Tadeu Lopes Machado e Mary Gonçalves Fonseca
A região indígena de Oiapoque é constituída por quatro povos: Karipuna, Palikur, Galibi-Marworno e Galibi-Kalinã, que compartilham três Terras Indígenas: Uaçá; Juminã e Galibi. Cada povo tem suas próprias escolas e seus processos diferenciados de relação com essa instituição. No entanto, queremos aqui lançar um olhar para as aproximações do processo de escolarização. Nossa intenção se constrói a partir do entendimento de que, mesmo sabendo que há profundas diferenças na constituição das escolas entre tais povos, há a manutenção da mesma perspectiva de política educacional por parte do ente estatal. Propomos a possibilidade de construção de outro projeto de escola, fundamentado na interculturalidade, nos saberes cosmológicos e numa pedagogia integral, plural e que favoreça a construção da “justiça curricular” (Casali, 2016). Para isso, é necessário que seja construído a partir da ação conjunta com os próprios indígenas e suas perspectivas de vida.
A escola na região do Uaçá
As primeiras instituições escolares se fizeram presentes na região no Uaçá a partir da década de 1930. O perfil dessas primeiras escolas foi constituído a partir da necessidade de “segurança nacional” que o Estado brasileiro vislumbrou para a região de fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. As escolas se consolidaram em um dos braços mais operantes para o “abrasileiramento” dos povos indígenas, estabelecendo o ideal positivista de fazer com que os povos originários dessa região fossem incluídos na “comunhão nacional”, e assim correspondessem à necessidade de proteção da fronteira brasileira (Assis, 1982).
É necessário perceber que a tática para a implantação das primeiras escolas, utilizada inicialmente para todos os povos da região, não foi aceita passivamente e com unanimidade entre os grupos. Entre os Karipuna, Tassinari (2001) demonstra que houve aceitação da proposta de escolarização trazida pelas agências do Estado. Isso porque, segundo essa autora, esses indígenas reconheceram e acolheram como parente a professora que fora enviada à região, além de também compreenderem a educação escolar como uma oportunidade para transitarem em outras redes de sociabilidade da região.
A escola não teve a mesma aceitação por parte dos Palikur. Segundo Expedito Arnaud (1969), os idosos desse povo viam com desconfiança as estratégias da escolarização em seu meio, percebendo que poderia ser uma nova tática de escravização de sua população, o que gerou descontentamento e repulsa às primeiras investidas de implantação da escola em suas aldeias. Entretanto, aproximadamente duas décadas depois, a escola passa a ser reivindicada também por esses indígenas (Ricardo, 1983).
Mais cedo ou mais tardiamente, a escola foi aceita por todos, e a permanência de professores nas aldeias passou a ser reivindicada, assim como melhorias nas estruturas prediais para manter as aulas com regularidade. Essa passou a ser uma pauta recorrente no movimento indígena da região, e as reivindicações se acumulam e se renovam constantemente.
O cenário político para os povos indígenas trazido com a criação da Funai em 1967 alterou algumas formas de educação escolar ofertadas nas aldeias. As parcerias firmadas com entidades religiosas fizeram com que houvesse algumas modificações na metodologia do ensino nas escolas indígenas (Ferreira, 2001).
Os missionários do Summer Institute of Lingustics (SIL) chegaram entre os Palikur, por exemplo, a partir da década de 1967 (Capiberibe, 2007). Nessa época, os indígenas já tinham contatos pontuais com a escola, mas o contato com esses missionários fez com que os Palikur fortalecessem os vínculos com uma perspectiva de escola defendida pelo SIL, que ao mesmo tempo em que lhes ensinava a ler, escrever e contar, também corroborava para a evangelização através da tradução da Bíblia.
Com a saída dos missionários da região, os Palikur se juntaram aos demais indígenas e se aproximaram das propostas de educação escolar defendidas pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), pautando-se a partir da educação bilíngue, diferenciada e intercultural. As formações para professores indígenas promovidas pelo CIMI a partir da década de 1980 também representaram um marco na história da educação escolar na região de Oiapoque, o que favoreceu ainda mais o desejo de autonomia e autodeterminação.
Investimentos e incentivos à educação escolar indígena no Amapá
Se por um lado a escola se consolidou como um serviço essencial para os indígenas, por outro a situação de precarização das escolas manteve-se como base da política desenvolvida pelo Estado. Entre outros temas de relevante interesse, a educação escolar é um dos que predominam nas pautas de discussões e reivindicações do movimento indígena.
Consideramos a necessidade de perceber a força do movimento indígena e seu protagonismo na luta por uma educação escolar que realmente esteja de acordo com os apelos das comunidades da região. Nesse sentido, cabe apontar algumas vitórias conquistadas ao longo dessa trajetória de reivindicações.
O curso de magistério indígena ofertado para formação de professores; a admissão de professores indígenas para trabalharem nas escolas das aldeias; a construção de escolas com estruturas prediais em melhores condições; a direção das escolas por professores indígenas; o concurso para professor indígena em 2006; a implantação do Sistema de Organização Modular de Educação Indígena (Somei); a implantação da licenciatura intercultural indígena na Unifap, são algumas das conquistas do movimento indígena local.
Entretanto, mesmo com os avanços conquistados, é importante que se percebam os limites das políticas implantadas, uma vez que muitas questões não avançaram no contexto da educação escolar indígena, ou, se avançaram, tomaram outras proporções conflitantes.
O número de professores indígenas contratados por meio de concurso público é muito baixo. Isso faz com que a maioria dos professores das escolas indígenas sejam admitidos através de contratos temporários, com vínculos empregatícios precários e remuneração rebaixada.
Isso afeta diretamente a qualidade na oferta de aulas. Não que os professores contratados sejam desqualificados, mas sim porque seus contratos não lhes permitem ter maiores liberdades e autonomia perante sua prática pedagógica. Além disso, a assinatura anual de tais contratos se consolida tardiamente, o que compromete a organização do ano letivo.
Outra questão que afeta as escolas é a falta de livros didáticos. Os que chegam nas aldeias são os mesmos utilizados nas escolas não indígenas. Ou seja, são materiais que não dialogam com a realidade específica dos grupos indígenas. Nesse sentido, percebemos que há uma improvisação de material constante por parte dos professores, redobrando seu serviço.
Outro incômodo se refere à merenda e transporte escolar. A burocracia que envolve a manutenção da escola indígena é a mesma das escolas não indígenas. Tratam-se dos mesmos critérios de gestão dos recursos para todas as escolas do Estado. Nesse sentido, a merenda deve ser adquirida em estabelecimentos que estejam devidamente regularizados nas agências de fiscalização e controle do Estado, do município e da federação. Esse é o principal impeditivo para que a merenda seja regionalizada, e assim possa ofertar para os alunos uma alimentação saudável e de acordo com seus costumes alimentares, além de baratear o valor da compra.
As questões excessivamente burocráticas fazem também com que as prestações de contas dos caixas escolares se atrasem, ou nem consigam se efetuar, pois os gestores escolares não contam com qualquer auxílio especializado para ajudar em tal tarefa. Assim, há muitas escolas indígenas que estão inadimplentes com suas contas e os recursos para a merenda escolar se encontram bloqueados.
Nas escolas das aldeias menores só há a oferta do primeiro segmento do Ensino Fundamental. Dessa forma, para continuarem seus estudos, os alunos precisam se deslocar diariamente para as aldeias maiores. A não existência de transporte escolar é um dos fatores que levam muitos alunos de aldeias menores a desistirem da escola. A implantação desse tipo de transporte também esbarra nas excessivas exigências burocráticas que, para o contexto indígena, fica difícil, ou até impossível cumprir.
Considerando a justiça curricular como horizonte, a escola indígena não está despertencida da vida de sujeitos concretos, homens e mulheres, em todas as dimensões, materiais, sociais e culturais (Fonseca, 2017), nesse sentido, há que considerar a ética da vida como fundamento de um currículo escolar ético crítico, comprometido com sujeitos concretos em suas lutas, aspirações e formas de estar no mundo.
Considerações
O objetivo deste artigo foi apresentar de forma sucinta como a educação escolar vem se desenvolvendo no contexto dos povos indígenas de Oiapoque. A partir dos processos históricos de implantação da escola entre esses indígenas, percebemos que o perfil de educação era dar suporte ao projeto de nacionalizá-los e fazê-los partícipes da “comunhão nacional”. Com a formação dos professores indígenas e com a concretização do movimento indígena na região, a educação escolar toma novos contornos, sendo explicitamente utilizada como ferramenta política pelos próprios indígenas em suas lutas e reivindicações.
Dessa forma, os esforços que se acumulam por parte das comunidades são os principais motivadores para as melhorias obtidas no cenário da educação escolar nessas aldeias, e que, portanto, a participação dos povos indígenas na propositura de avanços tem sido fundamental. Por outro lado, o Estado, através da Secretaria de Educação, não consegue dar resposta eficiente às demandas que surgem para assegurar condições favoráveis para implementação de uma educação escolar indígena comprometida com a justiça social.
Portanto, muito temos que avançar para alcançar uma educação que, de fato, esteja de acordo com a perspectiva indígena, e a partir do perfil “comunitário, intercultural, bilíngue/multilíngue, específica e diferenciada”, segundo o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI).
Tadeu Lopes Machado é doutor em antropologia, professor do programa de pós-graduação em educação e da licenciatura intercultural indígena na Universidade Federal do Amapá. lopesmachado.tadeu@gmail.com
Mary Gonçalves Fonseca é doutora em educação e currículo e professora da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. maryfonsecaunifap@gmail.com
Referências
Arnaud, E. “Os índios da região do Uaçá (Oiapoque) e a proteção oficial brasileira”. In: _____. O índio e a expansão nacional. Belém: Cejup, 1989.
Assis, E. C. Escola indígena, uma “frente ideológica?”.Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade de Brasília. Brasília: UnB, 1981.
Capiberibe, A. Batismo de fogo: os Palikur e o cristianismo. São Paulo: Annablume; Fapesp; Nuti, 2007.
Casali, A. “Para um currículo ético-crítico: Referências a partir da ética da libertação de Enrique Dussel”. Revistae-Curriculum, PUC/SP, v. 14. São Paulo, 2016.
Ferreira, M.K. L. “A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil”. In. Lopes da Silva, A; Ferreira, M.KL(Orgs.). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola.São Paulo: Global, 2001.
Fonseca, MG. “A ética da vida de Enrique Dussel: referências para fundamentos da educação escolar indígena”. Anais XXVIII Simpósio 2017, Anpae.
Ricardo, C.A.Povos indígenas do Brasil. Volume 03: Amapá e Norte do Pará. São Paulo: CEDI, 1983.
Tassinari, A M I. “Da civilização à tradição: os projetos de escola entre os índios do Uaçá”. In. Lopes da Silva, A; Ferreira, M K L (Orgs.). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001b. p. 157-195.