacques Ellul, Helmers & Howard, Colorado Springs, p. 35.