Por Maria Clara Ferreira Guimarães
O livro de Fabio Rubio Scarano Regenerantes de Gaia trata o conceito de Gaia desenvolvido nos anos 1960 pelo cientista James Lovelock sob diversas óticas, abordando fauna, flora, ser humano e leis naturais compondo um supra organismo. O autor inicia o livro a intenção de explicar Gaia, um ser único. Como ela está presente e pode ser representada nos conceitos da ciência e da arte (literatura, filme e quadros). Discute como a visão dicotômica levou à crise ambiental, assim como os mecanismos de melancolia (como nos filmes de Werner Herzog ou Lars von Trier) e paralisação, para entrar nos movimentos de cura, que inclui os sacrifícios necessários para voltarmos a integrar de forma plena essa natureza.
Apresenta as possibilidades de colapso para trazer, então, a probabilidade de perpetuação seja neste planeta (com a mudança radical do ser humano), seja em outros (com a mudança radical do meio ambiente).
O autor exemplifica uma situação de equilíbrio com esse supraorganismo que é Gaia citando os sistemas de produção como a ecologia sintrópica de Ernst Grötsch, ou mesmo os assentados do Sepé Tiajuru da região de Ribeirão Preto.
Há no livro uma revisão muito interessante sobre as visões de natureza, ecologia, meio ambiente, bioma, que se aproximam ou afastam da noção do ser humano como integrante do sistema natural. Olha a história da ciência para identificar quando passamos a não ser natureza e, assim, usar os recursos do planeta sem muitas reflexões sobre sustentabilidade, em um movimento altamente predatório. A partir desse momento, o meio ambiente passou a prestar serviços ecológicos para a civilização em vez de ver o ser humano, como integrante do meio ambiente, prestar e receber serviços, em um sistema de win win e não de exploração colonizadora.
Para explicar Gaia, Scarano faz paralelos nos moldes junguianos. As crises são a falta de diálogo entre consciente (ser humano) e subconsciente (fauna e flora). No macroorganismo doente, a inconsciência está em dissonância com a subconsciência.
O reconhecimento de sermos um só, vivo e não vivo, humano e natureza, assim como entendiam os povos ancestrais, é o caminho para sermos saudáveis. Precisamos passar pelo processo de nos tornarmos um, e este caminho pode gerar melancolia. Porém, este momento abre a possibilidade de reflexão e mudança.
“A vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”
A frase de Oscar Wilde pode ser uma das afirmações trazidas pelo livro. Não no sentido de imitação, mas do tipo de predição de futuro que há nas diferentes literaturas apocalípticas (como em J. G. Ballard) ou nas literaturas que tratam de avanços tecnológicos. Essa mesma predição é exercício de imaginação metodológico que a ciência propõe. Logicamente que na ciência há leis naturais e abstrações metodológicas que tangem essas predições (não que as previsões literárias não sigam essas leis, porém estão muito mais livres para segui-las à risca ou não, como na literatura de Cyrano de Bergerac que imaginou uma máquina para a viagem espacial no século XIV).
O livro é uma metalinguagem da sua mensagem de integração de ciência e cultura, de ser humano e natureza, pois além das revisões de trabalhos científicos e produções culturais há produções literárias e imagens que as ilustram. Há um “apelo” para que haja maior intersecção entre produções, linhas de pensamento. Assim como o ser humano não deve ser pensado fora da natureza, a ciência não deve ser pensada e separada da cultura ou arte. Essa metalinguagem e quebra de expectativa (ou metodologia) científica é considerada já no índice do livro. Na espinha dorsal estão os textos literários: à esquerda os conceitos e à sua direita os conceitos integrados, ou seja, a demonstração.
Em equilíbrio, como as bromélias
As revisões e reflexões da “espinha dorsal” parecem ser impressas no espírito durante a leitura. Após os momentos em que são trazidos dentro da ciência, literatura, os conceitos de natureza, crise e ontogenia de Gaia (seu surgimento e desenvolvimento), lemos os relatos dos seres (humano, planta, poeira ou água). Assim, os argumentos de unicidade e de transformação do pensamento podem ser sentidos num exercício de senciência.
Ao lermos em primeira pessoa como funcionam as árvores estranguladoras, que matam as outras espécies até que suas raízes cheguem ao solo, a ideia é desejar ser diferente, ser como as bromélias, que vivem no topo das outras, sobrevivendo sem matá-las. A reflexão trazida é sobre como o ser humano responde a crises e, no caso, a crise ambiental criada pela exploração, pois estrangulamos parte da biosfera em vez de sermos como as bromélias que se apoiam e convivem em equilíbrio com os outros seres.
Ainda em uma viagem através de experiências, vivemos na “pele” de uma bromélia e um cacto que se adaptam para resolver o problema de perpetuação da espécie. Aquelas plantas recorrem a sabedorias ancestrais (abandonadas por seus pais) para garantir sua sobrevivência, mostrando de forma visceral a necessidade de retomada de saberes para resolver problemas atuais.
Os agentes regenerantes, do título da obra, são aqueles mais adaptáveis e corriqueiros na natureza, presentes em (quase) todos os biomas e ecossistemas. Quando há mudanças drásticas, eles se adaptam e vão se especificando a ponto de serem outras espécies no futuro. Essas espécies “ordinárias” são as menos estudadas, por serem menos especiais (ou específicas), porém elas têm a chave, como argumenta o autor, para a regeneração.
Desta forma, poderíamos nós (comprometidos com o meio ambiente) sermos os regenerantes de Gaia. O ser humano é altamente adaptável a praticamente qualquer ambiente. Cabe delinear se será com mais ou menos saúde para o todo.
Maria Clara Ferreira Guimarães é formada em linguística e cursa especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.