Reencontrar o caminho da roça: a revolução verde do século XXI

Por Leonor Assad e Miguel Calmon

Duas importantes lições a serem aprendidas com a atual crise no setor de saúde são que o ambiente urbano está superpovoado e que as aglomerações em um mundo globalizado facilitam a propagação de doenças contagiosas. Os números elevados de atingidos pela pandemia da covid-19 têm colocado em evidência que diferenças no acesso à terra, à alimentação saudável, à educação e na inserção no mercado de trabalho provocam grandes desigualdades econômicas e sociais, forçam os mais frágeis e vulneráveis a viverem aglomerados na periferia de grandes e médias cidades, e evidenciam que, em países como o Brasil, o processo de urbanização é excludente.

Numa recente revisão sistemática (White, R. J. e Razgour, O., 2020), sobre doenças zoonóticas, que reuniu 276 estudos publicados entre 1990 e 2019, os autores estabelecem uma relação direta entre a pandemia da covid-19 e as mudanças provocadas pela ação do homem, especialmente quanto ao uso da terra, com desmatamento, urbanização e intensificação da produção agrícola. E mais, eles apontam que a disseminação desses patógenos e o risco de transmissão de doenças devem aumentar no futuro devido à expansão da população humana e à crescente demanda por recursos naturais. Claro, se nada mudar!

Uma das transformações necessárias e urgentes é diminuir a pressão populacional nas grandes cidades, particularmente nas áreas mais pobres e vulneráveis, onde a densidade demográfica é muito alta e a qualidade de vida é baixa. Com efeito, nessas áreas se aglomeram milhares de famílias de baixa renda, com acesso precário a serviços saúde, educação e segurança pública, com carência de saneamento básico, energia e pavimentação, e que ocupam – muitas vezes de forma irregular – moradias insalubres, encostas e áreas ribeirinhas.

Cuidar da cidade passa pelo campo

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) mostram que, em 2015, quase 85% da população brasileira vivia em áreas urbanas. Além disso, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, houve uma redução de 9,5% no número de estabelecimentos da agricultura familiar, em relação ao último Censo, de 2006, com perda de 2,2 milhões de trabalhadores. Por outro lado, a agricultura patronal criou apenas 702 mil postos de trabalho.

Como garantir acesso à  terra e vida digna ao pequeno produtor e à sua família? Como usar melhor as terras que temos? Como estabelecer sistemas de produção agrícola mais sustentáveis e resilientes? Esses são alguns dos desafios que precisam ser superados para que a agricultura possa cumprir seu potencial de promover o desenvolvimento econômico, com inclusão e equidade social e sustentabilidade ambiental.

A agropecuária é altamente dependente de condições climáticas. As mudanças em curso no clima global podem afetar negativamente produção e produtividade agrícolas. Por outro lado, o Brasil detém conhecimento e experiências bem-sucedidas de sistemas agrícolas adaptados e resilientes às mudanças climáticas. Ângelo Gurgel, agrônomo e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, explica que existem diversas opções de sistemas produtivos, produtos agropecuários e tecnologias para os diferentes biomas e regiões brasileiras. Somos capazes de produzir de forma eficiente desde grãos e pecuária bovina, até flores, frutas e hortaliças em ambiente controlado. “E mesmo culturas que são relevantes para o país há décadas, como o café, possuem sistemas produtivos para atender diferentes mercados, desde plantações com manejo e colheita mecanizadas em regiões planas, até produções de agricultura familiar em terreno montanhoso e colheita ‘a dedo’, que geram um café diferenciado”, afirma Gurgel. Segundo ele,  algumas opções são mais adequadas para grandes propriedades, outras para produtores médios e pequenos e, para permanecer na atividade no médio e longo prazo, o produtor rural tem que fazer as escolhas mais adequadas considerando suas condições locais e necessidades. E acrescenta “para que essas escolhas sejam as mais acertadas, é preciso ter acesso à informação de qualidade, conhecimento, assistência técnica e capacidade de investimento”.

Mas é fundamental que o consumidor reconheça a importância  de quem produz o alimento que chega às cidades. E quem faz isso, em grande parte, é o agricultor familiar cuja produção e renda decorrem majoritariamente de seu trabalho e de seu núcleo familiar. Dados da Embrapa de 2019 apontam que a agricultura familiar brasileira, que emprega 74% da mão de obra no campo (ou seja 12 milhões de pessoas) em 5,2 milhões de estabelecimentos, é responsável por 87% da produção brasileira de mandioca, 70% da produção de feijão, 59% da de suínos, 58% da produção de leite, 50% da produção de aves, 46% da produção de milho, 38% da produção de café, 30% da de bovinos, 21% da de trigo e é ainda responsável por 16% da produção no complexo soja (grão, óleo e farelo). Ou seja, são essas famílias de agricultores que produzem a maior parte do alimento das pessoas que incham as cidades

Sistemas resilientes de produção

Os sistemas agroflorestais têm se destacado como uma opção mais sustentável, tanto do ponto de vista ambiental quanto do ponto de vista social, principalmente para agricultores familiares. Conforme explica Irene Cardoso, engenheira agrônoma e professora da Universidade Federal de Viçosa (UFV), nos sistemas agroflorestais são cultivadas diversas plantas arbóreas, arbustivas e rasteiras, intercaladas no espaço e dentro de um calendário de sucessão, manejadas de tal modo que podem fornecer produtos agrícolas e florestais durante todo o ano. Ela cita como um bom exemplo o plantio de café em sistemas agroflorestais de áreas montanhosas da zona da mata mineira, que têm proporcionado a inúmeras famílias alimento o ano inteiro, renda extra com venda de excedentes, saúde por meio da produção de plantas medicinais, e ainda contribuem para a adaptação e mitigação de mudanças climáticas. “Nossos estudos mostram que a adoção de sistemas agroflorestais com café é uma estratégia promissora para mitigar o impacto negativo das mudanças climáticas”, disse.

Juntamente com outros pesquisadores da UFV, Cardoso participou de um estudo em parceria com a Universidade de Wageningen, na Holanda, e que foi publicado em 2020 na revista Agriculture, Ecosystems and Environment. A pesquisa aponta que o cultivo de café sombreado em sistemas agroflorestais pode reduzir as temperaturas médias e com isso manter, ante às previsões de aumento de temperatura, 75% da área atualmente ocupada com cafeicultura em 107 municípios de áreas montanhosas do Sudeste do Brasil. Por isso, na opinião da pesquisadora da UFV, é preciso incentivar o desenvolvimento de sistemas agroflorestais para salvaguardar a produção de café nessa região”. Além disso, segundo ela, “é fundamental que as pessoas voltem a saber onde o alimento que consomem é produzido, revalorizem a importância do campo e reencontrem o papel do agricultor e da agricultura no bem-estar da população urbana, garantindo acesso à terra àqueles que dela precisam para trabalhar e ter moradia, alimentação saudável e renda”.

Restauração da terra

Outro caminho em direção à sustentabilidade no campo, no sentido de conter o desmatamento e a degradação para expansão da produção agrícola, é a recuperação de áreas degradadas. De acordo com dados do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) da Universidade Federal de Goiás (UFG) de junho de 2020, uma extensa área no Brasil, de quase 95 milhões de hectares – maior do que  toda a região Sudeste – está ocupada por pastagens com algum estágio de degradação. Desse total,  mais de 65 milhões de hectares são de produtividade baixa ou muito baixa, por estarem em estágio moderado ou grave de degradação. Nesta condição, não geram renda nem serviços ambientais fundamentais para o bem-estar da sociedade e ainda contribuem para o aumento de gases do efeito estufa (GEE) na atmosfera. Além disso, existem no Brasil cerca de 20 milhões de hectares de terras que precisam ser recuperadas para o cumprimento do código florestal brasileiro. Essas áreas estão concentradas principalmente ao sul da Amazônia, na Mata Atlântica e nos cerrados. No pós-covid-19, recuperar e restaurar áreas e florestas degradadas pode gerar empregos e renda no campo.

Já existem várias estratégias para recuperar a capacidade produtiva de pastos, gerando mais renda e segurança para o produtor rural. Um exemplo é a Fazenda Ecológica Santa Fé do Moquém, com 500 hectares, localizada na cidade de Nossa Senhora do Livramento, a 38 quilômetros de Cuiabá, no Mato Grosso. Semeando gramíneas melhoradas no cerrado nativo e fazendo rodízio de gado em pasto dividido em piquetes, os proprietários tiveram ganhos de produtividade e redução de custo de até 90 %.

Uma estratégia importante para a recuperação de áreas degradadas e de vegetação natural é o plantio ou regeneração de árvores nativas. Produtoras de frutas, resinas, lenha, madeira e outros produtos florestais – além de fornecedoras de valiosos serviços ambientais – árvores nativas podem ser fonte importante de renda para o produtor. Dependendo do sistema adotado, contribuem também para a melhoria do clima local, proporcionando conforto térmico para animais, plantas e para a comunidade local.

Políticas implantadas por meio do Plano de Agricultura de Baixo Carbono (Plano ABC) e do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg) trazem retorno econômico e financeiro para o produtor rural. Existem instituições de pesquisa, do setor privado e do terceiro setor que trabalham ativamente junto aos produtores para incentivar e auxiliar na recuperação de vegetação nativa no contexto do Planaveg. Entretanto, segundo Gurgel, é bem difícil demonstrar o retorno econômico direto no curto prazo da recuperação de áreas degradadas, por isso tem sido difícil convencer os tomadores de decisão a olhar a atividade de recuperação como um investimento e não como um custo. Mesmo assim já existem muitas iniciativas interessantes nessa direção.

A Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo, por exemplo, mapeou diversas estratégias de recuperação de áreas degradadas com aproveitamento econômico, considerando todos os aspectos técnicos e de viabilidade econômica envolvidos, visando contribuir com a recomposição e uso econômico de áreas de reserva legal no estado. Os programas Reflorestar, no Espírito Santo, e Conservador das Águas, em Extrema (MG), são alguns exemplos de como é possível recuperar áreas degradadas, conservar as florestas e ganhar dinheiro.

Por fim, recuperar áreas degradadas e fazer agricultura mais resiliente é um bom negócio para o produtor e para a sociedade, além de ser uma das atividades mais eficazes de geração de emprego e renda no curto e médio prazo na área rural. Temos uma enorme oportunidade de mobilizar financiamento e investimentos para liderar uma nova revolução verde no Brasil e inspirar o resto do mundo. Essa revolução será baseada em sistemas de produção mais resilientes, produtivos e saudáveis, e de menor impacto, que tornarão os solos mais produtivos e a área rural um lugar mais digno para viver. Além de ser a solução para resolver os grandes desafios do mundo e ajudar a cumprir as metas dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e suas 169 metas. 

Maria Leonor Lopes-Assad é engenheira agrônoma pela Universidade Federal de Viçosa e doutora em ciência do solo pela Universidade de Montpellier II, França. Atualmente é professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Contato: assad@ufscar.br
 
Miguel Calmon é engenheiro agrônomo pela Universidade Estadual Paulista e doutor em ciência do solo pela Universidade Penn State, Estados Unidos. Atualmente é pesquisador sênior do World Resources Institute – WRI Brasil. Contato: miguel.calmon@wri.org