Por Karen Canto
Reconstruir a vida na condição de refugiado implica em recomeçar numa nova sociedade com diferenças inerentes ao idioma, clima e cultura. Também impõe deixar para trás familiares, amigos e muitas vezes uma carreira bem estabelecida. Nesse contexto, a reinserção de um imigrante com status de refugiado no mercado de trabalho do país que o acolhe, em uma posição que contemple suas qualificações profissionais, representa um aspecto fundamental.
O Brasil registrou nos últimos anos um aumento histórico no número de solicitações de refúgio. Entretanto, esse aumento não foi acompanhado pela oferta de vagas de trabalho. Enquanto os pedidos de refúgio aumentaram cerca de 160% de 2018 para 2019, a entrada de refugiados e solicitantes no mercado de trabalho formal cresceu apenas 52%. Das dificuldades com a língua portuguesa à falta de informação das empresas, são muitos os obstáculos enfrentados.
Direito garantido por lei esbarra na desinformação e preconceito
A legislação trabalhista brasileira garante igualdade de direitos e condições dignas de trabalho para todos e é aplicável a qualquer trabalhador, independentemente de sua nacionalidade. Assim que recebe o Protocolo de Solicitação de Refúgio, o solicitante está apto a obter o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e começar a exercer atividade profissional formal amparado pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Trata-se de um processo simplificado, porém, segundo dados de uma pesquisa realizada entre o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) a taxa de desemprego medida entre refugiados é de 19,5%, um índice bem superior à média nacional, que gira em torno de 12%. Uma diferença grande considerando-se que refugiados apresentam uma qualificação superior: cerca de 37% tem curso superior, em comparação com 17% dos brasileiros.
Apesar da boa qualificação, refugiados acabam em desvantagem em processos seletivos formais pois muitas empresas acreditam que o processo de contratação de um estrangeiro é mais burocrático, mais caro e mais demorado em relação à contratação de um brasileiro. Mesmo com informação de fácil acesso, algumas empresas ainda acreditam que possa haver alguma ilegalidade na contratação de refugiados, passível de causar problemas com Ministério do Trabalho ou mesmo com a Polícia Federal. Aliado à desinformação, o preconceito também é um fator determinante. Refugiados são muitas vezes associados a imigrantes ilegais, a fugitivos e, em alguns casos, a terroristas, segundo dados revelados por uma pesquisa realizada por Leandro de Carvalho, professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB).
Iniciativas de apoio para recolocação no mercado de trabalho
Para auxiliar o processo de reinserção dos refugiados no mercado de trabalho, o Acnur conta com algumas parcerias importantes com consultorias e empresas de recursos humanos. O Programa de Apoio para a Recolocação de Refugiados (Parr), um projeto sem fins lucrativos, é fruto de uma dessas parcerias. Fundado em 2011 pelo empresário João Marques, uma das maiores referências no tema imigração, o Parr já impactou a vida de mais de 3 mil refugiados, com a proposta de sensibilizar empresas brasileiras para o potencial e qualificação desses trabalhadores. “O objetivo é restaurar a dignidade e autoestima dos refugiados através do trabalho, criando oportunidades para que esses profissionais sejam absorvidos pelo mercado”, conta Marques, que é presidente da Emdoc, consultoria especializada em imigração que financia o projeto.
O Parr prepara os refugiados para o mercado profissional brasileiro com treinamentos que ensinam não apenas sobre a legislação trabalhista, mas também sobre diferenças culturais que podem impactar a contratação. Também oferece treinamento para empresas sobre como receber o refugiado afim de permitir maior integração, e fazendo um acompanhamento após a contratação para diminuir demissões precoces.
“Não se trata de assistencialismo e sim de criar oportunidades em que todos saem ganhando. O refugiado ganha a chance de reconstruir sua vida e a empresa ganha em qualificação profissional, pois muitos refugiados tem formação diferenciada, pós-graduação e falam vários idiomas. Além da mensagem positiva aos demais funcionários de que a empresa tem responsabilidade social de fato”, diz.
Outra ação que visa à redução da distância entre refugiados e o setor empresarial é a plataforma online Empresas com Refugiados. Fundada em abril de 2019, a iniciativa é uma colaboração entre a Rede Brasil do Pacto Global e o Acnur, e tem o objetivo de apoiar iniciativas privadas de capacitação profissional de refugiados, considerando as necessidades de empregabilidade dessa população e os interesses do setor privado.
A importância do empoderamento da mulher refugiada
As mulheres representam cerca de 35% do total de refugiados no Brasil, de acordo com os dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Embora em menor proporção, as mulheres são maioria entre as pessoas em situação de refúgio fora do mercado de trabalho – cerca de 55%, segundo dado do Atlas de Migração do Estado de São Paulo, produzido pela cientista política Rosana Baeninguer, do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó – Nepo/Unicamp.
O programa Empoderando Refugiadas é uma parceria entre a Rede Brasil do Pacto Global, a ONU Mulheres e o Acnur, com o objetivo de capacitar mulheres refugiadas a ingressar no mercado de trabalho. Em sua quarta edição, a iniciativa conta com oficinas de treinamento, empreendedorismo e mentorias. A seleção das participantes é feita por meio de uma parceria com o Parr. “Algumas mulheres chegam ao programa muito fragilizadas, com histórias de violência e abuso terríveis. O programa vai muito além de prepará-las profissionalmente, ele resgata a autoestima dessas mulheres”, conta Marques.
Coronavírus: em meio à crise, há criatividade
A crise gerada pela pandemia do novo coronavírus trouxe incerteza e insegurança para todo o país e, entre a população de refugiados, não foi diferente. Muitos imigrantes com status de refugiados que atuam empreendendo como microempresários individuais (MEI) se viram repentinamente sem perspectiva.
Esse foi o caso da guianense Renée Ross Londja, que vive no Brasil desde 2011. A artesã que confecciona bonecas e acessórios com tecidos étnicos é uma das participantes do programa Deslocamento Criativo, uma iniciativa que tem como lema “conectar refugiados à economia criativa”. Segundo Maria Nilda, jornalista, idealizadora e diretora do projeto, a ação tem como ponto de partida uma pesquisa financiada pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo para mapear o perfil dos refugiados residentes na capital paulista que atuam na área da economia criativa com moda, gastronomia, arte e artesanato. A partir dos dados obtidos, o projeto vem promovendo a conexão desses profissionais com setores da sociedade que desejam conhecer ou contratar esses serviços.
“Trabalhamos em contato com o Acnur e com apoio e parceria do Sesc-SP. Promovemos cursos de capacitação, feiras e eventos, onde os profissionais podem se aprimorar ou expor seu trabalho”, diz.
A crise, no entanto, afetou profundamente o projeto, pois todos os eventos previstos foram cancelados. Foi justamente de uma das demandas da pandemia que surgiu a solução para um grupo de mulheres refugiadas: “Temos um grupo de moda e um grupo de artesãs. Vamos fazer máscaras de tecido!”, relata Maria Nilda, entusiasmada com a ideia. O grupo aceitou a proposta e prontamente começou a testar modelos até chegar a uma máscara 100% algodão, dupla face.
Como o Ministério da Saúde orientou formalmente a população a utilizar máscaras caseiras de tecido, o negócio deslanchou. Renée, que também participa da ação, conta que o marido estava desempregado há bastante tempo: “Ele é professor de idiomas, mas agora está cuidando das entregas”. E complementa explicando que as máscaras estão gerando renda nesse momento difícil, e ajudando as pessoas”.
A ação terá apoio do convênio estabelecido entre a Unicamp/Nepo e o Ministério Público do Trabalho. Assim, parte das máscaras serão adquiridas para serem distribuídas gratuitamente para populações vulneráveis.
Karen Canto é doutora em química, aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).